O Malogro da Internacional Comunista

Francisco Martins Rodrigues

Março/Abril de 1993


Primeira Edição: Política Operária nº 39, Mar-Abr 1993
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
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A crítica da corrente “marxista-leninista” surgida nos anos 60 com a ruptura pós 20.º Congresso do PCUS protagonizada pelo Partido Comunista Chinês, e uma década depois, após a morte de Mao Tsé Tung, com o dissídio albanês relativamente aos maoístas, deteve-se sempre, respeitosa, diante da Internacional Comunista; essa era para ela uma “pedra de toque” da fidelidade aos princípios. Temos de admitir que o peso desse tabu retardou a nossa abordagem do tema, que se ficou, até hoje, pela crítica a Dimitrov e à viragem oportunista do 7.º Congresso. Agora, que já não temos dúvida de que o poder soviético estava perdido em 1920, torna-se-nos possível avaliar as limitações históricas do movimento comunista, particularmente na Europa.

Gerada por uma explosão revolucionária até hoje inigualada – o gigantesco Outono russo de 1917 – a Internacional arrancou com reservas de energia que pareceriam inesgotáveis. O proletariado sabia agora como se pode tomar o poder político e como se pode estruturar um Estado dos produtores. Foi sangue novo num movimento que caíra sob a canga do respeito pela ordem e se deixara infectar com preconceitos imperialistas. Dez anos mais tarde, já a Rússia se afundava nas trevas do stalinismo, ainda (os ecos da “terra sem amos”, da emancipação dos povos colonizados, da libertação da mulher, da nova cultura, despertavam em ondas sucessivas milhões de explorados para a luta contra a ordem imperialista.

Eram todavia apenas ecos duma grande revolução que passara. E com ela a própria IC definhava, remetida à função de cinturão de defesa avançada da URSS contra a ameaça imperialista, fechada no horizonte das reformas do sistema e no abastardamento do marxismo.

Isto pode parecer a alguns leitores uma concessão à social-democracia, que não se cansa de divulgar as malfeitorias da tenebrosa Comintern. Podemos tranquilizá-los: a nossa crítica da IC não nos aproxima do “socialismo democrático”; confirma a condenação deste como agente da burguesia e do imperialismo.

Haverá também quem nos lembre as limitações inevitáveis da época, a ferocidade da contra-revolução, o heroísmo com que os comunistas se bateram. Não o esquecemos. Mas o que importa entender é porquê tantos sacrifícios foram impotentes para pôr de pé o partido mundial do proletariado com que sonhavam os comunistas de 1919.

A revolução que não chegou

“Tenho que confessar que no 3.º Congresso da Internacional Comunista cometi um erro por excesso de prudência: coloquei-me na extrema direita”, escrevia Lenine no início de 1922, penitenciando-se por ter tomado a defesa do militante alemão Paul Levi, embora este já então se comportasse como um menchevique. Logo a seguir, porém, surpreen­dentemente, pretendia ter sido essa “a única posição justa”, para contrabalançar a força dos “comunistas de esquerda” alemães, holandeses e italianos no congresso. (33, 209).

Esta atitude, estranha em Lenine, de considerar, justificada a aliança com o oportunismo para bater o “esquerdismo”, dá testemunho da evolução sofrida pelas suas opiniões acerca do movimento comunista europeu, quando foi forçoso reconhecer que não se confirmavam as expectativas iniciais.

Formada em ambiente de entusiasmo revolucionário, a IC contara poder repetir o feito dos bolcheviques a curto prazo. Apesar do esmagamento da revolução dos conselhos na Alemanha e do terror branco na Finlândia, toda a Europa Central continuava em ebulição. A ideia dos sovietes alastrava como rastilho. A revolução avançava na Hungria, parecia prestes a eclodir na Baviera e na Áustria. No norte da Itália, os operários ocupavam as fábricas. Gradualmente, porém, a burguesia foi retomando o controlo da situação. As potências aliadas, ao mesmo tempo que estrangulavam a Rússia com a guerra civil e o bloqueio, abstiveram-se de desmantelar o exército alemão, para lhe permitir esmagar a revolução em Berlim; autorizaram-no, pelo armistício, a ficar na frente Leste, ocupando a Ucrânia; lançaram tropas contra a república soviética húngara. Na Itália, despontava o terror fascista.

Estas derrotas eram consequência da imaturidade e irresolução dos comunistas, assinalava o Comité Executivo, dos seus preconceitos contra a acção dirigente do partido – em última análise, de um corte inacabado com a social-democracia. Na Alemanha, Rosa Luxemburgo e Liebknecht tinham vacilado tempo demais a constituir-se em partido independente, acabando por ser massacrados; na Hungria, os comunistas de Bela Kun aceitaram a fusão com os social-democratas num partido único.

Num e noutro caso, a falta de afirmação dos comunistas permitira à social-democracia liquidar a revolução por dentro. Mas a sucessão dos desaires mostrava ainda outra coisa: o movimento europeu tardava em orientar-se para a disputa do poder. Não se viam sintomas de uma deslocação em massa dos operários para a linha do comunismo, como acontecera na Rússia em 1917.

A base dos partidos socialistas, mesmo simpatizando com os conselhos e pressionando os seus chefes para prestarem solidariedade à revolução russa, ainda olhava os comunistas como seitas de utopistas que vinham dividir o movimento.

A social-democracia, ainda que abalada e dividida (cumprira em diversos países o trabalho sujo de ir para o governo conter e reprimir a revolução), recompunha a sua base de apoio. Enquanto isso, os núcleos comunistas eram uma força coesa e entusiasta, mas ínfima.

Cura radical da “doença infantil”

Foi nestas condições que se agudizaram as divergências sobre qual deveria ser a táctica comunista na Europa e se começou a impor a necessidade de derrotar o “esquerdismo”. Estes grupos comunistas, em geral originários do anarquismo e do anarco-sindicalismo, entendiam a nova linha como uma marcha directa para a revolução e faziam obstáculo aos métodos tradicionais de acumulação de influência sobre as massas através do parlamento e dos sindicatos. Lenine não atribuiu inicialmente gravidade a esta “doença infantil do esquerdismo, que passará rapidamente, sem perigo”. Em 1919 pronunciou-se contra a exclusão dos antiparlamentaristas alemães pela maioria do seu partido; se uns e outros defendiam a ditadura do proletariado não via razão para que não se unissem. Nos meses seguintes vincou, por mais de uma vez, que as atenções deviam centrar-se na luta contra o oportunismo, “o nosso inimigo principal, com que temos que acabar”.

Em meados de 1920, porém, a atitude de Lenine começou a mudar. Em sua opinião, o movimento comunista concluíra a primeira etapa, de corte com os oportunistas e centristas; chegava a hora de entrar numa segunda etapa, de preparação da revolução, de acumulação metódica de forças. E aqui não havia progressos. Quando as massas europeias estavam a caminhar “a passos de gigante” para o comunismo (a expressão era de Lenine) mas, apesar disso, se ficavam pelas cisões centristas nos partidos social-democratas, a culpa só podia ser da estreiteza dos comunistas, que teimavam em lançar declamações revolucionárias para iludir o trabalho diário de implantação.

Bordiga, convicto de que “um movimento marxista nos países democráticos ocidentais exige uma táctica muito mais directa que a que foi necessária na revolução russa”, propunha no IIº Congresso da IC que “a agitação pela ditadura do proletariado… se baseie no boicote das eleições e dos órgãos democráticos burgueses”. “Renúncia aos métodos parlamentares e sindicais que já fizeram o “seu tempo”, reclamavam os esquerdistas alemães do KAPD, antes de serem excluídos no 3.º Congresso. Foi assim que se generalizou a ideia de que, sem limpar os partidos do “ultra-esquerdismo” não haveria esperança de revolução na Europa. A partir de 1921, o Comité Executivo começou a apoiar em cada país dirigentes que parecessem capazes de pôr de pé partidos de massas e intensificou a luta contra os “esquerdistas”. Até porque estes, com as suas críticas radicais à nova política da NEP (falavam já de “uma revolução burguesa feita por comunistas”, faziam coro com a campanha anarquista e, devido às suas polémicas encarniçadas, paralisavam e dividiam os partidos. Procedeu-se pois a um saneamento geral de conselhistas e “abstencionistas” (contrários à participação em órgãos burgueses), a que não escapou nenhum partido europeu.

Os efeitos da campanha foram muito além do que se poderia esperar. A eliminação do “esquerdismo” desequilibrou bruscamente a relação de forças no interior de cada partido. Tendências oportunistas tomaram o lugar das anteriores tendências sectárias. Até no periférico partido português, o afastamento do grupo sindicalista e anarquizante de José de Sousa se fez à custa do triunfo da corrente oportunista chefiada por Carlos Rates.

Com as 21 condições para o ingresso na Internacional, aprovadas no 2.º Congresso, Lenine procurara garantir que o alargamento dos partidos não os entregasse à influência de oportunistas; mas a precaução não resultou. Tudo se passou como se no movimento europeu só houvesse espaço para o sectarismo ou para o oportunismo.

Diálogo de surdos

A polémica entre o Comité Executivo e os esquerdistas assemelhava-se a uma discussão entre surdos. Lembravam os primeiros que, sem recorrer a todas as instituições legais para alargar a sua influência, os comunistas nunca passariam de seitas; respondiam os “sectários” com o perigo de meter o movimento comunista ainda imaturo no parlamento e nos sindicatos amarelos, corrompendo-o à nascença.

Na “Doença Infantil do Comunismo”, Lenine demonstrou, com lógica demolidora, que os “esquerdistas” fugiam à luta pelas massas. Se os bolcheviques tinham podido utilizar as miseráveis possibilidades legais proporcionadas pelo czarismo, era absurdo negar condições de aproveitamento do parlamento, sindicatos, etc., em regime de liberdades burguesas. Ficar fora dos sindicatos porque estes eram reaccionários equivalia a deixar as massas entregues aos chefes amarelos conluiados com a burguesia. Dizia Lenine aos exaltados da Internacional:

“Toda a tarefa dos revolucionários consiste em saber convencer os retardatários e não separar-se deles com slogans esquerdistas”. “Querer inventar novas formas de organização operária, bem limpinhas, é pueril”. “Enquanto não tiverem força para dissolver as instituições burguesas, não têm outro remédio senão trabalhar dentro delas; isto se não quiserem ser só revolucionários de café”.

De facto, muitos dos jovens grupos comunistas, despertados para a luta pelo terramoto da guerra e da revolução dos sovietes, julgavam poder “marchar direito à revolução”, “sem compromissos”, recusavam como oportunista toda a táctica, fundavam minúsculos sindicatos vermelhos como resposta à corrupção dos sindicatos de massa, eram receptivos aos preconceitos anarquistas contra o partido revolucionário centralizado, contra a disciplina e os “chefes” – na prática, deixavam-se ficar à margem da luta pela conquista da classe operária e pela tomada do poder.

Os conselhistas, a fracção mais elaborada do “esquerdismo”, cujo teórico era o holandês Pannekoek, julgavam ter descoberto a entrada do movimento numa nova fase que seria caracterizada pela “acção directa na fábrica e na rua”, a qual estaria destinada a substituir as velhas tácticas parlamentares e sindicais. O apego do leninismo à acumulação de forças nas instituições burguesas, às manobras e compromissos entre partidos, parecia-lhes a prova de que este era ainda, no fundo, um ramo radical da social-democracia. Às concepções “jacobinas e estatistas” dos bolcheviques contrapunham “um novo princípio de organização: o comunismo dos conselhos”.

Este apreço pela democracia operária e pela “acção directa” seria, em si mesmo, muito bom se não envolvesse uma desvalorização do partido e da conquista do poder – mesmo quando, como no caso dos conselhistas, se demarcavam do sindicalismo e reconheciam o papel primordial da luta política. O conselhismo era um passo atrás quanto às aquisições essenciais do leninismo – necessidade de um partido que actue como o estado-maior da revolução, capaz de ligar as massas à vanguarda e de organizar o assalto militar ao poder.

A vida mostrou que a nova teoria da acção directa e da organização pelos conselhos era apenas um reflexo deformado da crise social desses anos. Posta à prova e esmagada na revolução alemã de 1918, ela voltou a demonstrar a sua fragilidade quando baixou o nível de agitação de massas e os conselhistas se encontraram sós.

Os “esquerdistas” não tinham verdadeiras alternativas políticas. Com a sua ânsia utópica de salvaguardar a pureza do movimento, reflectiam em grande medida a “instabilidade e esterilidade do pequeno burguês exasperado com os horrores do capitalismo quando vê a sua situação agravar-se bruscamente” (Lenine). Mas a ingenuidade espontaneísta das suas “descobertas” entrelaçava-se com uma objecção de fundo, a que na época não se atribuiu o peso que viria a revelar, a percepção confusa de uma situação social na Europa distinta da da Rússia.

Oceano reformista

Entre a Rússia czarista e a Europa imperialista, a diferença não se cingia apenas a mais ou menos liberdade de acção. Aqui, o movimento operário estava cercado por um aparelho burguês tentacular que nunca chegara a existir na Rússia. Havia uma atmosfera irrespirável, abafando nas cinzas do reformismo o espírito de revolta da vanguarda. Como dizia com amargura o holandês Rutgers, os operários do Ocidente estavam “cheios de admiração e veneração pelos sovietes mas também de terrores pequeno-burgueses, sem coragem para se salvarem a si mesmos, à Rússia e à humanidade”.

Era este clima social que levava uma parte dos comunistas a divisar no engodo pela concorrência às eleições mais do que uma manobra táctica – um anseio de aproximação à social-democracia e um começo de integração na ordem estabelecida. Um ano de experiência mostrara-lhes que a disputa de posições dentro do pântano das instituições burguesas alimentava a proliferação de posições e correntes oportunistas. E perguntavam: vamos pôr o parlamento ao serviço do comunismo ou o comunismo ao serviço do parlamento?

A divergência de pontos de vista tornou-se gritante no caso da Inglaterra. Lenine defendia que os grupos comunistas não deviam hesitar em fazer um bloco eleitoral com o partido trabalhista e ajudá-lo a ir para o poder; no 2.º Congresso foi mesmo mais longe e propôs que os comunistas se filiassem no Partido Trabalhista, embora este fizesse parte da II Internacional. Num como no outro caso, acreditava que iniciativas audaciosas dos comunistas arrancariam as massas operárias à influência dos chefes reformistas.

E esta era a questão: a direcção da Internacional enunciava tácticas que seriam correctas, partindo do princípio de que o movimento operário europeu estava prestes a romper com o reformismo e a passar-se para posições comunistas. Mas isto não acontecia. Os russos da IC, habituados a lidar com os seus mencheviques, não sabiam com que espécie de menchevismo se metiam na Europa – uma atmosfera sufocante de reformismo e chauvinismo que afectava todas as classes. A influência da pequena burguesia e da aristocracia operária sobre as massas era muito mais vasta e enraizada do que o próprio Lenine podia supor. Era isso que levava os comunistas a procurar às apalpadelas soluções tácticas que os defendessem do perigo de desagregação. Para o comunismo definir o seu caminho na Europa imperialista era precisa uma batalha ideológica e prática mais prolongada. Mas a premência de acudir em socorro da Rússia levou a que essa batalha fosse artificialmente abreviada.

A “conquista da maioria”

Para a historiografia “leninista” tradicional, a política de Frente Única da IC na primeira metade dos anos vinte teria ficado como modelo de táctica comunista. Ao que nos parece, a reconstrução da corrente comunista passa pelo reconhecimento do carácter oportunista que assumiu em geral essa política.

Face à derrota do novo levantamento popular na Alemanha, de Março de 1921, e ao evidente refluxo do movimento operário na Europa, o 3.º Congresso, reunido pouco depois, reconheceu o “afrouxamento do ritmo da luta” e a necessidade de passar à defensiva.

Porém, para não ter que admitir abertamente que o proletariado, terminada a crise da guerra, recaía no espírito de colaboração de classes e no chauvinismo – o que equivalia a reconhecer que, tão cedo, não havia esperanças de socorro à Rússia soviética – Zinoviev reafirmou que “vivemos na época em que a ditadura do proletariado começa a substituir a ditadura do imperialismo” e traçou como objectivo “conquistar a maioria da classe operária para a influência comunista”. Já não se tratava só da luta pelas massas mas da conquista da maioria – meta utópica que ia conduzir a Internacional para a busca escorregadia de “flexões” capazes de atrair a maioria operária e para uma certa tolerância para com elementos semi-oportunistas (caso de Levi na Alemanha, de Serrati na Itália, etc).

Neste espírito, o congresso aprovou, contra os protestos dos esquerdistas, a “carta aberta” dirigida pelo partido alemão aos operários social-democratas (Lenine defendeu-a como “uma iniciativa política exemplar”). Foi mesmo mais longe: inseriu entre a luta pelas reivindicações parciais imediatas e a propaganda da revolução, uma espécie de ponte de ligação, a luta por “objectivos transitórios” que mais facilmente “mobilizassem as massas para a luta pela ditadura do proletariado”. É certo que, para não incorrer na acusação de cedência ao reformismo, essa “transição” foi inicialmente concebida em termos bem radicais: controle operário da produção, armamento do proletariado, desarmamento da burguesia… Isto era, porém, pouco convincente como transição – quem estaria disposto a adoptar tais medidas senão um governo comunista?

O seu efeito prático foi contrário ao pretendido: em vez de promover a deslocação dos socialistas à esquerda, empurrou os comunistas para a direita, na medida em que fez crescer a pressão no interior dos partidos para propostas de transição mais credíveis e mais aliciantes.

Frente única

Passados poucos meses, visando neutralizar as acusações social-democratas que apresentavam os comunistas como “cisionistas”, a IC propôs a táctica de frente única. Com novas garantias de que visava unicamente a unidade pela base e “a independência absoluta, a plena liberdade de crítica” face aos chefes socialistas, era na realidade uma mão estendida para acordos, a princípio apenas com a ala esquerda social-democrata, depois mesmo com os partidos socialistas maioritários. Às objecções dos militantes franceses, italianos, espanhóis, que não queriam ir propor acordos àqueles com quem acabavam de romper e com quem muitas vezes eram obrigados a bater-se nas ruas, dava-se sempre a mesma resposta: havia que furar a barreira de desconfiança que mantinha a maioria da classe longe dos comunistas.

Em Abril de 1922 o Comité Executivo julgou-se à beira de uma grande vitória da política de frente única – o acordo de princípio para uma acção operária conjunta das três Internacionais (além da II e da III, havia uma associação intermédia, centrista, a que os comunistas chamavam “Internacional 2 1/ 2”) pelo 1.º de Maio. A esperança malogrou-se porque as Internacionais reformistas romperam as negociações à última hora.

Para compreender como se pôde fazer aceitar estas concessões a um movimento então ainda radicalizado, há que ter em conta dois aspectos. Primeiro, o exemplo que vinha da Rússia onde, com o fim da guerra civil e o início da nova política económica, começara a busca de acordos com governos capitalistas, da atracção da pequena burguesia, da recuperação de antigos mencheviques – tudo justificado pela necessidade de ganhar tempo, à espera de nova vaga revolucionária.

Por outro lado, a miragem da frente única com a social-democracia não excluía, antes se completava, com aventuras insurreccionais, de cada vez que a conjuntura parecia prometer um “golpe de sorte” aos comunistas (insurreição de Hamburgo, Estónia, Bulgária). As guinadas direitistas alternavam com o golpismo “comunista” e o insucesso deste servia de argumento para novas recaídas na direita. As resoluções do Comité Executivo tão depressa lembravam que “a revolução não está na ordem do dia” como, passados uns meses, eram capazes de anunciar que “a revolução bate à porta”. Sob este ziguezague contínuo, a deriva oportunista progredia.

“Governo operário”

Por alturas do 4.º Congresso, em fins de 1922, a conquista de “maiorias de esquerda” em parlamentos regionais da Alemanha suscitou um novo passo: porque não admitir a formação de governos “operários”, de coligação PC-PS, que poderiam constituir um travão à ofensiva da extrema direita e mesmo funcionar como “uma forma original de transição da democracia burguesa para a ditadura do proletariado”? Esquecendo a desgraçada experiência da revolução húngara, em 1919, a IC introduziu a proposta do “governo operário e camponês”, que ia ser fonte das mais oportunistas interpretações e de um generalizado deslizamento à direita. A lógica das conveniências tácticas arrastava já a Internacional para bem longe da nitidez com que Lenine contrastara democracia burguesa e ditadura do proletariado, nas teses que lhe tinham servido de base programática.

No ano crucial de 1923, com a população alemã mergulhada numa terrível crise económica devido à espoliação pelos vencedores de Versalhes, e por isso receptiva à propaganda da extrema direita, a política de frente única da Internacional degenerou num esforço insensato para separar as bases social-democratas das chefias à custa de cedências ideológicas. Radek equiparava a Alemanha a um país colonial, pelo facto de o Ruhr ter sido ocupado pelas tropas francesas; Brandler descobria que a burguesia alemã era chamada a desempenhar um papel revolucionário; Zinoviev saudava o KPD como “um partido nacional bolchevista capaz de dirigir toda a nação” e assegurava que uma revolução era possível, pois que os empregados alemães tenderiam a desempenhar um papel de aliados comparável ao dos camponeses na Rússia… Clara Zetkin apelava à social-democracia para integrar um comité de acção contra o fascismo.

Os social-democratas, porém, viam a contenção do nazismo na sua óptica peculiar: todo o seu afã ia para tranquilizar a burguesia, ou seja, desmobilizar as massas e liquidar a influência comunista. No auge da agitação popular, no Outono, viram-se obrigados a formar governo no Saxe e na Turíngia, em coligação com os comunistas; eram, finalmente, os tão ansiados “governos operários”, a pedra angular da táctica da Internacional! Mas para a social-democracia, tratava-se apenas de uma figura de retórica; uma semana depois, os governos deixaram-se dissolver pela tropa sem resistência e os ministros foram para casa.

Pannekoek, o “esquerdista” holandês, fez a esse respeito algumas lúcidas observações:

“O que se pode esperar de um tal governo resulta das bases sobre que se apoia: equilíbrio aparente das classes em luta mas com predomínio da burguesia, mistura de democracia parlamentar com uma espécie de sistema de conselhos para trabalhadores, socialização limitada pelo veto do imperialismo e pela manutenção do lucro capitalista, tentativas vãs para impedir que os conflitos de classe se tornem mais agudos. Quem sai enganado num tal sistema são sempre os trabalhadores. Um governo desses não pode fazer nada para a reconstrução, nem pode sequer tentá-lo, porque o seu objectivo último é travar o curso da revolução a meio caminho. E como se esforça por impedir simultaneamente a dissolução do capitalismo e a constituição do pleno poder político do proletariado, a sua eficácia é directamente contra-revolucionária. Os comunistas não podem fazer outra coisa senão combater um tal governo…”

A nova Internacional

Vieram depois os sucessivos episódios, de esquerda e de direita, que já não cabem no âmbito deste artigo – a “bolchevização” de 1925, pela qual os partidos começaram a basear-se em células de empresa para deixar de ser joguetes da social-democracia; o abandono da palavra de ordem do “governo operário e camponês”; a nova fase de estabilização do capitalismo, assinalada pelos acordos com a direcção das trade-unions inglesas; o namoro à burguesia nacionalista do Kuomintang que teve como desenlace o massacre de milhares de comunistas em 1927; a nova “bolchevização” de 1929-30, a política de “classe contra classe” e a ruptura com a social-democracia; a luta contra o nazismo na Alemanha; a política das frentes populares contra o fascismo e o reaparecimento do “governo de frente única”…

Acusados por social-democratas, anarquistas, trotskistas, de todas as culpas nas derrotas sofridas pelo movimento operário nos anos 30, os partidos comunistas foram na realidade a única força a resistir de forma organizada, alinhados em torno da URSS, à vaga da contra-revolução. Os acusadores tentam refazer a História para apagar a sua própria inacção e jogo duplo face ao fascismo.

A crítica comunista à IC aponta noutro sentido: é que, através de sobressaltos de vigilância e cedências ao oportunismo, a Internacional foi sendo esvaziada do seu projecto inicial; já não era o quartel-general da revolução mundial mas uma mera barreira protectora da URSS contra a agressão imperialista. Por isso, ao começar a segunda guerra mundial, estava política e organicamente esvaziada. Foi dissolvida por conveniência da política externa da URSS, quando já não passava de um departamento editor de declarações.

Os partidos comunistas europeus dos anos 30 já só em palavras visavam a ditadura do proletariado; eram partidos antifascistas, para quem a URSS de Staline, enigmática ou mesmo decepcionante em muitos aspectos, valia como bastião de apoio à luta “pelo pão, pela paz, pela democracia”. Os partidos comunistas dos outros continentes, subalternizados, eram pressionados para se enquadrar nesta estratégia global. Se na China a revolução nacional anti-imperialista pôde levantar-se do golpe sofrido e caminhar para a vitória de 1949, deveu-o ao facto de o partido comunista, reconstruído por Mao, se ter mantido longe das directivas do Comité Executivo.

Esta nova Internacional que associava o apoio incondicional à URSS com o namoro à burguesia nacional democrática, a denúncia dos chefes social-democratas com a recuperação progressista da social-democracia, a revolução de Outubro com a autocracia stalinista, tornou-se um poço de contradições centristas. Daí a tendência para se envolver numa carapaça dogmática e monolítica, que ficaria como modelo de funcionamento dos partidos comunistas daí em diante. Sob essa carapaça pseudo-leninista pôde amadurecer subterraneamente um reformismo cada vez mais senil, que viria a desembocar no revisionismo moderno. Parece-nos forçoso reconhecer que neste declínio e degeneração houve uma unidade interna, que veio da origem.

Luta de tendências interrompida

Pretendemos com esta resenha sugerir que a Internacional poderia ter tido mais brilhante destino se Moscovo não tivesse interferido para o afastamento dos “esquerdistas” nos anos vinte? Decerto que não. Pretendemos apenas chamar a atenção para o estrangulamento com que a Internacional se debateu na Europa desde a sua fundação. O dilema era: como fazer triunfar o comunismo quando as grandes massas, inclusive da classe operária, seguiam o reformismo? Diante dessa barreira intransponível, os partidos tendiam a cindir-se em alas divergentes: para uns, tratava-se de forçar o avanço da vanguarda a todo o vapor; para outros, o decisivo era fazer cedências para atrair apoios. A situação objectiva só deixava espaço para o “esquerdismo” ou para o direitismo.

A experiência posterior demonstrou que a doença do comunismo em 1920 não era só uma doença infantil nem era apenas “esquerdista”. Era um mal de raiz, com duas faces, que revelava, acima de tudo, a dificuldade de implantação do comunismo nas metrópoles do imperialismo.

Decerto, o impasse foi vencido e um movimento comunista de amplitude nunca antes conhecida imprimiu a sua marca nos acontecimentos deste século, difundindo a consciência democrática e anti-imperialista pelos cinco continentes. Todavia, dominada pela urgência de edificar partidos de massas, capazes de conseguir resultados palpáveis em socorro da Rússia, a Internacional fraccionou a corrente comunista ainda em gestação nas suas duas componentes, sem dar tempo a que uma luta de tendências mais prolongada fizesse uma separação de águas entre o comunismo e o oportunismo.

Prevaleceu assim em praticamente todos os partidos europeus uma atitude centrista na luta de classes e uma tendência de adaptação aos limites da ordem burguesa, escondidas sob o álibi da “fidelidade sem limites à pátria do socialismo”. Por outro lado, os núcleos esquerdistas e anarquizantes, prematuramente marginalizados, foram condenados à degeneração em seitas, privando o movimento de uma boa parte da sua energia vital.

Olhando retrospectivamente essa experiência, podemos admitir que, se tivesse havido condições para uma germinação plena do movimento comunista europeu, poderiam ter daí resultado partidos comunistas com outro arcaboiço para a longa acumulação de forças anticapitalistas e para a luta contra a social-democracia; o que talvez tivesse feito a sua diferença na resistência ao fascismo, na guerra civil de Espanha e mais tarde, no desenlace da guerra mundial, na França, Alemanha, Itália. E, acima de tudo, na luta para minorar as consequências da degeneração e derrocada da União Soviética.

O imperialismo e a revolução

A IC foi formada num ambiente de apocalipse. A hecatombe da guerra, a revolução dos sovietes, a traição da social-democracia, pareciam justificar a ideia de que chegara o colapso geral do sistema e o assalto iminente dos explorados ao poder.

Por isso, até ao fim de 1918, Lenine acreditou que se iriam desencadear na Europa “revoluções proletárias socialistas em cadeia” “num futuro muito próximo”, e tirava conclusões demasiado optimistas das cisões de esquerda que alastravam nos partidos socialistas, sob o impacte da revolução russa. Disse várias vezes que “coube-nos começar a tarefa mas em breve passaremos a ser discípulos do socialismo europeu”. Em fins de 18, ao saber da revolução na Alemanha, exclamou, exultante: “Chegou a revolução mundial!”. Em Janeiro de 1919, na “Carta aos operários da Europa e da América”, ainda afirmava que nos cinco meses anteriores “a revolução proletária mundial amadureceu com extraordinária rapidez”.

Por fim, após três anos de expectativas sempre defraudadas e sempre renovadas no começo da revolução europeia, o governo bolchevique teve que se convencer de que o imperialismo conseguia superar a crise de poder na Europa central e que a Rússia soviética não iria ser rebocada a curto prazo por uma Alemanha soviética. Mas, mesmo depois de a vaga revolucionária começar a refluir, a instabilidade por toda a Europa manteve a convicção de que o capitalismo entrara na sua crise geral irreversível, que perdera a capacidade para voltar a funcionar normalmente e para desenvolver as forças produtivas.

A ilusão tardou em desfazer-se porque parecia evidente que, se na Rússia atrasada a revolução tinha levado os comunistas ao poder, muito mais isso seria possível na Europa, coração do imperialismo. Mas a táctica bolchevique fora possível numa sociedade em plena decomposição, grávida de revolução, com os operários, os camponeses, a pequena burguesia urbana atraídos para o centro do furacão revolucionário. Na Europa, essa situação não existia.

Sacudida poderosamente pelo choque da revolução russa, a Europa não podia todavia detonar crises revolucionárias cujas premissas económico-sociais ainda não estavam reunidas. Não se chegara à crise geral do sistema, à sua incapacidade de reprodução. De facto, mal se iniciava uma longa caminhada imperialista, que prossegue até à actualidade.

Recusando-se a reconhecer a distância a que o proletariado europeu se encontrava da conquista do poder e atribuindo-a a factores subjectivos (insuficiência e erros dos partidos comunistas, terror fascista, traições da social-democracia), a Internacional Comunista só podia cavar um fosso crescente entre a teoria e a prática e caminhar para a sua decomposição.

Com o recuo que nos permitem os anos decorridos, vemos hoje que Lenine, apesar da sua clarividente síntese sobre o imperialismo como capitalismo parasitário e em putrefacção, não conseguiu avaliar em toda a extensão a vitalidade expansiva que ainda restava ao regime burguês, a qual lhe permitiu neutralizar o proletariado sob o envolvimento da pequena burguesia imperialista, bloquear e decompor a revolução ao longo do século XX.

Poderia ter sido evitado este declínio e decomposição da IC? Não o cremos. Os erros e desvios foram a expressão de factores sociais que a eles conduziam necessariamente. A audácia proletária e internacionalista da IC no momento da sua fundação veio-lhe por inteiro da revolução russa. Quando esta se afundou no capitalismo de Estado, tinha que prevalecer a tendência para o movimento operário europeu se deixar recair no reformismo imperialista que já apodrecera a II Internacional. Desta vez com características novas. Em teoria, mantinha-se fidelidade inabalável ao leninismo; mas na prática, tentava-se ganhar lugares nas instituições e servir a burguesia “socialista” da URSS. Por fim, quando se cansaram de esperar em vão pela chegada do milagre russo, os chefes comunistas descobriram que se tinham transformado ao longo dos anos em democratas reformistas, em tudo semelhantes aos Kautsky e Bernstein. Com eles, tinha sido degenerada toda a vanguarda.

Em que circunstâncias e sob que formas poderá renascer a Internacional Comunista? Para muitos, só o facto de se enunciar a questão, revela inclinações “arqueológicas”. Por nós, não temos dúvida de que o movimento operário europeu, passado o fundo da vaga contra-revolucionária, será forçado a retomar o projecto dos comunistas de 1919. Porque o capitalismo parasitário e putrefacto conduz a Europa e o mundo aos umbrais do socialismo. Muito mais perto agora do que no tempo em que Lenine julgava iminente a revolução proletária mundial.


Inclusão 15/11/2016