De um Arranhão, ao Perigo de Gangrena

Leon Trotsky

24 de Janeiro de 1940

Transcrição autorizada
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Primeira Edição: Leon Trotsky, In Defense of Marxism, New York 1942.
Fonte: "Em Defesa do Marxismo", publicação da Editora "Proposta Editorial"
Direitos de Reprodução: © Editora Proposta Editorial. Agradeçemos a Valfrido Lima pela autorização concedida.


A discussão está se desenvolvendo com sua própria lógica interna. Cada campo, de acordo com seu caráter social e sua fisionomia política, ataca nos pontos em que seu rival é mais débil e vulnerável. É precisamente isso que determina o curso da discussão e não os planos, a priori, dos líderes da oposição. Agora é tarde e estéril lamentar que a discussão tenha rebentado. Só é necessário vigiar atentamente o papel desempenhado pelos provocadores stalinistas que, sem dúvida, existem no partido e que têm ordens de envenenar a atmosfera da discussão e dirigir a luta ideológica em direção à cisão. Não é tão difícil reconhecer estes cavalheiros; seu zelo é excessivo e, claro, artificial; substituem as idéias e argumentos por boatos e calúnias. Têm que ser descobertos e expulsos com os esforços conjuntos de ambas as frações. Mas a luta principal deve ser levada até o fim, quer dizer, até um sério esclarecimento das mais importantes questões colocadas. É necessário aproveitar assim a discussão, para elevar o nível teórico do partido.

Uma parte considerável dos membros da seção americana, assim como de toda a nossa jovem Internacional, vieram da Internacional Comunista no seu período de decadência, ou da Segunda Internacional. Estas são más escolas. A discussão revelou que amplos círculos do partido carecem de uma firme educação teórica. Por exemplo, basta nos referirmos ao fato de que a seção de Nova Iorque não ter respondido com uma vigorosa ação defensiva as tentativas de uma irrefletida revisão do programa e da doutrina marxista, mas, ao contrário, em sua maioria deram apoio aos revisionistas. Tal coisa é lamentável, mas remediável à medida que nossa seção americana e toda a Internacional estão integradas por indivíduos honestos que procuram sinceramente o seu caminho para a via revolucionária. Eles têm desejo e vontade de aprender. Mas não há tempo a perder. É precisamente a penetração do partido nos sindicatos e nos meios operários em geral, o que exigirá a elevação da qualidade teórica dos nossos quadros. Ao dizer quadros não me refiro ao "aparato", mas sim ao partido como conjunto. Todo membro do partido deve se considerar um oficial do exército proletário.

Agora, os oposicionistas perguntam ironicamente aos representantes da maioria: "desde quando vocês se tomaram especialistas em questões de filosofia?" Aqui, a ironia está completamente fora do lugar. O socialismo científico é a expressão consciente do processo histórico inconsciente; quer dizer, a tendência elementar e instintiva do proletariado para reconstruir a sociedade sobre princípios comunistas. Estas tendências orgânicas na psicologia dos operários vêm à tona, com extrema rapidez, na época de crises e guerras. A discussão revelou por detrás de todo o problema um conflito no interior do partido, entre uma tendência pequeno-burguesa e uma tendência proletária. A tendência pequeno-burguesa revela sua confusão no esforço em reduzir o programa do partido ao estreito limite das questões "concretas". A tendência proletária, ao contrário, procura correlacionar todas as questões parciais numa unidade teórica. O que está em causa atualmente não é o quanto cada membro da maioria aplica conscientemente o método dialético. O importante é o fato de que a maioria em seu conjunto se orienta para um posicionamento proletário sobre os problemas, e precisamente por isso tende a assimilar a dialética, que é a "álgebra da revolução". Os oposicionistas — segundo me informam — recebem com gargalhadas a simples menção da palavra "dialética". Em vão. Este método sem valor não ajudará. A dialética do processo histórico castigou cruelmente mais de uma vez, quem zombou dela.

O último artigo do camarada Shachtman, "Carta aberta a Leon Trotski", é um sintoma alarmante. Revela que Shachtman se recusa a aprender com a discussão e que, em lugar disso, persiste em aprofundar os seus erros, explorando para isso não só o inadequado nível teórico do partido, como também os preconceitos específicos de sua ala pequeno-burguesa. Todo mundo conhece a facilidade com que Shachtman consegue reunir diversos episódios históricos em torno de um ou outro eixo. Esta capacidade faz de Shachtman um talentoso jornalista. Infelizmente, isto por si só não basta. A questão fundamental é que eixo escolher. Shachtman está sempre absorvido pelo reflexo da política na literatura e na imprensa. Não lhe interessa o verdadeiro processo da luta de classes, a vida das massas, a inter-relação entre as diferentes camadas dentro da classe operária etc. Li não poucos excelentes e até brilhantes artigos de Shachtman, mas nunca vi nem um só comentário seu que mergulhe realmente na vida da classe operária americana ou da sua vanguarda.

É necessário limitar um pouco este ponto: aqui não está só representado o defeito pessoal de Shachtman, como também o destino de toda uma geração revolucionária que, devido a uma conjuntura especial de condições históricas, cresceu à margem do movimento operário. Tive ocasião mais do que uma vez, de falar e escrever, no passado, sobre o perigo de que estes valiosos elementos se degenerem, apesar da sua dedicação à revolução. O que nos seus dias foi uma inevitável característica da adolescência, transformou-se em debilidade. A debilidade convida à doença. Se há um descuido, a doença pode ser fatal. Para escapar a este perigo é necessário abrir conscientemente um novo capítulo no desenvolvimento do partido. Os propagandistas e jornalistas da Quarta Internacional devem iniciar um novo capítulo em sua própria consciência. É necessário rearmar-se. É necessário fazer uma rotação sobre o próprio eixo: voltar as costas aos intelectuais pequeno-burgueses e olhar para os operários.

Seria difícil conceber um erro mais perigoso para o partido do que considerar como causa da sua crise atual o conservadorismo do seu setor operário, a procura de uma solução para a crise através do triunfo do bloco pequeno-burguês. Na realidade, a chave da atual crise consiste no conservadorismo dos elementos pequeno-burgueses que passaram por uma escola puramente propagandística, e não encontraram ainda uma trilha em direção ao caminho da luta de classes. A crise atual é a luta final destes elementos pela sua autoconservação. Como indivíduo, todo oposicionista pode encontrar, se assim desejar, firmemente, um lugar para si dentro do movimento revolucionário. Como fração estão condenados a morrer. Na luta que se desenvolve, Shachtman não está no campo que devia estar.

Como sempre, nestes casos, seus traços fortes passaram para segundo plano, enquanto que, por outro lado, seus traços débeis assumiram uma expressão particularmente acabada. A sua "Carta aberta" representa, por assim dizer, uma cristalização de seus traços débeis.

Shachtman esqueceu um detalhe: a sua posição de classe. Daí os seus extraordinários ziguezigues, seus saltos e improvisos. Substitui a análise de classe por anedotas históricas desconexas, com o único propósito de ocultar a sua própria mudança, de camuflar a contradição entre o seu passado e o seu presente. Assim procede Shachtman a respeito da história do marxismo, da história do seu próprio partido e da história da Oposição russa. Ao fazê-lo, acumula erros sobre erros. Como veremos, todas as analogias históricas a que recorre falam contra ele.

É bem mais difícil corrigir os erros do que cometê-los. Devo pedir paciência ao leitor para seguir comigo, passo a passo, todos os ziguezigues das operações mentais de Shachtman. De minha parte, prometo não me limitar simplesmente a expor os erros e contradições, mas contrapor do princípio ao fim a posição proletária contra a pequeno-burguesa, a posição marxista contra a eclética. Desta maneira, talvez todos nós aprendamos algumas coisas com a discussão.

"Precedentes"

"Como é que nós, revolucionários irreconciliáveis, nos transformamos tão repentinamente numa tendência pequeno-burguesa?", exclama Shachtman com indignação. Onde estão as provas? "Em que se manifestou essa tendência durante o último (!) ou os dois últimos anos entre os porta-vozes da minoria?" (Boletim Interno. vol. 11, n° 7, janeiro de 1940, P. 11) Por que não sucumbimos, no passado, à influência da democracia pequeno-burguesa? Por que é que durante a guerra civil espanhola...? e assim interminavelmente. Este é o argumento forte de Shachtman para dar início à sua polêmica comigo e sobre o qual já colocou variações em todos os tons, dando-lhe aparentemente excepcional importância. Nem sequer entrou na cabeça de Shachtman que posso voltar este argumento contra ele.

O documento da oposição "A guerra e o conservadorismo burocrático" admite que Trotski tem razão de nove entre dez casos, talvez noventa e nove casos em cem. Compreendo muito bem o caráter qualificado e extremamente magnânimo desta concessão. A proporção dos meus erros é, na verdade, consideravelmente superior. Como explicar, então, o fato de que duas ou três semanas depois de escrito este documento, Shachtman decidisse subitamente que Trotski:

a) É incapaz de ter uma atitude crítica em relação à informação que lhe é dada, ainda que um dos seus informantes tenha sido, durante dez anos, o próprio Shachtman;

b) É incapaz de distinguir uma tendência bolchevique de uma tendência menchevique;

c) É o defensor da absurda concepção de "revolução burocrática” ao invés da revolução das massas;

d) É incapaz de elaborar uma resposta correta às questões concretas da Polônia, Finlândia etc.;

e) Manifesta uma tendência a capitular perante o stalinismo;

f) É incapaz de compreender o significado do centralismo democrático... e assim ad infinitum.

Numa palavra, durante o espaço de duas ou três semanas, Shachtman descobriu que cometi erros em noventa e nove casos entre cem, especialmente quando o próprio Shachtman encontra-se envolvido neles. Isto me faz lembrar que esta percentagem sofre também um ligeiro exagero, mas desta vez em sentido oposto. Em todos os acontecimentos, Shachtman descobriu a minha tendência a substituir a revolução das massas pela "revolução burocrática" de forma bem mais brusca do que eu, quando descobri seu desvio pequeno-burguês.

O camarada Shachtman convida-me a apresentar provas da existência de uma "tendência pequeno-burguesa" no partido durante o ano passado ou há dois ou três anos. Shachtman está completamente perdoado por não querer referir-se a um passado mais distante. Mas de acordo com o convite de Shachtman, reportar-me-ei aos últimos três anos. Prestem atenção. Às questões retóricas da minha crítica inexorável, responderei com alguns documentos fiéis.

I

Em 25 de maio de 1937, escrevi para Nova Iorque, sobre a política da fração bolchevique-leninista do Partido Socialista:

"... Devo citar dois documentos recentes: a) a carta particular de 'Max' sobre o Congresso e b) o artigo de Shachtman intitulado 'Em direção a um Partido Socialista Revolucionário'. Só o título deste artigo caracteriza uma falsa perspectiva. Parece-me que o desenvolvimento dos acontecimentos, incluindo o último Congresso, demonstra que o partido está evoluindo não em direção a um partido 'revolucionário', mas para uma espécie de ILP(1), quer dizer, um miserável aborto político centralista, sem nenhuma perspectiva.

“A afirmação de que o Partido Socialista Americano está atualmente mais próximo da posição do marxismo revolucionário do que nenhum outro partido da Segunda ou Terceira Internacional' é uma cortesia absolutamente não merecida: o Partido Socialista Americano só está mais atrasado que as formações análogas da Europa — o POUM, o ILP, o SAP(2) etc. Nosso dever é desmascarar esta vantagem negativa de Norman Thomas e companhia, e não falar da 'superioridade' (da resolução sobre a guerra) sobre qualquer outra resolução adotada anteriormente pelo partido... Esta apreciação é puramente literária, porque toda a resolução deve ser considerada em relação aos acontecimentos históricos, com a situação política e as suas necessidades imperativas..."

Em ambos os documentos mencionados na carta anterior, Shachtman revelou uma excessiva adaptabilidade em relação à ala esquerda dos democratas pequeno-burgueses — mimetismo político —, sintoma muito perigoso em um político revolucionário! É extremamente importante tomar nota da sua elevada apreciação sobre a posição "radical" de Norman Thomas a respeito da guerra... na Europa. Os oportunistas, como é bem sabido, tendem ao maior radicalismo quanto mais longe estão dos acontecimentos. Tendo presente esta lei, não é difícil apreciar no seu verdadeiro valor o fato de que Shachtman e seus aliados nos acusem de uma tendência a "capitular ao stalinismo". Aí! Sentado no Bronx é bem mais fácil desenvolver irreconciliabilidade em relação ao Kremlin que em relação à pequena-burguesia americana.

II

Se acreditássemos no camarada Shachtman, eu forçaria para que a questão da composição de classe das frações fossem disputadas no muque.

Em 3 de outubro de 1937, escrevi, para Nova Iorque:

“Assinalei centenas de vezes que o operário que permanece desapercebido nas condições 'normais' da vida partidária, revela notáveis qualidades numa mudança de situação, quando já não bastam, as fórmulas gerais e trabalhos teóricos fluentes, quando é necessário conhecer a vida dos operários e suas capacidades práticas. Nessas condições, um operário bem dotado revela segurança em si próprio e revela também a sua capacidade política geral.

"O predomínio dos intelectuais na organização é inevitável no primeiro período do desenvolvimento da organização. Ao mesmo tempo, é um grande obstáculo para a educação política dos operários mais dotados... É absolutamente necessário que no próximo Congresso se introduzam tantos operários quanto seja possível nos comitês central e locais. Para um operário, a atividade nos corpos dirigentes do partido é ao mesmo tempo uma alta escola política...

"A dificuldade é que em toda a organização há membros tradicionais de comitês, e aquelas diferentes considerações secundárias, fracionais e pessoais, desempenham 'um papel demasiado grande na composição da lista de candidatos".

Nunca mereci a atenção e o interesse do camarada Shachtman em questões desta índole.

III

Se acreditássemos no camarada Shachtman, eu teria apresentado a questão da fração do camarada Abern como uma concentração de indivíduos pequeno-burgueses, artificiais e sem nenhuma base real. No entanto, em 10 de outubro de 1937, numa época em que o camarada Shachtman marchava ombro a ombro com Cannon, e se considerava oficialmente que o camarada Abern não tinha fração, eu escrevia a Cannon:

"O partido só tem uma minoria de verdadeiros operários fabris... Os elementos não-proletários representam uma levedura necessária, e creio que podemos estar orgulhosos da boa qualidade destes elementos... mas... o nosso partido pode se ver inundado por elementos não-proletários e pode até perder o seu caráter revolucionário. A tarefa não consiste, naturalmente, em impedir a afluência de intelectuais mediante métodos artificiais... mas sim orientar praticamente todas as organizações para as fábricas, as greves, os sindicatos...

"Um exemplo concreto: não podemos dedicar forças iguais ou suficientes a todas as fábricas. As nossas organizações locais podem escolher para a sua atividade no próximo período, uma, duas ou três fábricas dentro de sua área e concentrar todas as suas forças sobre essas fábricas. Se numa delas temos dois ou três operários, podemos criar uma comissão especial de apoio de cinco não-operários com o propósito de ampliar nossa influência nessas fábricas.

"O mesmo pode se fazer nos sindicatos. Não podemos introduzir militantes não-operários nos sindicatos operários. Mas podemos formar, com êxito, comissões de apoio para a ação oral e literária, relacionadas aos nossos camaradas do sindicato. As condições invioláveis deveriam ser: não mandar nos operários, mas sim apenas ajudá-los, dar-lhes sugestões: armá-los com os fatos, idéias, jornais de fábrica, boletins especiais, etc.

"Semelhante colaboração teria uma enorme importância educativa, de um lado, para os camaradas operários, e, de outro lado para os não-operários que precisam de uma sólida reeducação.

"Por exemplo, vocês possuem em suas fileiras um importante número de elementos judeus não-operários. Eles podem ser uma levedura muito valiosa se o partido conseguir retirá-los de um meio fechado e ligá-los através da atividade quotidiana aos operários fabris. Creio que esta orientação asseguraria também uma atmosfera mais saudável no interior do partido...

"Podemos estabelecer de imediato uma regra geral: um membro do partido que não consiga ganhar um novo operário para o partido em 3 ou 6 meses não é um bom membro do partido.

"Se estabelecemos, seriamente, esta orientação geral, e se verificamos a cada semana os resultados práticos, evitaremos um grande perigo; a saber, que os intelectuais e os assalariados de outros setores afoguem a minoria operária, silenciando-a e transformem o partido num clube de discussão muito inteligente, mas absolutamente inabitável para os operários.

"As mesmas regras devem ser elaboradas da mesma forma para o trabalho e recrutamento da organização de juventude; do contrário, corremos o perigo de formar bons elementos jovens como diletantes revolucionários, e não como combatentes revolucionários".

Creio que esta carta deixa claro que não mencionei o perigo de um desvio pequeno-burguês no dia seguinte ao pacto HitlerStalin ou no dia seguinte ao desmembramento da Polônia, mas sim que adiantava essa possibilidade, com persistência, já há dois anos ou mais. Além disso, como assinalei então, levando-se em conta sobretudo a fração "inexistente" de Abern, para poder purificar a atmosfera do partido, era absolutamente indispensável que os elementos judeus pequeno-burgueses da seção de Nova Iorque fossem retirados do seu ambiente conservador habitual e distribuídos no verdadeiro movimento operário. Exatamente por isto, a carta transcrita acima, (não é a primeira do gênero), escrita mais de dois anos antes que começasse a atual discussão, e sobre os motivos que me levaram a sair em defesa da "camarilha de Cannon", é uma prova de peso muito maior que todos os escritos dos líderes da oposição.

IV

A inclinação de Shachtman para ceder à influência pequeno-burguesa, especialmente a acadêmica e literária, não foi nunca um segredo para mim. Durante a época da Comissão Dewey, escrevi a Cannon, Shachtman e Warde, em 14 de outubro;

"... Insisti na necessidade de rodear o Comitê de delegados de grupos de operários, a fim de criar canais entre o Comitê e as massas. Os camaradas Warde, Shachtman e outros afirmaram estar de acordo comigo sobre este ponto. Analisamos em comum as possibilidades práticas de realizar este plano... Mas, posteriormente, apesar das minhas repetidas perguntas, não pude nunca ter informação sobre o assunto, e só acidentalmente fiquei sabendo que o camarada Shachtman se opunha. Por quê? Não sei".

Shachtman nunca me deu a conhecer as suas razões. Em minha carta expressei-me com a maior diplomacia, mas não tinha a menor dúvida de que, se bem que Shachtman estava, em palavras, de acordo comigo, temia na verdade ferir a excessiva sensibilidade política dos seus temporários aliados liberais: neste sentido, Shachtman demonstra uma excepcional "delicadeza".

V

Em 15 de Abril de 1938, escrevi para Nova Iorque:

"Estou um pouco admirado pelo tipo de publicidade dado à carta de Eastman em New International. A publicação da carta é correta, mas a importância que lhe é dada na capa, combinada com o silêncio sobre o artigo de Eastman em Harper's, parece-me um pouco comprometedor para o New International. Muita gente irá interpretar este fato como uma disposição nossa, para fechar os olhos a questões de princípios, quando existe amizade pelo meio".

VI

No dia 1 de junho de 1938, escrevi ao camarada Shachtman:

“Aqui, é difícil compreender porque é que você tem uma atitude tão tolerante, e até mesmo amistosa com Mr. Eugene Lyons. Segundo me parece, ele fala sobre seus jantares, e, ao mesmo tempo, fala nos banquetes dos Guardas Brancos".

Esta carta continuava a luta por uma política mais independente e resoluta para com os chamados "liberais", que, ao mesmo tempo em que desenvolvem uma luta contra a revolução, desejam manter "relações amistosas" com o proletariado, pois isto aumenta seu valor de mercado perante os olhos da opinião pública burguesa.

VII

Em 6 de outubro de 1938, quase um ano antes de começar a discussão, escrevi sobre a necessidade de que a nossa imprensa partidária se voltasse decididamente para os trabalhadores:

"Neste aspecto é muito importante a atitude do Socialist Appeal. Trata-se, sem dúvida de um jornal marxista muito bom, mas não um verdadeiro instrumento de ação política... Tentei fazer com que o comitê de redação de Socialist Appeal se interessasse sobre esta questão, mas sem êxito".

Fica evidente, nestas palavras, um tom de queixa. O camarada Shachtman, como já disse, dedica muito mais interesse aos episódios literários isolados, de lutas já há muito concluídas, do que à composição social do seu próprio partido ou dos leitores do seu próprio jornal.

VIII

Em 20 de Janeiro de 1939, numa carta que já citei, sobre o materialismo dialético, toquei uma vez mais na questão da gravitação do camarada Shachtman em torno do ambiente da fraternidade literária pequeno-burguesa.

"Não posso compreender porque é que o Socialist Appeal dá quase por inexistente o partido stalinista. Este partido representa, atualmente, uma massa de contradições. As cisões são inevitáveis. As próximas aquisições importantes virão certamente do partido stalinista. A nossa atenção política deve concentrar-se nele. Devemos seguir o desenvolvimento das suas contradições, dia-a-dia, hora-a-hora. Algum dos camaradas da direção deve dedicar o grosso do seu tempo às atividades e planos stalinistas. Podemos provocar uma discussão e, se for possível, publicar as cartas de stalinistas hesitantes".

"Seria mil vezes mais importante que convidar Eastman, Lyons e outros, para apresentarem os seus suores individuais. Espantou-me um pouco que você desse tanta importância ao último insignificante e arrogante artigo de Eastman... Mas estou absolutamente perplexo pelo fato de que você, pessoalmente, convide essa gente para sujar as poucas numerosas páginas de New International. A perpetuação desta polêmica pode interessar alguns intelectuais pequeno-burgueses, mas não os elementos revolucionários."

"Tenho a firme convicção de que é necessária uma certa reorganização em New International e em Socialist Appeal: mais distância de Eastman, Lyons, etecétera, e estar mais próximo dos operários e, neste sentido, do partido stalinista".

Os recentes acontecimentos demonstraram, é lamentável dizê-lo, que Shachtman não se afastou de Eastman e companhia, mas que, ao contrário, se aproximou deles.

IX

Em 27 de maio de 1939, escrevi novamente sobre o caráter do Socialist Appeal, em relação à composição social do partido:

"Pelas atas, vejo que está tendo dificuldades com o Socialist Appeal. O jornal está muito bem feito sob o ponto de vista jornalístico; mas é um jornal para os operários e não um jornal operário...

"Tal como é, o jornal está dividido entre vários escritores, cada um deles muito bom, mas de conjunto não permitem que os operários penetrem nas páginas do Appeal. Cada um deles fala para os operários (e fala muito bem), mas nenhum escuta os operários. Apesar do seu brilhantismo literário, o jornal tornou-se vítima, de certa forma, da rotina jornalística. Vocês não dão a menor importância à forma como vivem os operários, como lutam, como se batem com a polícia ou como tomam whisky. Isso é muito perigoso para o jornal, como instrumento revolucionário do partido. A tarefa não consiste em fazer um jornal através dos esforços conjuntos de um qualificado comitê de redação, mas sim em alentar os operários a se expressarem por si mesmos.

"É necessário, como condição de êxito, efetuar uma mudança valente e radical...

"Naturalmente, não é só uma questão do jornal, mas sim de todo o curso da política. Continuo com a minha opinião de que têm muitos moços e moças pequeno-burgueses que são muito bons e dedicados ao partido, mas que não se dão conta, plenamente, de que o seu dever não é discutir entre eles mas sim penetrar no meio dos operários. Repito a minha proposta: todo membro pequeno-burguês do partido que durante certo tempo, digamos três ou seis meses, não ganhe um operário para o partido, deve ser transferido para a categoria de simpatizante e, depois de outros três meses, expulso do partido. Em alguns casos poderia parecer injusto, mas o partido, no seu conjunto receberia um choque saudável, que muito necessita. É necessária uma mudança radical."

Ao propor medidas tão draconianas como a expulsão dos elementos pequeno-burgueses incapazes de se ligarem aos operários, não tinha em mente a "defesa" da fração de Cannon, mas sim salvar o partido da degeneração.

X

Comentando as palavras céticas do Socialist Workers Party, que tinham chegado aos meus ouvidos, escrevi ao camarada Cannon, em 16 de Junho de 1939:

“A situação de pré-guerra, o agravamento do nacionalismo, etecétera, são obstáculos naturais para o nosso desenvolvimento e a causa profunda da depressão em nossas fileiras. Mas devemos sublinhar agora que quanto mais pequeno-burguesa for a composição do partido, mais estará sujeito às mudanças da opinião pública oficial. É mais um argumento a favor da necessidade de se realizar uma valente e ativa reorientação em direção às massas.

"Os raciocínios pessimistas são, naturalmente, um reflexo da pressão nacionalista, patriótica, da opinião pública oficial. 'Se o fascismo triunfar na Inglaterra...’ ‘Se o fascismo triunfar na França...’ E assim por diante. Os triunfos do fascismo são importantes, mas a agonia do capitalismo é mais importante".

Assim, a questão da dependência da ala pequeno-burguesa do partido perante a opinião pública oficial foi colocada vários meses antes do início da atual discussão e não foi, de modo nenhum, trazida artificialmente para desacreditar a oposição.

***

O camarada Shachtman exigiu que eu fornecesse "precedentes" sobre as tendências pequeno-burguesas entre os dirigentes da oposição durante o período passado. Fui tão longe na resposta à sua pergunta, a ponto de selecionar entre os líderes da oposição, o próprio Shachtman. Estou longe de ter esgotado o material que tenho à minha disposição. Citarei mais à frente, duas cartas — uma de Shachtman, outra minha — que são, talvez, ainda mais interessantes como "precedentes". E que Shachtman não objete que os erros e esquecimentos a que se refere a correspondência também podem ser utilizados contra outros camaradas, incluindo representantes da atual maioria. Possivelmente. Provavelmente. Mas não é casual que o nome de Shachtman se repita nesta correspondência. Onde outros cometeram erros episódicos, Shachtman evidenciou uma tendência.

Em todo o caso, e em completa oposição ao que agora Shachtman pretende sobre as minhas "repentinas" e "inesperadas" apreciações, posso demonstrar, com documentos na mão — e creio tê-lo demonstrado — que o meu artigo sobre a "Oposição pequeno-burguesa" não foi mais do que o resumo da minha correspondência com Nova Iorque durante os últimos três anos (na realidade, os dez últimos anos). Shachtman pediu "precedentes" de forma muito demonstrativa. Dei-lhe "precedentes". Falam totalmente contra Shachtman.

O bloco filosófico contra o marxismo

Os círculos da oposição consideram possível afirmar que a questão do materialismo dialético foi introduzida por mim só porque me faltava uma resposta às questões "concretas" da Finlândia, Letônia, Índia, Afeganistão, Baluchistão etc. No entanto, este argumento, carente de qualquer mérito em si mesmo, é interessante na medida em que caracteriza o nível de certos indivíduos da oposição, sua atitude em relação à teoria e à fidelidade lógica elementar. Portanto, não seria inoportuno referirmos-nos ao fato de que a minha primeira conversa séria com os camaradas Shachtman e Warde no trem, e imediatamente após minha chegada ao México, em janeiro de 1937, foi consagrada à necessidade de propagandear persistentemente o materialismo dialético. Depois que a nossa seção americana se separou do Partido Socialista, insisti energicamente na publicação, o mais rápido possível, de um órgão teórico, tendo de novo em mente a necessidade de educar o partido, e principalmente, os seus novos membros, no espírito do materialismo dialético. Nos Estados Unidos — escrevi então — onde a burguesia inocula sistematicamente o empirismo vulgar nos trabalhadores, é mais necessário que em qualquer outra parte apressar a elevação do movimento a um nível adequado. Em 20 de janeiro de 1939, escrevi ao camarada Shachtman, sobre o seu artigo, em colaboração com o camarada Burnham, "Intelectuais em retirada":

"O parágrafo sobre a dialética é o golpe mais rude que você, pessoalmente, como editor de New lnternational, podia ter assentado na teoria marxista... Bem! Falaremos disto publicamente."

Assim, há um ano, adiantando-me a Shachtman, anunciei abertamente que tinha o propósito de empreender uma luta pública contra suas tendências ecléticas. Naquele momento, não se falou nada sobre o surgimento da oposição; em todo o caso, estava muito longe da minha mente a suposição de que o bloco filosófico contra o marxismo preparava o terreno para um bloco político contra o programa da Quarta Internacional.

O caráter das diferenças que vieram à tona só confirmaram os meus temores anteriores, tanto no que se refere à composição social do partido como à educação teórica dos quadros. Não houve nada que requeresse uma mudança de pensamento ou uma introdução "artificial". Assim são as coisas na realidade. Seja-me permitido acrescentar que me sinto um tanto envergonhado ante o fato de sentir como quase necessário me justificar para sair em defesa do marxismo dentro de uma das seções da Quarta Internacional!

Na sua "Carta aberta", Shachtman se refere particularmente ao fato de que o camarada Vicent Dunne expressou satisfação a respeito do artigo sobre os intelectuais. Mas eu também gostei: "Muitas partes são excelentes". No entanto, como diz o provérbio russo, "uma colherada de alcatrão pode estragar todo um barril de mel". Trata-se precisamente desta colherada de alcatrão. A seção consagrada ao materialismo dialético expressa um número de concepções monstruosas, do ponto de vista marxista, cuja finalidade, agora é claro, foi preparar o terreno para o bloco político. Perante a obstinação com que Shachtman persiste em afirmar que eu me aferrei ao artigo como pretexto, permita-me citar uma vez mais a passagem principal da parte que nos interessa:

"... ninguém demonstrou ainda que o acordo ou o desacordo sobre as doutrinas mais abstratas do materialismo dialético afete necessariamente (!) as tarefas políticas concretas de hoje e de amanhã; e os partidos políticos, os programas e lutas baseiam-se em tais tarefas concretas" (New lnternational, janeiro de 1939, p. 7) Isso não é bastante? E acima de tudo, o que é assombroso nesta fórmula indigna de revolucionários: "os partidos políticos, programas e lutas baseiam-se em tais tarefas concretas". Que partidos? Que programas? Que lutas? Todos os partidos e todos os programas encontram-se aqui amontoados, juntos. O partido do proletariado é um partido diferente de todos os outros. Não se baseia, de modo algum, em "tais tarefas concretas". Opõe-se diametralmente, na sua própria base, aos partidos dos mercados burgueses e dos ferro-velho pequeno-burgueses. Sua tarefa é a preparação de uma revolução social e a regeneração da humanidade sobre novas bases materiais e morais. Com o objetivo de não abandonar seu caminho, sob a pressão da opinião pública burguesa e da repressão policial, o revolucionário, e com maior razão um dirigente, necessita de uma concepção clara, sagaz, do mundo, completamente sistematizada. Sobre a base de uma concepção marxista única, é possível abordar corretamente as questões "concretas".

Exatamente aqui começa a traição de Shachtman — não um mero erro, como quis fazer crer no passado, mas sim, como fica agora claro, uma franca traição teórica. Seguindo os passos de Burnham, Shachtman ensina ao jovem partido revolucionário que "ninguém ainda demonstrou, razoavelmente" que o materialismo dialético afete a atividade política do partido. "Ninguém ainda demonstrou", em outras palavras, que o marxismo tenha alguma utilidade para a luta do proletariado. Conseqüentemente, o partido não tem o menor motivo para conhecer e defender o materialismo dialético. Isto não é mais do que renunciar ao marxismo, ao método científico em geral, uma lamentável capitulação ao empirismo. Precisamente, é isto que constitui o bloco filosófico de Shachtman com Burnham, e através de Burnham, com os sacerdotes da "Ciência" burguesa. Era precisamente a isto, e só a isto que me referia na minha carta de 20 de janeiro do ano passado.

Em 5 de março, Shachtman respondeu: "Reli o artigo de Burnham e Shachtman datado de janeiro, a que você se referiu. E ainda que a este propósito você tenha me escrito dizendo que eu deveria ter proposto uma formulação diferente aqui (!) e ali (!) se se trata de fazer o artigo de novo, não posso estar de acordo com a essência de sua crítica".

Esta resposta, como acontece sempre com Shachtman numa situação séria, na realidade não expressa absolutamente nada, mas dá ainda a impressão de que Shachtman deixou uma ponte aberta para a retirada. Agora, apanhado pelo frenesi fracional, promete "fazê-lo de novo e muitas vezes amanhã". Fazer o quê? Capitular perante a "Ciência" burguesa? Renunciar ao marxismo?

Shachtman explica-me extensamente (já veremos em breve sob que fundamento) a utilidade deste ou daquele bloco político. Eu falo sobre a natureza mortífera da traição política. Um bloco pode ser ou não justificado de acordo com o seu conteúdo e circunstâncias. Nenhum bloco pode justificar a traição teórica. Shachtman refere-se ao fato de que o seu artigo é de caráter puramente político. Eu não falo do artigo, mas sim da seção que renuncia ao marxismo. Se um livro de física contiver, ainda que fossem só duas linhas sobre Deus como a causa primeira, estaria no meu direito concluir que o autor é um obscurantista.

Shachtman não responde à acusação, e tenta distrair a atenção, voltando-se para assuntos sem importância. Ele pergunta; No que é que, aquilo que você chama de meu "bloco com Burnham" difere, na esfera filosófica, do bloco de Lênin com Bogdanov? Por que é que este tinha princípios e o nosso não? Interessar-me-ia muito conhecer a resposta a esta pergunta". Ocupar-me-ei em seguida da diferença política, ou melhor dito, da diametral oposição política entre ambos os blocos. Aqui interessa-nos a questão do método marxista. Onde está a diferença que você questiona? No fato de que Lênin nunca proclamou, em benefício de Bogdanov, que o materialismo dialético fosse supérfluo para resolver "questões políticas concretas". No fato de que Lênin nunca confundiu teoricamente o partido bolchevique com os partidos em geral. Ele era organicamente incapaz de proferir semelhantes abominações. E não só ele, mas sim qualquer bolchevique sério. Essa é a diferença. Você compreende? Sarcasticamente, Shachtman prometeu-me que lhe "interessaria" uma resposta clara. Espero ter lhe dado uma resposta clara. Não exijo o "interesse".

O abstrato e o concreto. Economia e política

A parte mais lamentável do lamentável escrito de Shachtman é o capítulo "O Estado e o caráter da guerra". "Qual é então a nossa posição?", pergunta o autor. "Simplesmente esta: é impossível deduzir diretamente nossa política a respeito de uma guerra específica, a partir de uma caracterização abstrata sobre o caráter de classe do Estado envolvido na guerra; mais particularmente, a partir das formas de propriedade prevalecentes nesse Estado. A nossa política deve partir de um exame concreto do caráter da guerra, em relação aos interesses da revolução socialista internacional". (Op. cit. p. 13, sublinhado por mim, L.T.) Que confusão! Que embrulhada sofística! Se é impossível deduzir a nossa política diretamente do caráter de classe de um Estado, então, por que não poderia se conseguir isso indiretamente? Por que é que a análise do caráter do Estado tem que ser abstrato, enquanto que a análise do caráter da guerra é concreto? Falando formalmente, pode-se dizer com o mesmo direito — na realidade com muito mais direito — que a nossa política em relação à URSS, pode ser deduzida não de uma caracterização abstrata da guerra como "imperialista", mas sim de uma análise concreta do caráter do Estado, na situação histórica dada. O filosofismo fundamental sobre o qual Shachtman constrói todo o resto é bastante simples: uma vez que a base econômica não determina imediatamente os acontecimentos da superestrutura; uma vez que só a caracterização de classe do Estado não basta para resolver as tarefas práticas, portanto... portanto, podemos ir adiante sem examinar a economia e a natureza de classe do Estado, substituindo-a, como as frases de Shachtman em sua gíria jornalística, pelas "realidades dos acontecimentos vivos". (Op. cit. p. 14)

O mesmo argumento que Shachtman fez circular para justificar o seu bloco filosófico com Burnham (o materialismo dialético não determina imediatamente nossa política, por conseguinte... não afeta em geral as "tarefas políticas concretas") repete-se aqui, palavra por palavra, em relação à sociologia marxista; portanto, uma vez que as formas de propriedade não determinam imediatamente a política de um Estado, é possível, ao se determinar as "tarefas políticas concretas", jogar fora a sociologia marxista em geral.

Mas, porque se detém aí? Já que a lei do valor do trabalho não determina os preços "direta" nem "imediatamente"; já que as leis da seleção natural não determinam "direta" nem "indiretamente" o nascimento de um porco glutão; já que as leis da gravidade não determinam "direta" nem "imediatamente" o rolar de um policial bêbado por uma escada, então... então, deixemos Marx, Darwin, Newton e todos os demais enamorados das "abstrações" colecionarem pó nas prateleiras. Isto não é nada mais do que o enterro solene da ciência, já que, afinal, o curso inteiro do desenvolvimento da ciência procede das causas "diretas" e "imediatas" até das mais remotas e profundas, das múltiplas variedades e acontecimentos caleidoscópicos até a unidade das forças diretrizes.

A lei do valor do trabalho não determina os preços "imediatamente", mas, no entanto, determina-os. Fenômenos "concretos" tais como a bancarrota da política do New Deal encontram a sua explicação, em última análise, na "abstrata" lei do valor. Roosevelt não o sabe, mas um marxista toma o cuidado de não agir sem conhecê-la. Não de uma forma imediata, mas através de toda uma série de fatores intermediários e sua interação recíproca, as formas de propriedade determinam não só a política, mas também a ética. Um político proletário que tente ignorar a natureza de classe do Estado acabaria invariavelmente como o policial que ignora as leis da gravidade; quer dizer, quebrando o nariz.

É evidente que Shachtman não leva em conta a diferença entre o abstrato e o concreto. Esforçando-se em ser concreta, a nossa mente opera com abstrações. Mesmo "este", "dado", "concreto", cachorro é uma abstração porque começa a mudar, por exemplo, baixando seu rabo no "momento" em que o tocamos com o dedo. O concreto é um concreto relativo e não absoluto: o que é concreto num caso, se torna abstrato em outro; quer dizer, insuficientemente definido para um determinado propósito. Com o objetivo de obter um conceito suficientemente "concreto" para uma necessidade dada é preciso correlacionar várias abstrações numa só, exatamente da mesma forma como quando reproduzimos um segmento de vida numa tela, que é um filme em movimento, temos que combinar certo número de fotografias fixas.

O concreto é uma combinação de abstrações, não uma combinação arbitrária ou subjetiva, mas que corresponde às leis do movimento de um fenômeno determinado.

"Os interesses da revolução socialista internacional" aos quais Shachtman apela, contra a natureza de classe do Estado, representam neste caso dado, a mais vaga das abstrações. Afinal de contas, a questão que nos ocupa é precisamente esta: de que forma concreta podemos promover os interesses da revolução? Também não seria inoportuno recordar, que a tarefa da revolução socialista é a de criar um Estado operário. Antes de falar da revolução socialista é necessário, em conseqüência, aprender a distinguir entre "abstrações" tais como burguesia e proletariado, Estado capitalista e Estado operário.

Na verdade, Shachtman esbanja o seu próprio tempo e o dos outros para provar que a propriedade nacionalizada não determina "em si e por si mesma", "automaticamente", “diretamente", "imediatamente", a política do Kremlin. Sobre a questão de como a "base" econômica determina a "superestrutura política, jurídica, filosófica, artística etc. existe uma rica literatura marxista. A opinião que presume que a economia determina direta ou indiretamente a capacidade criadora de um compositor ou mesmo o veredicto de um juiz, representa uma velha caricatura do marxismo que o professorado burguês de todos os países fez circular interminavelmente, para ocultar a sua impotência intelectual(3).

Quanto à questão que nos diz respeito diretamente, a inter-relação entre os fundamentos sociais do Estado soviético e a política do Kremlin, permitam-me recordar ao esquecido Shachtman que durante 17 anos assinalamos publicamente a contradição crescente entre os fundamentos estabelecidos pela Revolução de Outubro e as tendências da "superestrutura" estatal. Passo a passo, acompanhamos a crescente independência da burocracia em relação ao proletariado soviético e o crescimento da sua dependência em relação a outras classes e grupos, tanto dentro como fora do país. Neste terreno, o que Shachtman pretende acrescentar à análise que já realizamos?

No entanto, apesar da economia não determinar nem direta, nem imediatamente a política, mas só em última análise, apesar de tudo, a economia determina a política. Os marxistas afirmam precisamente isto, em contraposição aos professores burgueses e seus discípulos. Quando analisávamos e expúnhamos a crescente independência política da burocracia em relação ao proletariado, nunca perdemos de vista os limites sociais objetivos desta "independência"; quer dizer, a propriedade nacionalizada, complementada pelo monopólio do comércio exterior.

Assombroso! Shachtman continua apoiando a palavra-de-ordem de uma revolução política contra a burocracia soviética. Pensou alguma vez, seriamente, no significado desta palavra-de-ordem? Se defendêssemos que os fundamentos sociais estabelecidos pela Revolução de Outubro se refletem "automaticamente" na política do Estado, então, para que seria necessária uma revolução contra a burocracia? Por outro lado, se a URSS deixou completamente de ser um Estado operário, não seria necessária uma revolução política, mas sim uma revolução social. Em conseqüência, Shachtman continua defendendo a seguinte palavra-de-ordem: 1) A do caráter do Estado operário; 2) Do antagonismo irreconciliável entre os fundamentos sociais do Estado e a burocracia. Mas, enquanto repete esta palavra-de-ordem, trata de corroer os seus fundamentos teóricos. Será, talvez, com o fim de demonstrar uma vez mais a independência da sua política em relação às "abstrações" científicas?

Sob pretexto de empreender uma luta contra a caricatura burguesa do materialismo dialético, Shachtman escancara as portas ao idealismo histórico. Para ele, as formas de propriedade e o caráter de classe do Estado são motivo de indiferença na análise da política de um governo. O próprio Estado apresenta-se-lhe como um animal de sexo indeterminado. Com os dois pés firmemente plantados no seu leito de rosas, Shachtman explica-nos pomposamente — em pleno 1940 — que além da propriedade nacionalizada existe também a imundice bonapartista e sua política reacionária. Grande novidade! Será que Shachtman pensou, por acaso, que estava falando para um berçário?

Shachtman faz um bloco... também com Lênin

Para esconder o seu fracasso em entender a essência do problema da natureza do Estado soviético, Shachtman cai sobre as palavras que Lênin dirigiu contra mim em 30 de dezembro de 1920, durante a chamada discussão sobre os sindicatos: "O camarada Trotski fala do Estado operário. Permita-me, isto é uma abstração... Nosso Estado não é na realidade um Estado operário. mas sim um Estado operário e camponês... O nosso Estado atual é tal que, inclusive o proletariado organizado deve defender a si mesmo, e nós devemos utilizar estas organizações operárias para a defesa dos operários contra o seu Estado e para a defesa de nosso Estado pelos operários". Apoiando-se nesta citação e apressando-se em proclamar que repeti o meu "erro" de 1920, Shachtman não se deu conta, na sua precipitação, de um erro maiúsculo na citação relacionada com a definição da natureza do Estado soviético. Em 19 de janeiro, o próprio Lênin escreveu o seguinte, sobre seu discurso de 30 de dezembro: "Eu declarei: nosso Estado não é na realidade um Estado operário, mas sim um Estado operário e camponês... Ao ler a versão da discussão, vejo agora que estava enganado... Devia ter dito: "O Estado operário é uma abstração. Na realidade, temos um Estado operário com os seguintes traços especiais: 1) são os camponeses e não os operários que predominam na população; 2) é um Estado operário com deformações burocráticas". Deste episódio retiram-se as seguintes conclusões: Lênin atribula tamanha importância à definição sociológica precisa do Estado, que considerou necessário corrigir a si próprio no maior calor da polêmica! Mas Shachtman interessa-se tão pouco pela natureza de classe do Estado soviético, que vinte anos mais tarde não menciona nem o erro de Lênin, nem a correção de Lênin!

Não me deterei aqui sobre a questão da correção com a qual Lênin dirigia os seus argumentos contra mim. Creio que o fez incorretamente — dado que não existiam diferenças de opinião entre nós sobre a definição do Estado. Mas agora, não é esse o problema. A formulação teórica sobre a questão do Estado feita por Lênin no parágrafo acima citado, conjuntamente com a importante correção que ele mesmo introduziu mais tarde, é absolutamente correta. Mas vejamos o incrível emprego que Shachtman faz da definição de Lênin: "Do mesmo modo como era possível falar a 20 anos — escreve — do termo “Estado operário" como de uma abstração, assim também é possível falar do termo "Estado operário degenerado” como de uma abstração. (Op. cit. p. 14) É claro que Shachtman não consegue entender Lênin. Há 20 anos. o termo "Estado operário” não podia ser considerado de modo algum uma abstração em geral: quer dizer, algo irreal ou inexistente. A definição "Estado operário" ainda que correta em si e por si mesma, era inadequada em relação a uma tarefa particular, ou seja, a defesa dos operários através dos seus sindicatos; e só neste sentido era abstrata. No entanto, em relação à defesa da URSS contra o imperialismo, esta mesma definição era, em 1920, como hoje. inalteravelmente concreta, ao tornar obrigatória para os operários, a defesa do Estado em questão.

Shachtman não está de acordo. Escreve: "Assim como foi necessário uma vez, em relação ao problema dos sindicatos, falar concretamente sobre que tipo de Estado Operário existia na União Soviética, hoje é necessário estabelecer, em relação à guerra atual, o grau de degeneração do Estado soviético... e o grau de degeneração do regime não pode se estabelecer por meio de uma referência abstrata à existência da propriedade nacionalizada, mas sim pela observação das realidades (!) dos acontecimentos (!) vivos (!)." Depois disto torna-se completamente incompreensível porque em 1920 a questão do caráter da URSS foi levantada junto com a questão dos sindicatos, quer dizer, com questões particulares internas do regime, enquanto que agora é levantada junto com a questão da defesa da URSS, isto é, em relação ao destino global do Estado. No primeiro caso, o Estado operário foi contraposto aos operários; no último, aos imperialistas. Pequeno prodígio, esta analogia que coxeia em ambas as pernas; o que Lênin contrapunha, Shachtman identifica.

Não obstante, mesmo se tomamos as palavras de Shachtman pelo seu valor nominal, concluiu-se que a questão que lhe interessa é só o grau de degeneração (de quê?, de um Estado operário?) quer dizer, as diferenças quantitativas da avaliação. Suponhamos que Shachtman tenha sistematizado (onde?) o "grau" de forma mais precisa que nós. Mas de que forma diferenças puramente quantitativas na avaliação da degeneração do Estado operário podem afetar a nossa decisão sobre a defesa da URSS? E impossível fazer disto algo que tenha pés e cabeça. A verdade é que Shachtman continua fiel ao ecletismo, quer dizer, a si mesmo, empenhado na questão do "grau", só num esforço para manter o seu equilíbrio entre Abern e Burnham. O que se discute, na realidade, não é de modo algum o grau determinado pelas "realidades dos acontecimentos vivos" (que terminologia precisa, "científica", "concreta", e "experimental"!), mas sim se estas mudanças quantitativas se transformaram em mudança qualitativas; quer dizer, se a URSS é ainda um Estado operário, mesmo que degenerado, ou se se transformou num novo tipo de Estado explorador.

Shachtman não tem nenhuma resposta a esta pergunta básica; não sente necessidade alguma de uma resposta. O seu argumento é simples mimetismo verbal das palavras de Lênin, pronunciadas em relação a algo diferente, com diferente conteúdo, e que incluíam um erro reparado. Lênin declarou na sua versão corrigida: "O Estado em questão não é simplesmente um Estado operário, mas sim um Estado operário com deformações burocráticas." Shachtman afirma: "O Estado em questão não é simplesmente um Estado operário degenerado, mas sim...", mas sim o quê? Shachtman não consegue acrescentar mais nada. Orador e auditório olham-se um ao outro, boquiabertos.

O que significa "Estado operário degenerado" para o nosso programa? O nosso programa responde esta questão com um grau de concretização, totalmente adequado para resolver a questão da defesa da URSS; isto é: 1) Aqueles traços que em 1920 constituíam uma "deformação burocrática" do sistema soviético se transformaram agora num regime burocrático independente, que devorou os sovietes; 2) A ditadura da burocracia, incompatível com as tarefas internas e internacionais do socialismo, introduziu e continua introduzindo deformações profundas na vida econômica do país; 3) basicamente, no entanto, o sistema da economia planificada, sobre a base da propriedade estatal dos meios de produção, conservou-se, e continua sendo uma conquista colossal da humanidade. A derrota da URSS numa guerra contra o imperialismo significaria, não só a liquidação da ditadura burocrática, mas também a da economia estatal planificada; e o desmembramento do país em zonas de influência; uma nova estabilização do imperialismo; e um novo debilitamento do proletariado mundial.

A partir da circunstância de que a deformação "burocrática" cresceu até se converter num regime de autocracia burocrática, chegamos à conclusão de que a defesa dos operários através dos seus sindicatos (que sofreram a mesma degeneração que o Estado) é hoje, em contraste com 1920, completamente irreal; é necessário derrubar a burocracia; esta tarefa só pode ser levada a cabo por meio da criação na URSS, de um partido bolchevique ilegal.

A partir da circunstância de que a degeneração do sistema político ainda não levou à destruição da economia estatal planificada, extraímos a conclusão de que ainda é dever do proletariado mundial defender a URSS contra o imperialismo e ajudar o proletariado soviético na sua luta contra a burocracia.

O que é que Shachtman encontra precisamente de abstrato na nossa definição da URSS! Que emendas concretas propõe? Se a dialética nos ensina que "a verdade é sempre concreta", então, esta lei aplica-se com igual força à crítica. Não basta qualificar de abstrata uma definição. É preciso assinalar exatamente o que falta. De outro modo, a própria crítica se torna estéril. Em vez de concretizar ou modificar a definição que ele qualifica de abstrata, Shachtman a substitui pelo vazio. Isso não basta. O vazio, mesmo o mais pretensioso, deve ser compreendido como a pior de todas as abstrações: pode se encher de qualquer conteúdo. Pequeno prodígio, o deste vazio teórico, que, ao afastar a análise classista, mamou na política do impressionismo e do aventureirismo.

"Economia concentrada"

Shachtman continua citando as palavras de Lênin de que "a política é economia concentrada" e de que, neste sentido, "a política só pode tomar a primazia em relação â economia". A partir das palavras de Lênin, Shachtman dirige contra mim (se você me permite), a acusação de que estou interessado, por assim dizer, só "na economia" (meios de produção nacionalizados) e que salto por cima da "política". Este segundo esforço para explorar Lênin não é mais feliz que o primeiro. Aqui, o erro de Shachtman assume verdadeiramente vastas proporções! Lênin quer dizer: quando os processos, tarefas e interesses econômicos adquirem um caráter consciente e generalizado ("concentrado") entram na esfera da política em virtude deste mesmo fato, e constituem a essência da política. Neste sentido, a política, como economia concentrada, surge por cima da atividade econômica quotidiana, atomizada, inconsciente e não generalizada.

Do ponto de vista marxista, a correção da política é determinada precisamente pela medida em que "concentra" profundamente e em todos os seus aspectos a economia; isto é, em que expressa as tendências progressivas do seu desenvolvimento. Por isso baseamos a nossa política, primeiro e acima de tudo, na nossa análise das formas de propriedade e das relações de classe. Para nós, uma análise mais detalhada e concreta dos fatores da "superestrutura", só é possível sobre esta base teórica. Assim, por exemplo, se acusássemos uma fração adversária de "conservadorismo burocrático", imediatamente buscaríamos as raízes sociais, quer dizer, de classe, deste fenômeno. Qualquer outro procedimento rebaixar-nos-ia à qualidade de marxistas "platônicos", senão mesmo à de simples palhaços barulhentos.

"A política é economia concentrada". Tem-se que pensar em aplicar esta proposição também ao Kremlin. Ou será que, como exceção â regra geral, a política do governo de Moscou não é "economia concentrada", mas sim uma manifestação do livre arbítrio da burocracia? Nosso esforço em reduzir a política do Kremlin à economia nacionalizada, refratada através dos interesses da burocracia, provoca uma frenética resistência em Shachtman. Ele guia-se, em relação â URSS, não pela consciente generalização da economia, mas sim pela "observação das realidades dos acontecimentos vivos"; isto é, pelo método simples e prático, pelas improvisações, simpatias e antipatias. .Contrapõe esta política impressionista â nossa política sociologicamente fundamentada e, ao mesmo tempo, nos acusa de... ignorar a política. Certamente incrível. Certamente, em última análise, a política mal articulada e caprichosa de Shachtman é igualmente expressão "concentrada" da economia, só que — ai! — da economia da pequena-burguesia marginalizada.

Comparação com guerras burguesas

Shachtman recorda-nos que as guerras burguesas foram progressivas numa época e que em outro período se tornaram reacionárias e que, portanto, não basta dar a definição de classe de um Estado empenhado numa guerra. Esta proposta não esclarece a questão, confunde-a. As guerras burguesas puderam ser progressivas só numa época em que todo o regime burguês era progressivo; em outras palavras, num tempo em que a propriedade burguesa, em contradição com a propriedade feudal, era um fator construtivo e progressivo. As guerras burguesas tornaram-se reacionárias quando a propriedade burguesa se converteu num freio para o desenvolvimento. Será que Shachtman quer dizer que, em relação à URSS, a propriedade estatal dos meios de produção se transformou num freio para o desenvolvimento e que a extensão dessa forma de propriedade a outros paises constitui uma reação econômica? É evidente que Shachtman não quer dizer isto. Simplesmente, não retira a conclusão lógica de seus próprios pensamentos.

O exemplo das guerras nacionais burguesas oferece uma lição muito instrutiva, mas Shachtman passa por cima dela sem se perturbar. Marx e Engels lutaram por uma república alemã unificada. Na guerra de 1870-1871, estiveram ao lado dos alemães apesar da luta pela unificação ser explorada pelos parasitas dinásticos.

Shachtman refere-se ao fato de que ao realizar-se a anexação da Alsácia-Lorena, Marx e Engels se voltaram imediatamente contra a Prússia. Mas esta mudança serve para ilustrar de forma ainda mais clara, o nosso ponto de vista. É inadmissível esquecer por um instante que se tratava de uma guerra entre dois Estado burgueses. Assim, ambos os campos tinham um denominador comum de classe. Decidir qual dos dois era o “mal menor" — na medida em que a história dá lugar à escolha — só era possível sobre a base de fatores complementares. Do lado alemão, tratava-se de criar um Estado nacional burguês como campo econômico e cultural. O Estado nacional durante esse período era um fator histórico progressivo. Nessa medida, Marx e Engels estiveram do lado dos alemães, apesar dos Hohenzollern e de seus junkers. A anexação da Alsácia-Lorena violou o princípio do Estado nacional, tanto no que se refere à França como à Alemanha, e colocou as bases para uma guerra de vingança. Marx e Engels, logicamente, voltaram-se violentamente contra a Prússia. No entanto, não correram de modo algum o risco de prestar qualquer serviço a um sistema de economia inferior contra outro superior, dado que em ambos os campos, repetimos, prevaleciam relações burguesas. Se a França fosse um Estado operário em 1870, então Marx e Engels estariam, desde o princípio, a favor da França, uma vez que — e é aborrecido ter de mencionar isso novamente — guiavam-se, em toda sua atividade, pelo critério de classe.

Hoje, nos velhos países capitalistas, já não é a resolução das tarefas nacionais que se encontra em questão. Pelo contrario, a humanidade sofre a contradição entre as forças produtivas e a estrutura demasiado estreita do Estado nacional. A economia planificada, sobre a base da propriedade socializada, livre das fronteiras nacionais, é a tarefa do proletariado internacional, principalmente... na Europa. Esta tarefa expressa-se, precisamente, na nossa palavra-de-ordem: "Pelos Estados Unidos Socialistas da Europa!" A expropriação dos proprietários na Polônia, como na Finlândia, é um fator progressivo em si e por si mesmo. Os métodos burocráticos do Kremlin, neste processo, ocupam o mesmo lugar que os métodos dinásticos dos Hohenzollern na unificação da Alemanha. Sempre que nos confrontamos com a necessidade de escolher entre a defesa de formas reacionárias de propriedade, mediante medidas reacionárias, e a introdução de formas progressivas de propriedade, mediante medidas burocráticas, não colocaremos, de modo algum, ambos os campos no mesmo nível, escolheremos o mal menor. Nisto, não existe mais "capitulação" ante o stalinismo do que — na política de Marx e Engels — capitulação ante os Hohenzollern. Quase não é necessário acrescentar que o papel dos Hohenzollern na guerra de 1870-71 não justificou, nem o papel histórico geral da dinastia nem muito menos a sua existência.

Derrotismo conjuntural ou o ovo de Colombo

Permita-nos agora, observar como Shachtman, auxiliado por um vazio teórico, opera com as "realidades dos acontecimentos vivos" numa questão especialmente vital. Escreve: "Nunca apoiamos a política internacional do Kremlin... mas, o que é a guerra? A guerra é a continuação da política por outros meios. Então, porque teríamos que apoiar a guerra, que é a continuação da política internacional que não apoiamos?" (Op. cito p. 15) Não se pode negar que este argumento é completo, aqui, sob a forma de um simples silogismo, somos colocados perante uma acabada teoria de derrotismo. Tão simples como o ovo de Colombo! Como nunca apoiamos a política internacional do Kremlin, não devemos nunca apoiar a URSS. Então, por que Shachtman não diz isso?

Nós rejeitamos as políticas interna e internacional do Kremlin mesmo antes do pacto germânico-soviético e antes da invasão da Polônia pelo Exército Vermelho. Isto significa que as "realidades dos acontecimentos vivos" do ano passado não têm a menor relação com o caso. Se, no ano passado, fomos defensistas em relação à URSS, só foi como resultado da inconsistência. Shachtman revê não só a política atual da Quarta Internacional, como também a do passado. Como estamos contra Stalin, devemos portanto estar também contra a URSS; há muito que Stalin tem esta opinião. Shachtman chegou a ela só bem recentemente. De sua rejeição da política do Kremlin, deduz, se um derrotismo total e indivisível. Então, porque não dizê-lo?

Mas Shachtman não consegue convencer-se disso. Numa passagem anterior escreve: "Dizíamos — a minoria continua dizendo -que se os imperialistas assaltassem a União Soviética com o propósito de esmagar a última conquista da Revolução de Outubro e reduzir a Rússia a um mosaico de colônias, apoiaríamos incondicionalmente a União Soviética." (Op. cit., p. 15). Um momento, um momento! A política internacional do Kremlin é reacionária; a guerra é a continuação de sua política reacionária. Como é que, então, se conclui inesperadamente que se os perversos imperialistas "assaltassem" a URSS e se os perversos imperialistas têm o pouco recomendável objetivo de transformá-la numa colônia, como é que sob semelhantes "condições" excepcionais Shachtman defenderá a URSS... "incondicionalmente"? Que tem isto de sensato? Onde está a lógica? Ou será que Shachtman, seguindo o exemplo de Burnham, também relegou a lógica para a esfera da religião e de outros artigos de museu?

A chave deste emaranhado de confusão está no fato de que a declaração: "Nunca aprovamos a política internacional do Kremlin" é uma abstração. Deve ser dissecada e concretizada. Na sua política atual, tanto interna como externa, a burocracia coloca em primeiro e principal lugar a defesa de seus próprios interesses parasitários. Nessa medida, travamos uma luta mortal contra ela; mas, em última análise, através dos interesses da burocracia, de uma forma muito retorcida, refletem-se os interesses do Estado operário. Nós defendemos estes interesses, com nossos próprios métodos. Assim, não lutamos de modo algum contra o fato de que a burocracia salvaguarde (ao seu modo!) a propriedade estatal, o monopólio do comércio externo ou se negue a pagar as dividas czaristas. No entanto, numa guerra entre a URSS e o mundo capitalista — independentemente dos incidentes que tivessem levado à guerra ou dos "fins" deste ou daquele governo — o que se debate é precisamente o destino daquelas conquistas históricas que nós defendemos incondicionalmente, quer dizer, apesar da política reacionária da burocracia. Conseqüentemente, a questão se reduz — em última e decisiva instância — à natureza de classe da URSS.

Lênin deduziu a política do derrotismo do caráter imperialista da guerra; mas não se deteve ai. Deduziu o caráter imperialista da guerra a partir de uma etapa especifica no desenvolvimento do regime capitalista e de sua classe dominante. Como o caráter da guerra está determinado precisamente pelo caráter de classe da sociedade e do Estado, Lênin recomendou que ao determinarmos nossa política frente à guerra imperialista, nos abstraíssemos de circunstâncias "concretas" tais como a monarquia, a agressão e a defesa nacional. Em oposição a isto, Shachtman propõe que deduzamos o derrotismo das condições conjunturais. Este derrotismo é indiferente ao caráter de classe da URSS e da Finlândia. Bastam-lhe os traços reacionários da burocracia e da "agressão". Se França, Inglaterra ou os Estados Unidos mandam aviões e canhões para a Finlândia, isto não tem nada a ver na determinação da política de Shachtman. Mas se as tropas britânicas desembarcarem na Finlândia, então Shachtman colocará um termômetro debaixo da língua de Chamberlain e determinará as suas intenções; se este se propõe apenas a salvar a Finlândia da política imperialista do Kremlin, ou se propõe a derrubar a "última conquista da Revolução de Outubro". Estritamente de acordo com a leitura do termômetro, Shachtman, o derrotista, está pronto a transformar-se em defensista. Isto é o que ele quer dizer com substituir os princípios abstratos pelas "realidades dos acontecimentos vivos".

Shachtman, como já vimos, exige insistentemente que se citem precedentes: no passado, quando e onde se manifestou o oportunismo pequeno-burguês dos lideres da oposição? A resposta que já lhe dei sobre este ponto deve ser complementada com duas cartas que trocamos sobre a questão do defensismo e dos métodos do defensismo em relação aos acontecimentos da revolução espanhola. Em 18 de setembro de 1937, Shachtman me escreveu:

"... Você diz: 'se tivéssemos um membro nas Cortes, ele votaria contra o orçamento militar de Negrin'. A menos que seja um erro tipográfico, isto nos parece um non-sequitur. Se — no que estamos de acordo — o elemento de uma guerra imperialista não é dominante atualmente na luta espanhola e se, pelo contrário, o elemento decisivo é ainda a luta entre a democracia burguesa que se decompõe por um lado, com tudo o que ela significa, e o fascismo pelo outro, e se além disso somos obrigados a dar apoio militar à luta contra o fascismo, não vemos como seria possível votar nas Cortes contra o orçamento militar... Se um camarada socialista da frente de Huesca perguntasse a um bolchevique-leninista porque seu representante nas Cortes votou contra a proposta de Negrín, de enviar um milhão de pesetas para a compra de fuzis para a frente, qual seria a resposta deste bolchevique-leninista? parece-nos que não teria uma resposta efetiva..." (Sublinhado por mim, L. T.).

Esta carta me espantou. Shachtman queria conceder confiança ao pérfido governo de Negrín sobre a base puramente negativa de que "o elemento de uma guerra imperialista" não era dominante na Espanha.

Em 20 de setembro de 1937, respondi a Shachtman:

"Votar o orçamento militar do governo Negrín significaria votar a nossa confiança política nele... fazê-lo seria um crime. Como explicaríamos nosso voto aos operários anarquistas? De forma muito simples: não temos a menor confiança na capacidade deste governo para conduzir a: guerra e assegurar a vitória. Acusamos este governo de proteger os ricos e de deixar morrer de fome os pobres. Este governo deve ser derrubado. Enquanto não formos suficientemente fortes para substituí-lo, lutamos sob seu comando. Mas, em todas as ocasiões, expressamos abertamente a nossa falta de confiança nele: é a única possibilidade de mobilizar politicamente as massas contra este governo e preparar a sua derrubada. Qualquer outra política seria uma traição à revolução."

O tom da minha resposta reflete muito debilmente o... assombro que me produziu a posição oportunista de Shachtman. Os erros isolados são, naturalmente, inevitáveis, mas agora, dois anos depois, esta correspondência se ilumina sob uma nova luz. Como defendemos a democracia burguesa contra o fascismo, raciocina Shachtman, não podemos recusar, portanto, nossa confiança no governo burguês. Ao aplicar este mesmo teorema à URSS, ele se transforma no seu oposto: como não depositamos nenhuma confiança ao governo do Kremlin, não podemos, portanto, defender o Estado operário. O pseudo-radicalismo é, também neste caso, o reverso do oportunismo.

Renúncia ao critério de classe

Seja-nos permitido voltar de novo ao ABC. Na sociologia marxista, o ponto inicial de análise de um fenômeno dado - por exemplo, Estado, partido, tendência filosófica, escola literária etc. - é a sua definição de classe. Na maior parte dos casos, no entanto, a simples definição de classe é inadequada, já que uma classe se compõe de diferentes estratos, passa por diferentes fases de desenvolvimento, encontra-se sob diferentes condições, está sujeita à influência de outras classes. Toma-se necessário levar em conta fatores de segunda e de terceira ordem, como o objetivo de arredondar a análise; de acordo com o objetivo específico, tomamo-los parcial ou completamente. Mas, para um marxista, é impossível fazer uma análise sem uma caracterização de classe do fenômeno considerado. Os sistemas ósseo e muscular não esgotam a anatomia de um animal; no entanto, um tratado de anatomia que tentasse "abstrair-se" dos ossos e dos músculos, ficaria se balançando no ar. A guerra não é um órgão, mas uma função da sociedade, quer dizer, da sua classe dominante. E impossível definir e estudar uma função sem compreender o órgão, quer dizer, o Estado; é impossível conseguir um entendimento cientifico do órgão sem compreender a estrutura gerar do organismo, quer dizer, a sociedade. Os ossos e os músculos da sociedade estão construídos pelas forças produtivas e as relações (de propriedade) de classe. Shachtman defende que é possível que uma função, a guerra, possa ser estudada "concretamente", independentemente do órgão a que pertence, quer dizer, do Estado. Isto não é monstruoso?

Este erro fundamental complementa-se com outro, igualmente evidente. Depois de separar a função do órgão, Shachtman, ao estudar a própria função e contrariando todas as suas promessas parte, não do abstrato para o concreto, mas sim, ao contrário, dissolve o concreto no abstrato. A guerra imperialista é uma das funções do capital financeiro, quer dizer, da burguesia que, chegada a certa fase de desenvolvimento, se apóia sobre um capitalismo de estrutura especifica, ou seja, o capital monopolista. Esta definição é suficientemente concreta para as nossas conclusões políticas básicas. Mas ao estender o termo de guerra imperialista para cobrir também o Estado soviético, Shachtman cava o terreno sob seus próprios pés. Com o fim de encontrar uma justificativa, mesmo que superficial, para aplicar à expansão do capital financeiro e à expansão do Estado operário uma mesma designação, Shachtman vê-se obrigado a afastar a estrutura de ambos os Estados em conjunto, proclamando que ela é... uma abstração. Assim, brincando de esconde-esconde com o marxismo, Shachtman designa o concreto como abstrato e escamoteia o abstrato como concreto!

Este escandaloso jogo com a teoria não é acidental. Nos Estados Unidos, qualquer pequeno-burguês, sem exceção, está pronto a chamar de "imperialista" qualquer ocupação de território, especialmente agora que os Estados Unidos não estão se dedicando a conquistar territórios. Mas se se diz a este mesmo pequeno-burguês que toda a política externa do capital financeiro é imperialista, quer esteja ou não sendo levada a cabo, no momento dado, uma anexação ou a "defesa" da Finlândia contra a anexação, então, o nosso pequeno-burguês dará pulos, fervorosamente indignado. Naturalmente, os lideres da oposição diferem consideravelmente do pequeno-burguês médio nos seus objetivos e no seu nível político; mas, infelizmente, possuem raízes comuns de pensamento. Um pequeno-burguês, invariavelmente, separa os acontecimentos políticos da sua base social, já que existe um conflito orgânico entre uma análise classista dos fatos e a posição social e a educação da pequena- burguesia.

Uma vez mais: Polônia

A minha observação de que o Kremlin, com os seus métodos burocráticos deu um impulso à revolução socialista na Polônia, é convertida por Shachtman na afirmação de que, segundo o meu ponto de vista, uma "revolução burocrática" do proletariado é presumivelmente possível. Isto não só é incorreto como desleal. Minha expressão estava rigidamente limitada. Não se trata de "revolução burocrática", mas apenas um impulso burocrático. Negar este impulso é negar a realidade. Em todo caso, as massas populares da Ucrânia Ocidental e da Bielo-Rússia, sentiram este impulso, entenderam seu significado e utilizaram-no para levar a cabo uma transformação drástica nas relações de propriedade. Um partido revolucionário que se desse conta deste impulso a tempo, e se recusasse a utilizá-lo, só serviria para ser jogado no lixo.

Este impulso em direção à revolução socialista só foi possível porque a burocracia da URSS se apóia e tem suas raízes na economia de um Estado operário. A utilização revolucionária deste "impulso" pelos ucranianos e bielo-russos só foi possível mediante a luta de classes nos territórios ocupados e através da força do exemplo da Revolução de Outubro. Finalmente, o rápido estrangulamento ou semi-estrangulamento deste movimento revolucionário de massas foi possível em virtude do seu isolamento e do poder da burocracia de Moscou. Quem não for capaz de entender a interação dialética destes três fatores: Estado operário, massas oprimidas e burocracia bonapartista, faria melhor em abster-se de palavrear sobre os acontecimentos da Polônia.

Nas eleições para a Assembléia Nacional da Ucrânia Ocidental e da Bielo-Rússia Ocidental, o programa eleitoral, ditado, naturalmente, pelo Kremlin, incluiu três pontos extremamente importantes: inclusão de ambas as províncias na Federação da URSS; confiscação dos latifúndios em favor dos camponeses; e nacionalização da grande indústria e dos bancos. Os democratas ucranianos, a julgar pela sua conduta, consideraram um mal menor estarem unificados sob a jurisdição de um só Estado. E do ponto de vista da futura luta pela independência, estão certos. Quanto aos outros dois pontos do programa, poder-se-ia pensar que não poderia haver nenhuma dúvida entre nós sobre o seu caráter progressista. Usando só um lado da realidade, quer dizer, de que não foi outra coisa senão as bases sociais da URSS que impuseram ao Kremlin um programa social revolucionário, Shachtman faz referência à Letônia, Lituânia e Estônia, onde tudo permaneceu como antes. Argumento incrível!

Ninguém disse que a burocracia soviética, sempre e onde quiser, deseja ou é capaz de levar a cabo a expropriação da burguesia. A única coisa que dizemos, é que nenhum outro governo poderia ter realizado a transformação social que, apesar de sua aliança com Hitler, a burocracia do Kremlin viu-se obrigada a sancionar na Polônia do Leste. Se não o fizesse, não teria podido incluir o território na Federação da URSS.

Shachtman reconhece a própria transformação. Não pode negá-la, É incapaz de explicá-la. No entanto, tenta salvar a cara. Escreve: "Na Ucrânia polonesa e na Rússia branca, onde a exploração de' classe se intensificou com a opressão nacional... os próprios camponeses começaram a tomar as terras e expulsar os latifundiários, que já começavam a fugir" etc.(Op. cito p. 16) Dessa forma, quer dizer que o Exército Vermelho não teve nada a ver com isso, Penetrou na Polônia somente como uma "força contra-revolucionária" para suprimir o movimento. Então, porque é que os operários e camponeses da Polônia Ocidental, tomada por Hitler, não organizaram uma revolução? Por que é que foram principalmente revolucionários "democratas" e judeus os que fugiram daí, enquanto que na Polônia Oriental foram principalmente os latifundiários e capitalistas Shachtman não tem tempo para pensar nisto: está muito ocupado em explicar-me que a concepção da "revolução burocrática" é absurda, já que a emancipação dos trabalhadores pode ser levada a cabo somente pelos próprios trabalhadores. Não é justo repetir que Shachtman sente, ostensivamente, que está falando para crianças?

No órgão parisiense dos mencheviques — que, se isso for possível, são ainda mais "irreconciliáveis" na sua atitude em relação à política exterior do Kremlin, do que Shachtman — se informa que "nas aldeias, muito freqüentemente, com a simples aproximação das tropas soviéticas (quer dizer, ainda antes de sua entrada num dado distrito. L. T.), surgiram comitês camponeses por todos os lados, órgãos elementares do autogoverno revolucionário camponês".

As autoridades militares apressaram-se, é claro, em subordinar estes comitês aos órgãos burocráticos estabelecidos por eles nos centros urbanos. No entanto, viram-se obrigadas a apoiar-se nos comitês camponeses, já que sem eles era impossível levar a cabo a revolução agrária.

Dan, o líder dos mencheviques, escreveu em 19 de outubro: "De acordo com o testemunho unânime de todos os observadores, a aparição do exército e da burocracia soviéticas, provocou, não só no território ocupado por eles, como também para além dos seus limites, um impulso (111) à desordem social e às transformações sociais", O "impulso", como pode se ver, não foi inventado por mim, mas pelo "testemunho unânime de todos os observadores" dotados de olhos e ouvidos. Dan vai ainda mais longe e expressa a suposição de que "as ondas engendradas por este impulso não afetarão só o poderio alemão num período de tempo comparativamente muito curto, como também, num grau maior ou menor, envolverão outros Estados".

Outro autor menchevique escreve: “Apesar de terem tentado, no Kremlin, alguma coisa que tivesse o sabor da grande revolução, o próprio fato da entrada das tropas soviéticas nos territórios da Polônia Oriental, com suas velhas relações agrárias semi-feudais, tinha que provocar um tempestuoso movimento agrário. Com a aproximação das tropas soviéticas, os camponeses começaram a tomar os latifúndios dos grandes proprietários e a formar comitês de camponeses". Observem: com a aproximação das tropas soviéticas, e de modo algum com a sua expulsão, como deveria ser, de acordo com as palavras de Shachtman. Cito o testemunho dos mencheviques, porque estão muito bem informados, com fontes de informação procedentes dos emigrados judeus e poloneses que chegam à França e com quem têm relações amistosas, e também porque como estes cavalheiros capitularam perante a burguesia francesa, não são suspeitos de terem capitulado perante o stalinismo.

Além disso, o testemunho dos mencheviques é confirmado nos informes da imprensa burguesa.

“A revolução agrária na Polônia soviética teve a força de um movimento espontâneo. Logo que se espalhou a notícia de que o Exército Vermelho tinha cruzado o rio Zbrucz, os camponeses começaram a dividir entre eles os hectares dos latifundiários. Primeiro, deu-se terra aos pequenos proprietários e assim se expropriou cerca de 30 por cento da terra arável". (New York Times, 17 de janeiro de 1940).
Como se se tratasse de um novo argumento, Shachtman lança mão de minhas próprias palavras para defender que a expropriação dos latifundiários na Polônia Oriental não pode alterar a nossa análise sobre a política geral do Kremlin. Claro que não! Ninguém propôs isso. Com a ajuda da Internacional Comunista, o Kremlin desorientou e desmoralizou a classe operária, de uma forma que não só facilitou a eclosão de uma nova guerra imperialista, como tornou também extremamente difícil a utilização desta guerra para a revolução. Comparada com aqueles crimes, a transformação social nas duas províncias, que foi paga com juros pela escravidão da Polônia, é, naturalmente, de importância secundária e não altera o caráter geral reacionário da política do Kremlin. Mas, por iniciativa da própria oposição, a questão agora colocada não é de política geral, mas sim a de sua refração concreta sob condições específicas de tempo e de lugar. Para os camponeses da Galícia e da Bielo-Rússia Ocidental, a transformação agrária foi da maior importância. A Quarta Internacional não poderia boicotar esta transformação com o argumento de que a iniciativa foi tomada pela burocracia reacionária. O nosso estrito dever era participar nesta transformação, junto aos operários e camponeses, e, nessa medida, junto ao Exército Vermelho. Ao mesmo tempo, era indispensável prevenir incansavelmente as massas sobre o caráter reacionário geral da política do Kremlin e dos perigos que ela leva para os territórios ocupados. Saber como combinar estas duas tarefas ou, mais precisamente, os dois aspectos de uma mesma tarefa — eis precisamente a política bolchevique.

Uma vez mais: Finlândia

Tendo revelado tão singular perspicácia para entender os acontecimentos da Polônia, Shachtman lança-se sobre mim com autoridade redobrada, em relação aos acontecimentos da Finlândia. No meu artigo "Uma oposição pequeno-burguesa" escrevi que "a guerra soviético-finlandesa aparentemente começa a ser complementada por uma guerra civil, na qual o Exército Vermelho se encontra, na atual fase, no mesmo campo que os pequenos camponeses e os operários finlandeses..." Esta fórmula extremamente cautelosa não contou com a aprovação de meu implacável juiz. Minha avaliação sobre os acontecimentos da Polônia colocou-o fora dos eixos. "Encontro ainda menos (provas) para suas — como direi? — assombrosas observações sobre a Finlândia", escreve Shachtman na página 16 de sua "Carta". Sinto muito pelo fato de Shachtman preferir espantar-se ao invés de pensar alguma coisa sobre isso.

Nos Estados Bálticos, o Kremlin limitou seu trabalho em conseguir vantagens estratégicas com o indiscutível cálculo de que no futuro as bases militares estratégicas também permitirão a sovietização destas antigas partes do império czarista. Estes êxitos no Báltico, conseguidos pela ameaça diplomática, depararam-se, no entanto, com a resistência da Finlândia. Submeter-se a esta resistência teria significado para o Kremlin colocar em perigo o seu "prestigio" e, portanto, os seus êxitos na Estônia, Letônia e Lituânia. Assim, contrariando os seus planos iniciais, o Kremlin viu-se obrigado a recorrer à força armada. A partir deste fato qualquer pessoa que raciocinasse se perguntaria: será que o Kremlin só pretende atemorizar a burguesia finlandesa e forçá-la a fazer concessões, ou irá mais longe?

Naturalmente que não pode haver uma resposta "automática" a esta resposta. Era necessário — à luz das tendências gerais — orientar-se, com base em sintomas concretos. Os lideres da oposição são incapazes disto.

As operações militares começaram em 30 de novembro. Nesse mesmo dia, o Comitê Central do Partido Comunista Finlandês, sem dúvida situado em Leningrado ou Moscou, lançou pela rádio um manifesto ao povo trabalhador da Finlândia. Este manifesto proclamava: "Pela segunda vez na história da Finlândia, a classe operária finlandesa trava uma luta contra o jugo da plutocracia. A primeira experiência dos operários e camponeses, em 1918, terminou com a vitória dos capitalistas e latifundiários. Mas desta vez... o povo trabalhador terá que vencer'" Este manifesto indicava por si só, claramente, que não existia nenhuma tentativa de atemorizar o governo burguês da Finlândia, mas sim existia um plano para provocar a insurreição no pais e completar a invasão do Exército Vermelho com a guerra civil.

A declaração do chamado Governo Popular, publicada em 2 de Dezembro, afirmava: "Em diferentes locais do país, o povo já se levantou e proclamou a criação de uma República democrática". Esta afirmação é, obviamente, uma invenção; de outro modo, o manifesto teria mencionado os lutares onde teriam sido levado a cabo as tentativas de insurreição. E possível, no entanto, que tentativas isoladas, preparadas de fora, tenham terminado no fracasso, e precisamente por isso tenha parecido melhor não entrar em detalhes. Em qualquer caso, as noticias referentes a "insurreições" constituíram um chamado à insurreição. Quanto ao resto, a declaração continha informação sobre a formação do "primeiro corpo finlandês, que no curso das próximas batalhas será engrossado por voluntários das fileiras de operários e camponeses revolucionários". Tivessem existido mil homens neste "corpo", ou fossem só cem, o significado do "corpo" na determinação da política do Kremlin foi indiscutível. Ao mesmo tempo, despachos telegráficos informavam sobre expropriação de grandes latifúndios nas regiões fronteiriças. Não existe a menor dúvida de que foi exatamente isto o que aconteceu durante o primeiro avanço do Exército Vermelho. Mas ainda que estes despachos sejam considerados invenções, conservam, inteiramente, seu significado como apelo para uma revolução agrária. Para pôr os camponeses em movimento eram necessários triunfos importantes do Exército Vermelho. Mas durante seu primeiro avanço mal preparado, o Exército Vermelho só sofreu derrotas. Sob tais condições nem sequer era possível falar de um levantamento camponês. Era impossível esperar uma guerra civil independente na Finlândia perante tal estado de coisas: os meus cálculos falavam muito precisamente de complementar as operações militares com medidas de guerra civil. Tenho em mente — pelo menos até que o exército finlandês seja aniquilado — só o território ocupado e as regiões adjacentes. Hoje. 17 de janeiro, enquanto escrevo estas linhas, despachos de fontes finlandesas informam que uma das províncias fronteiriças foi invadida por destacamentos de emigrados finlandeses e que, literalmente, aí se estão matando irmão a irmão. O que é isto senão um episódio de guerra civil? Em todo caso, não se pode duvidar que um novo avanço do Exército Vermelho na Finlândia confirmará, a nossa apreciação geral da guerra a cada passo, Shachtman não tem uma análise dos acontecimentos, nem a insinuação de um prognóstico. Ele limita-se à nobre indignação e por esta razão, se afunda, cada vez mais.

O apelo do "Governo Popular" propunha o controle operário. Que pode significar isto! — exclama Shachtman. Não existe controle operário na URSS, a partir de onde chegará, à Finlândia? É triste dizê-lo, mas Shachtman revela uma completa falta de compreensão da situação. Na URSS, o controle operário é uma fase consumada há, muito tempo. Do controle sobre a burguesia passou-se à gestão da produção nacionalizada. Da gestão dos operários, ao comando da burocracia. Um novo controle operário significaria agora um controle sobre a burocracia. Isto não pode ocorrer a não ser como resultado de um levantamento vitorioso contra a burocracia. Na Finlândia o controle operário significa nada mais do que expulsar a burguesia nativa, cujo lugar a burocracia se propõe ocupar. Quanto ao resto, não se pode pensar que o Kremlin seja tão estúpido para tentar governar a Polônia Oriental ou a Finlândia através de comissários vindos de fora. Para o Kremlin, é da maior urgência fazer surgir um novo aparato administrativo entre a população trabalhadora das áreas ocupadas. Esta tarefa só pode ser resolvida em várias etapas. A primeira, são os comitês camponeses e o controle operário(4).

Shachtman aferra-se, ansiosamente, inclusive ao fato de que o programa de Kuusinen "é formalmente, o programa de uma 'democracia' burguesa". Com isto, estará querendo dizer que o Kremlin se interessa mais em estabelecer uma democracia burguesa na Finlândia do que incluir esta na estrutura da URSS? O próprio Shachtman não sabe o que quer dizer. Na Espanha, que Moscou se preparava pra fundir com a URSS, do que se tratou na realidade foi de demonstrar a capacidade do Kremlin para salvaguardar a democracia burguesa contra a revolução proletária. Esta tarefa derivava dos interesses da burocracia do Kremlin naquela particular situação internacional. Hoje, a situação é distinta. O Kremlin não se prepara para demonstrar a sua utilidade à França, Inglaterra e Estados Unidos. Como demonstraram suas ações, ele está firmemente decidido a sovietizar a Finlândia em uma ou duas etapas. O programa de governo de Kuusinen, mesmo que analisado do ponto de vista "formar', não se diferencia do programa dos bolcheviques de Novembro de 1917. Claro, Shachtman explora muito o fato de que eu dê, geralmente, muita importância ao manifesto do "idiota" Kuusinen. No entanto, tomarei a liberdade de considerar que o "idiota" Kuusinen, ao atuar sob o mando do Kremlin e com o apoio do Exército Vermelho, representa um fator político muito mais sério do que superficiais sabichões que se negam a pensar através da lógica interna (dialética) dos acontecimentos.

Como resultado da sua notável análise, Shachtman propõe, desta vez abertamente, uma política derrotista em relação à URSS, e acrescenta (para caso de emergência) que não deixa de ser, de modo algum, um "patriota de sua classe". Agrada-nos muito a informação. O pior é que Dan, líder dos mencheviques. escreveu em 12 de novembro que no caso de a União Soviética invadir a Finlândia o proletariado mundial "deve tomar uma posição derrotista definitiva em relação 'a essa violação". (Sozialisticheski Vestnik, n° 19- 20, P.) É necessário acrescentar que durante o regime de Kerenski, Dan foi um raivoso defensista; não conseguiu ser derrotista nem sequer sob o czar. Só a invasão da Finlândia pelo Exército Vermelho converteu Dan em derrotista. Naturalmente, não foi por isso que deixou de ser "um patriota de sua classe". Que classe? Esta questão não deixa de ser interessante. Shachtman não está, de acordo com Dan no que se refere à análise dos acontecimentos, já que este, por se encontrar mais perto do teatro da ação, não pode substituir os fatos por ficção; em compensação, no que se refere às "conclusões políticas concretas", Shachtman acaba sendo um "patriota" da mesma classe que Dan. Esta classe, em sociologia marxista, se a oposição me permite, chama-se pequena burguesia.

A teoria dos "blocos"

Para justificar o seu bloco com Burnham e Abern — contra a ala proletária do partido, contra o programa da Quarta Internacional e contra o método marxista, Shachtman não prescindiu da história do movimento revolucionário, que — segundo suas palavras — estudou especialmente a fim de transmitir grandes tradições â jovem geração. A finalidade é, naturalmente, excelente. Mas exige um método científico. Entretanto, Shachtman começou por sacrificar o método científico em função de um bloco. Os seus exemplos históricos são arbitrários, não meditados, e categoricamente falsos.

Nem toda colaboração é um bloco no sentido próprio da palavra. Não são pouco freqüentes os acordos episódicos que de modo algum se transformam e que não podem ser transformados em um bloco prolongado. Por outro lado, o fato de se pertencer a um mesmo partido, dificilmente pode ser chamado de bloco. Nós, junto com o camarada Burnham, pertencemos (e espero que continuemos pertencendo até o fim) a um mesmo partido internacional; mas isto ainda não é um bloco. Dois partidos podem chegar a um acordo para a formação de um bloco a largo prazo com o objetivo de lutarem juntos contra um inimigo comum: tal foi a política da "Frente Popular". Tendências próximas, mas não idênticas, dentro de um mesmo partido, podem chegar a um acordo para formar um bloco contra uma terceira fração.

Para avaliar os blocos internos do partido, são de importância decisiva duas questões: 1) Primeiro e acima de tudo, contra quem ou o quê está dirigido o bloco?; 2) Qual é a relação de forças dentro do bloco? Assim, para uma luta contra o chauvinismo dentro do partido, é inteiramente permitida a formação de um bloco entre internacionalistas e centristas. O resultado do bloco dependeria neste caso, da clareza do programa dos internacionalistas, de sua coerência e disciplina, já que freqüentemente, estes aspectos são mais importantes que a sua força numérica, para determinar a relação de forças.

Como dissemos antes, Shachtman utiliza o bloco de Lênin com Bogdanov. Já: afirmei que Lênin não fez a mais mínima concessão teórica a Bogdanov. Agora examinaremos o aspecto político do "bloco". Em primeiro lugar, é necessário estabelecer que na realidade, não se tratava de um bloco, mas sim de uma colaboração numa organização comum. A fração bolchevique tinha uma existência independente. Lênin não formou um "bloco" com Bogdanov contra outras tendências, dentro de sua própria organização. Pelo contrário, formou um bloco até com os bolcheviques conciliadores (Oubrovinski, Rykov e outros) contra as heresias teóricas de Bogdanov. Em essência, a questão, no que se refere a Lênin, era se seria possível continuar com Bogdanov numa mesma organização que, apesar de se chamar "fração", tinha todos os traços de um partido. Se Shachtman não considera a oposição como uma organização independente, então a sua referência ao "bloco LêninBogdanov se quebra em pedaços.

Mas o erro na analogia não se limita a isto. A fração-partido bolchevique desenvolvia uma luta contra o menchevismo, que nessa época já tinha se revelado completamente como uma agência pequeno-burguesa da burguesia liberal. Isto era muito mais sério que a acusação de suposto "conservadorismo burocrático", cujas raízes de classe Shachtman nem tenta definir. A colaboração de Lênin com Bogdanov foi uma colaboração entre uma tendência proletária e uma tendência centrista sectária, contra o oportunismo pequeno-burguês. As linhas de classe estão claras. O "bloco" (usa-se este termo no caso dado) estava justificado.

A história posterior do "bloco" não deixa de ter importância. Na carta a Gorki citada por Shachtman, Lênin expressava a esperança de que seria possível separar as questões políticas das puramente filosóficas. Shachtman se esquece de dizer que a esperança de Lênin não se materializou de modo algum. Desenvolveram-se diferenças desde os cimos da filosofia até abaixo, em todas as questões presentes, inclusive as mais rotineiras. Se o "bloco" não desacreditou o bolchevismo, foi só porque Lênin tinha um programa acabado, um método correto, uma fração firmemente consolidada, na qual o grupo de Bogdanov constituía uma pequena minoria instável.

Shachtman constituiu um bloco com Burnham e Abern contra a ala proletária do seu próprio partido. É impossível negar isto. A relação de forças dentro do bloco está inteiramente contra Shachtman. Abern tem a sua própria fração. Burnham, com ajuda de Shachtman, pode criar um arremedo de fração integrada pelos intelectuais desiludidos do bolchevismo. Shachtman não tem nenhum programa independente, nenhum método independente, nenhuma fração independente. O caráter eclético do "programa" da oposição está determinado pelas tendências contraditórias dentro do bloco. No caso do bloco ter um colapso e este é inevitável — Shachtman sairá da luta sem outra coisa a não ser prejuízo para o partido e para si próprio.

Shachtman apela, além disso, para o fato de que em 1917, Lênin e Trotski se uniram, depois de uma longa luta, e que mais tarde teria sido incorreto recordar-lhes suas diferenças passadas. Este exemplo encontra-se um pouco comprometido pelo fato de que Shachtman já utilizou-o uma vez, para explicar o seu bloco com... Cannon contra Abern. Mas, para além desta desagradável circunstância, a analogia histórica é falsa até a medula. Ao unir-se com o partido bolchevique, Trotski reconheceu completamente e com toda a lealdade a correção dos métodos leninistas de construção do partido. Ao mesmo tempo, a irreconciliável tendência de classe do bolchevismo tinha corrigido um prognóstico incorreto. Se eu não suscitei novamente a questão da "revolução permanente" em 1917, foi porque esta já tinha sido decidida para ambos os lados pela marcha dos acontecimentos. A base para o trabalho conjunto foi constituída não por combinações subjetivas ou episódicas, mas sim pela revolução proletária. Está é uma sólida base. Além disso, tratava-se aqui, não de um "bloco", mas sim da unificação de um só partido, contra, a burguesia e seus agentes pequeno-burgueses. Dentro do partido, o bloco de Outubro de Lênin e Trotski estava dirigido contra as vacilações pequeno-burguesas sobre a questão da insurreição.

Igualmente superficial é a referência de Shachtman ao bloco de Trotski com Zinoviev em 1926. A luta nessa época, estava dirigida não contra o "conservadorismo burocrático" como traço psicológico de uns quantos indivíduos antipáticos, mas sim contra a mais poderosa burocracia do mundo, os seus privilégios, Seu governo arbitrário e sua política reacionária. O aspecto de diferenças permitidas num bloco está determinado pelo caráter do adversário.

A relação de elementos dentro do bloco era igualmente diferente em tudo. A oposição de 1923 tinha seu próprio programa e seus próprios quadros, de modo algum compostos por intelectuais, como afirma Shachtman, fazendo-se eco dos stalinistas, mas sim de trabalhadores de base. A oposição ZinovievKamenev, a pedido nosso, reconheceu em um documento especial que a oposição de 1923 estava correta em todas as questões fundamentais. No entanto, como tínhamos tradições diferentes, e estávamos longe de podermos chegar a um acordo em tudo, a fusão nunca se realizou; ambos os grupos continuaram sendo frações independentes. Em certas questões de importância, é certo, a oposição de 1923 fez concessões de principio à oposição de 1926 — contra o meu voto — concessões que considerei e considero ainda como inadmissíveis. A circunstância de não ter protestado abertamente contra estas concessões pode ter sido um erro. Mas, geralmente, não havia muito lugar para protestos públicos, já que trabalhávamos ilegalmente. Em todo o caso ambos os campos ficaram bem cientes das minhas opiniões sobre as questões polêmicas. Dentro da oposição de 1923, novecentos e noventa e nove mil, senão mais, apoiaram o meu ponto de vista, e não o de Zinoviev ou o de Radek. Com semelhante relação entre os dois grupos dentro do bloco, pode ter havido este ou aquele erro parcial, mas não houve nada parecido com o aventureirismo.

Com Shachtman, o caso é completamente diferente. Quem estava certo no passado, e precisamente quando e onde? Porque é que Shachtman esteve primeiro com Abern, depois com Cannon, e agora de novo com Abern? A própria explicação de Shachtman a respeito das amargas lutas fracionais passadas é digna não de uma figura política responsável, mas sim de uma ama-seca: "Joãozinho enganou-se um pouquinho, Marx outro pouquinho, todos um pouquinho e, agora, todos estamos um pouquinho certos". Quem estava errado, e em quê? Nem uma palavra sobre isto. A tradição não existe. O passado é apagado dos cálculos, e qual é a razão disto? É porque no organismo do partido, o camarada Shachtman desempenha o papel de um rim flutuante.

Em busca de analogias históricas Shachtman foge de um exemplo que é realmente parecido com o seu atual bloco. Penso no chamado bloco de agosto de 1912. Eu participei ativamente neste bloco. De algum modo, dei-lhe Nascimento. Politicamente, eu diferia dos mencheviques em todas as questões fundamentais. Também diferia dos bolcheviques ultra-esquerdistas, dos membros do grupo "Vperiod". Na tendência política geral, encontrava-me muito mais próximo dos bolcheviques. Mas estava contra o "regime" leninista porque ainda não tinha aprendido a compreender que, a fim de realizar a meta revolucionária, é indispensável um partido centralizado, firmemente unido. E assim formei este bloco episódico, composto de elementos heterogêneos que estava dirigido contra a ala proletária do partido.

No bloco de agosto, os liquidadores tinham sua própria fração. Eu me mantive isolado, contava com quem pensasse como eu, mas não com uma fração. Muitos dos documentos foram escritos por mim, e iludindo diferenças de principio, tinham por objetivo a criação de uma aparência de unanimidade a respeito das "questões políticas concretas". Nem uma palavra sobre o passado! Lênin submeteu o bloco de agosto a uma critica sem piedade, e os golpes mais rigorosos caíram sobre mim. Lênin demonstrou que principalmente por eu não ter concordado nem com os mencheviques nem com os membros do grupo "Vperiod", a minha política era aventureira. Isto foi severo, mas certo.

Como "circunstância atenuante", seja-me permitido mencionar o fato de que tinha-me colocado como tarefa, não apoiar a fração direitista ou ultra-esquerdista contra os bolcheviques, mas sim unir o partido no seu conjunto. Os bolcheviques também foram convidados à conferência de agosto. Mas como Lênin se recusou, desde o início, a unir-se com os mencheviques (no que estava completamente certo) vi-me colocado num bloco artificial, com os mencheviques e os membros do grupo "Vperiod". A segunda circunstância atenuante é que o próprio fenômeno do bolchevismo, como verdadeiro partido revolucionário, desenvolvia-se então pela primeira vez; na prática da Segunda Internacional não existiam precedentes. Porém, não tento, por esse meio, absolver-me da menor culpa. Não obstante a concepção de revolução permanente, que revelava, indubitavelmente, a perspectiva correta, não me tinha libertado naquela época, especialmente na esfera organizativa, dos traços do revolucionário pequeno-burguês. Estava com a doença do conciliacionismo com o menchevismo, e de uma atitude desconfiada para com o centralismo leninista. Imediatamente depois da conferência de agosto, o bloco começou a desintegrar-se nos seus componentes. Ao fim de poucos meses, eu estava fora do bloco, não só em matéria de princípios, como também organizativamente.

Hoje dirijo a Shachtman a mesma crítica que Lênin me dirigiu há 27 anos: "O seu bloco não tem princípios". "Sua política é aventureira". De todo o coração, expresso a esperança de que destas acusações Shachtman extraia as mesmas conclusões que uma vez eu extrai.

As frações em luta

Shachtman surpreende-se com o fato de que Trotski, "o líder da oposição de 1923", seja capaz de apoiar a fração burocrática de Cannon. Nisto, como na questão do controle operário, Shachtman revela de novo a sua falta de tato para com a perspectiva histórica. Exatamente para justificar a sua ditadura, a burocracia soviética explorou os princípios do centralismo bolchevique, mas no processo real, transformou-os no seu contrário exato. Isto, no entanto, não desacredita em nada os métodos do bolchevismo. Durante um período de muitos anos, Lênin educou o partido no espírito da disciplina proletária e de um severo centralismo. Enquanto o fazia, sofreu muitas vezes o ata- que das frações e camarilhas pequeno-burguesa. O centralismo bolchevique foi um fator profundamente progressivo que assegurou, em última instância, o triunfo da revolução. Não é difícil compreender que a luta da atual oposição no seio do Socialist Workers Party nada tem em comum com a luta da oposição russa de 1923 contra a privilegiada casta burocrática; mas tem, em contrapartida, muita semelhança com a luta dos mencheviques contra o centralismo bolchevique.

Segundo a oposição. Cannon e seu grupo são "expressão de um tipo de política que poderia muito bem ser descrita como conservadorismo burocrático". Que quer dizer isto? A dominação de uma burocracia operária conservadora, que partilha dos benefícios da burguesia nacional, seria inconcebível sem o apoio direto ou indireto do Estado capitalista. O governo da burocracia stalinista seria inconcebível sem a GPU, o exército, os tribunais etc. A burocracia soviética apóia Stalin, precisamente porque é ele o burocrata que melhor do que qualquer outro, defende os seus interesses. A burocracia sindical apóia Green e Lewis precisamente porque os seus vícios, como burocratas destros e hábeis, salvaguardam os interesses materiais da aristocracia operária. Sobre que bases se apóia o "conservadorismo burocrático" do SWP? É evidente que não é sobre interesses materiais, mas sim numa seleção de tipos burocráticos, em contraste com outro setor onde se reuniram os espíritos dinâmicos, inovadores e com iniciativa. A oposição não assinala nenhum objetivo, como, por exemplo, as bases sociais do "conservadorismo burocrático". Tudo se reduz a pura psicologia. Em tais condições, todo o operário que pense, dirá: é possível que o camarada Cannon realmente peque no que se refere às suas tendências burocráticas — é difícil para mim julgar de longe — mas se a maioria do Comitê Nacional e de todo o partido, que não está de modo algum interessada em "privilégios" burocráticos, apóia Cannon, faz isso não em função de suas tendências burocráticas, mas sim apesar delas. Isto significa que ele tem outras virtudes que servem largamente de contrapeso aos seus defeitos pessoais, Isto é o que dirá um membro sério do partido. E, na minha opinião, estará correto.

Para provar suas queixas e acusações, os lideres da oposição trazem à luz do dia anedotas ou episódios que se podem contar em centenas e milhares em todo o partido, e que, além disso, são, na maioria dos casos, impossíveis de verificar objetivamente. A indulgência está muito longe de mim quando critico a seção de historietas dos documentos da oposição. Mas há um episódio sobre o qual quero me expressar como testemunha e participante. Os lideres da oposição se referem de uma forma muito arrogante à facilidade com que Cannon e seu grupo aceitaram, presumivelmente sem critica e sem deliberação, o programa de reivindicações transitórias, Eis o que escrevi ao camarada Cannon em 15 de abril de 1938, no que diz respeito à elaboração deste programa:

"Enviamos-lhe o projeto do programa de transição e uma breve declaração sobre o partido operário, Sem a visita de vocês ao México nunca teria podido escrever o projeto do programa, porque durante as discussões aprendi muitas coisas importantes que me permitiram ser mais explícito e concreto..."

Shachtman conhece perfeitamente estas circunstâncias, já que ele foi um dos que tomaram parte na discussão.

Os rumores, as especulações pessoais e os simples mexericos não servem para nada, mas ocupam um lugar importante nos círculos pequeno-burgueses, onde as pessoas estão unidas, não por laços de partido, mas sim por relações pessoais, e onde não se adquiriu o hábito de um exame de classe dos acontecimentos. Passou de boca em boca o fato de que fui visitado exclusivamente por representantes da maioria, e que fui assim afastado da senda da verdade. Meus queridos camaradas, não creiam nesta insensatez! Eu obtenho informação política pelos mesmos métodos que uso geralmente no meu trabalho. Uma atitude critica a respeito da informação é parte orgânica da fisionomia política de todo o político. Se eu fosse incapaz de distinguir as comunicações falsas das verdadeiras, que valor poderiam ter os meus juízos em geral?

Conheço não menos que vinte membros da fração Abern. Sinto-me agradecido em relação a alguns deles, pela sua amistosa ajuda ao meu trabalho, e considero-os a todos, ou a quase todos, como valiosos membros do partido. Mas devo dizer, ao mesmo tempo, que o que distingue um do outro, em maior ou menor grau, é a auréola do meio pequeno-burguês" a falta de experiência na luta de classes e, em certa medida, a falta de contato indispensável com o movimento proletário. Os seus aspectos positivos à Quarta Internacional. Os seus aspectos negativos à mais conservadora de todas as frações.

"Inocula-se uma atitude anti-intelectual e anti-intelectuais nas mentes dos membros do partido", queixa-se o documento sobre o "Conservadorismo burocrático" (Boletim Interno, vol. 2, N° 6, janeiro de 1940, p. 12). Este argumento se trai por si só. Os intelectuais que estão em causa não são aqueles que se passaram completamente para o lado do proletariado, mas sim os elementos que tentam levar o nosso partido à posição do ecletismo pequeno-burguês. Este mesmo documento declara: "Faz-se propaganda contra a seção de Nova Iorque que, no fundo, se alimenta de preconceitos nem sempre saudáveis". (idem). A que preconceitos se alude aqui? Aparentemente ao anti-semitismo. Se no nosso partido existem preconceitos anti-semitas ou outros preconceitos raciais, é necessário travar uma luta implacável contra eles, mediante ataques e não através de vagas insinuações. Mas a questão dos intelectuais e dos semi-intelectuais judeus de Nova Iorque é uma questão social e não nacional. Em Nova Iorque há uma grande quantidade de proletários judeus, mas a fração Abern não é formada por eles. Os elementos pequeno-burgueses desta fração demonstraram-se incapazes, até agora, de encontrar o caminho em direção aos operários judeus. Sentem-se satisfeitos com o seu próprio meio.

Conheci mais de um exemplo na história — dito com mais precisão: nunca na história ocorreu de outra maneira — onde na transição do partido para um outro período, aqueles elementos que tiveram um papel progressivo no passado, mas que demonstraram ser incapazes de adaptar-se a tempo às novas tarefas se uniram entre si frente ao perigo e revelaram, quase exclusivamente seus aspectos negativos, e não os positivos. E esse precisamente o atual papel da fração Abern, na qual Shachtman tem o papel de jornalista e Burnham o papel de conselheiro teórico. "Cannon sabe — insiste Shachtman -quão falso é introduzir na atual discussão a 'questão Abern'. Ele sabe o que todo dirigente informado do partido, e muitos membros sabem, que durante os vários anos, não existiu pelo menos nenhuma coisa tal como um 'grupo Abern'." Tomo a liberdade de assinalar que se há alguém que esteja deformando a realidade, não é outro senão o próprio Shachtman. Estive seguindo o desenvolvimento das relações internas da seção americana durante quase dez anos. A composição especifica e o papel especial jogado pela organização de Nova Iorque ficou evidente para mim, antes de qualquer outra coisa. Shachtman recordará talvez que, quando eu estava ainda em Prinkipo, aconselhei ao Comitê Nacional que se mudasse durante algum tempo de Nova Iorque e de sua atmosfera de disputas pequeno-burguesas para algum centro industrial de província. Depois da minha chegada ao México, tive oportunidade de conhecer melhor o idioma inglês e graças a muitas visitas de meus amigos do Norte, de chegar a uma descrição mais viva da composição social e da psicologia política dos distintos grupos. Sobre a base das minhas próprias observações pessoais imediatas durante os passados três anos, posso afirmar que a fração Abern existiu ininterruptamente, senão "dinamicamente", pelo menos estaticamente.

Os membros da fração Abern são facilmente reconhecíveis, para alguém que tenha certa dose de experiência política, não só pelos seus traços sociais, como também pela sua forma de encarar todas as questões. Estes camaradas sempre negaram formalmente a existência de sua fração. Houve um período em que alguns deles tentaram realmente integrar-se no partido. Mas tentaram isto violentado a si próprios, e em todas as questões criticas relacionavam- se com o partido como grupo. Interessava-lhes muito mais as combinações de cúpula, os conflitos pessoais e as ocorrências gerais no "Estado-Maior" que as questões de princípios, em particular a questão de mudar a composição social do partido. Esta é a escola de Abern. Adverti insistentemente muitos destes camaradas que, se mergulhassem nessa existência artificial, infalivelmente, mais tarde ou mais cedo, seriam levados a uma nova explosão fracional.

Os líderes da oposição falam irônica e desdenhosamente da composição proletária da fração de Cannon; a seus olhos, este "detalhe" incidental carece de importância. Que é isto, senão o desdém pequeno-burguês combinado com a cegueira? No segundo Congresso dos social-democratas russos, em 1903, em que se produziu a cisão entre bolcheviques e mencheviques, só havia três operários entre várias dezenas de delegados. Os três passaram-se para a maioria. Os mencheviques zombaram de Lênin porque este atribuiu ao fato uma grande importância sintomática. Os mesmos mencheviques explicaram a posição dos três trabalhadores por sua falta de "maturidade". Mas, como se sabe, era Lênin que estava certo.

Se a seção proletária do nosso partido americano é "politicamente atrasada", então a primeira tarefa dos "avançados" devia ter consistido em elevar os trabalhadores a um nível superior. Mas, por que a atual oposição fracassou em encontrar o seu caminho em direção aos trabalhadores? Porque deixou que este trabalho fosse feito pela "camarilha Cannon"? O que é que há em tudo isto? Para a oposição os operários não são suficientemente bons? Ou será que a oposição não convence os operários?

Seria uma imbecilidade pensar que a seção operária do partido é perfeita. Os operários só alcançam gradualmente uma clara consciência de classe. Os sindicatos sempre criam um caldo de cultura para os desvios oportunistas. Inevitavelmente, iremos nos referir a esta numa das próximas etapas. Mais de uma vez o partido terá de recordar a seus próprios sindicalistas, que uma a adaptação pedagógica às camadas mais atrasadas do proletariado não deve transformar-se em uma adaptação política à burocracia conservadora dos sindicatos. Toda nova etapa de desenvolvimento, todo o crescimento das fileiras partidárias e a complicação dos métodos do seu trabalho, não só abre novas possibilidades, como também novos perigos. Os operários nos sindicatos, mesmo aqueles educados na escola mais revolucionária, desenvolvem freqüentemente uma tendência para se libertarem do controle do partido. Atualmente, no entanto, não se trata de modo algum disto. Atualmente, a oposição não proletária, arrastando atrás de si a maioria da juventude não proletária, está revisando a nossa teoria, o nosso programa, a nossa tradição; e faz tudo isto frivolamente, e, diga-se de passagem, para maior utilidade na luta contra a "camarilha de Cannon". Atualmente, a falta de respeito pelo partido, não é mostrada pelos sindicalistas, mas pelos oposicionistas pequeno-burgueses. Precisamente, a fim de impedir que os sindicalistas voltem as costas ao partido, é necessário condenar decisivamente, no futuro, os oposicionistas pequeno-burgueses.

Além disso, é inadmissível esquecer que os erros possíveis ou reais daqueles camaradas que trabalham nos sindicatos refletem a pressão do proletariado americano tal como é hoje. Esta é a nossa classe. Estamos dispostos a não capitular perante a sua pressão. Mas esta pressão nos indica, ao mesmo tempo, onde está a nossa principal rota histórica. Os erros da oposição, pelo contrário, refletem a pressão de outra classe estranha. A condição elementar para os nossos futuros êxitos está na ruptura ideológica com essa classe.

Os raciocínios da oposição a respeito da juventude são extremamente falsos. Evidentemente, sem a conquista da juventude proletária o partido revolucionário não pode crescer. Mas a dificuldade consiste em que temos uma juventude quase inteiramente pequeno-burguesa e que tem, em grau considerável, um passado social-democrata... quer dizer, oportunista. Os dirigentes desta juventude têm indubitáveis virtudes e condições, mas — aí! — foram educados no espírito do combinacionismo pequeno-burguês e, se não são arrancados do seu meio habitual, se não são enviado o penoso trabalho quotidiano entre o proletariado, podem perder-se para sempre para o movimento revolucionário. Com respeito à juventude, como em relação a todas as outras questões, Shachtman tomou, infelizmente, uma posição falsa até a medula dos ossos.

Chegou a hora de se deter!

Podemos ver o grau de degradação do pensamento de Shachtman — que parte de um ponto de partida falso — no fato dele descrever a minha posição como uma defesa da "camarilha Cannon" e insistir várias vezes sobre o fato de que na França eu, apoiei também equívocamente, a "camarilha Molinier". Tudo é reduzido ao meu apoio a indivíduos isolados ou a grupos, com total independência em relação a seus programas. O exemplo de Molinier vem tomar a névoa ainda mais espessa. Tentarei dispersa-la. Molinier foi acusado, não de se afastar de nosso programa, mas sim de ser indisciplinado, arbitrário e de lançar-se em todo o tipo de aventuras financeiras para sustentar o partido e sua fração. Como Molinier ê um homem muito enérgico e tem indiscutíveis qualidades práticas, pareceu-me necessário - não só no interesse de Molinier, mas sobretudo no interesse da própria organização -esgotar todas as possibilidades de convencê-lo e reeducá-lo no espírito da disciplina proletária. Como muitos dos seus adversários possuíam todos os seus defeitos e nenhuma de suas virtudes, fiz o possível para convencê-los, não para precipitar uma cisão, mas sim para colocar Molinier à prova uma e outra vez. Foi isto que constituiu a minha "defesa de Molinier" no período de adolescência de nossa seção francesa.

Ao adotar uma posição paciente em relação aos camaradas precipitados ou indisciplinados, e ao fazer repetidos esforços para reeducá-los no espírito revolucionário, como algo absolutamente obrigatório, não apliquei estes métodos, de nenhuma maneira, unicamente com Molinier. Fiz esforços para atrair ao partido e salvar Kurt Landau. Field, Weisbord, o austríaco Frey, o francês Treint e vários outros. Em muitos casos, os meus esforços foram infrutíferos; em alguns, foi possível resgatar valiosos camaradas.

Em todo o caso, não fiz a menor concessão de princípios a Molinier. Quando ele decidiu fundar um jornal com base em "quatro palavras-de-ordem em lugar do nosso programa, e deu passos independentes para executar seu plano, eu estive entre os que insistiram na sua expulsão imediata. Mas não quero esconder o fato de que o Congresso de Fundação da Quarta Internacional esteve a favor, uma vez mais, de colocar Molinier e seu grupo à prova dentro da estrutura da Internacional, para ver se estavam convencidos de como era errada sua política. Também desta vez, a, tentativa não deu qualquer resultado. Não desisto, no entanto, de repeti-la novamente e uma vez mais sob condições adequadas. É muito curioso verificar que entre os mais encarniçados adversários de Molinier houvesse gente como Vereecken e Sneevliet que se uniram a ele, depois de terem rompido com a Quarta Internacional.

Alguns camaradas, depois de conhecerem meus arquivos, me censuraram amistosamente por ter perdido e continuar perdendo muito tempo para convencer "gente sem esperança". Respondi-lhes que muitas vezes tive ocasião de observar como as pessoas mudam com as circunstâncias e que, portanto, não me apresso a declará-las "sem esperanças", baseado em uns quantos erros, por mais sérios que sejam.

Quando me pareceu claro que Shachtman estava empurrando a si mesmo e a certo setor do partido para um beco sem saída, escrevi-lhe dizendo que se tivesse possibilidade de fazê-lo, tomaria um avião para Nova Iorque, a fim de discutir durante setenta e duas horas com ele, e de uma só vez. Perguntei-lhe se não queria fazer o possível para que nos reuníssemos de alguma maneira. Shachtman não respondeu. Estava no seu pleno direito. É muito possível que os camaradas que no futuro tenham contato com meus arquivos, digam, também neste caso, que a minha carta a Shachtman foi um passo em falso da minha parte e que citem este "erro" meu em relação à minha exagerada insistência em "defender" Molinier. Não me convencerão. A tarefa de formar uma vanguarda proletária internacional nas atuais condições, é extremamente difícil. Correr atrás dos indivíduos à custa dos princípios seria, naturalmente, um crime. Mas considerei, e continuo considerando como meu dever fazer todo o possível para trazer novamente para o nosso programa destacados, ainda que errados, camaradas.

Da mesma discussão sobre os sindicatos, que Shachtman utilizou com tão evidente incongruência, cito as palavras de Lênin, que Shachtman deveria gravar na sua mente:

"Um erro começa sempre por ser pequeno, para crescer e tornar-se maior. As divergências sempre começam por bagatelas. Todo o mundo sofreu alguma vez uma pequena ferida; mas se a pequena ferida tivesse infeccionado, poderia ter produzido uma doença mortal".

Assim Lênin falou em 23 de janeiro de 1921. É impossível não cometer erros; alguns enganam-se muito freqüentemente, outros menos. O dever de um revolucionário proletário é o de não persistir nos erros, não colocar a ambição acima dos interesses da causa, saber deter-se a tempo. Chegou a hora do camarada Shachtman se deter! De outra maneira, o arranhão, que já se transformou em úlcera, pode transformar-se em uma gangrena.

Leon Trotsky
24 de janeiro de 1940
Coyoacán (México), D.F.


Notas:

(1) Independent Labour Party (Partido Trabalhista Independente) organização formada a partir de uma cisão pela esquerda do Partido Trabalhista Inglês. (retornar ao texto)

(2) Socialistiche Arbeitpartei (Partido Socialista Operário da Alemanha). (retornar ao texto)

(3) Sobre esta questão, recomendo aos jovens camaradas que estudem as obras de Engels (“Anti-Dühring”), Plekanov e Antonio Labriola (nota de Trotsky). (retornar ao texto)

(4) Este artigo já estava escrito quando li no New York Times de 17 de janeiro as seguintes linhas, relativas à antiga Polônia do Leste: "Na indústria, ainda não se realizaram atos de expropriação em grande escala. Os principais centros bancários, a rede ferroviária, e muitas das grandes empresas industriais foram estatizadas anos antes da ocupação russa. Nas pequenas e médias indústrias. os trabalhadores exercem agora o controle sobre a produção.
"Os industriais conservam nominalmente o pleno direito de propriedade sobre seus estabelecimentos, mas são obrigados a submeter os relatórios dos custos de produção, etc., à consideração dos delegados dos trabalhadores. Estes últimos, junto com os patrões, estabelecem os salários, as condições de trabalho e um lucro justo para os industriais.”
Vemos que "a realidade dos fatos vivos.” não se submete em absoluto aos modelos sem vida dos dirigentes da oposição. Entretanto. as nossas "abstrações" estão se convertendo em carne e osso (nota de Trotsky). (retornar ao texto)

Inclusão 19/07/2009
Última alteração 20/05/2014