A URSS na Guerra

Leon Trotsky

25 de Setembro de 1939

Transcrição autorizada
logotipo

Primeira Edição: The New International [New York], Vol.5 No.11, November 1939, pp.325-332.
Fonte: "Em Defesa do Marxismo", publicação da Editora "Proposta Editorial"
Direitos de Reprodução: © Editora Proposta Editorial. Agradeçemos a Valfrido Lima pela autorização concedida.


O pacto germano-soviético e a natureza da URSS

Após a realização do pacto germânico-soviético, será possível considerar a URSS com um estado operário? O futuro do estado soviético já suscitou entre nós, várias discussões. Não é de estranhar; temos diante de nós a primeira experiência de um estado operário na história. Antes disso, este fenômeno nunca acontecera para que pudesse ser analisado. Como já havíamos dito anteriormente, frente ao problema do caráter social da URSS, os erros habitualmente acontecem, como o de substituir o fato histórico pela norma programática. O fato histórico se desvincula da norma. No entanto, isto não significa que a norma não tenha mais valor; ao contrario, foi reafirmada a partir do ponto de vista negativo. A degeneração do primeiro estado operário, investigada e explicada por nós, somente mostrou, mais graficamente, o que deve ser um estado operário, o que poderia e deveria ser sob determinadas condições históricas. A contradição entre o fato concreto e a norma, não nos leva a negar a norma, mas ao contrario, lutar por ela através de uma via revolucionária. O programa da revolução que se aproxima na URSS está determinado, por um lado, pela nossa análise da URSS como um fato histórico objetivo, e por outro, pela norma que define um estado operário. Não dizemos: “Tudo está perdido, devemos começar tudo novamente”. De forma muito clara, indicamos aqueles elementos do estado operário que atualmente podem ser preservados, mantidos e posteriormente desenvolvidos.

Aqueles que hoje se esforçam para demonstrar que o pacto germânico-soviético modifica nossa análise sobre o estado soviético mantêm, na essência, as mesmas posições que o Comintern – ou mais exatamente, as mesmas posições que o Comintern defendia ontem. De acordo com esta lógica, a missão histórica do estado operário é a luta pela democracia imperialista. A “traição” das democracias, em prol do fascismo, faz com que a URSS deixe de ser considerada um estado operário. Na verdade, a assinatura do tratado com Hitler só proporciona um elemento extra, com o qual pode-se medir o grau de degeneração da burocracia soviética e seu desprezo pela classe operária internacional, incluindo o Comintern, mas não dá nenhuma base para uma revisão da apreciação sociológica da URSS.

As divergências são políticas ou terminológicas?

Comecemos por colocar o problema da natureza do estado soviético, não em um nível sociológico-abstrato, mas no plano das tarefas políticas concretas. Admitamos, por um momento, que a burocracia é uma nova “classe”, e que o atual regime da URSS é um sistema especial de exploração de classe. Que novas conclusões podemos tirar a partir destas definições? Há muito tempo, a Quarta Internacional reconheceu a necessidade de derrotar a burocracia através de uma insurreição revolucionária dos trabalhadores. Nenhuma outra coisa poderia e nem pode ser proposta por aqueles que proclamam que a burocracia é uma “classe” exploradora. Com a derrota da burocracia, o objetivo a ser alcançado, é o restabelecimento do governo dos sovietes (conselhos) expulsando de seu interior a atual burocracia. Os críticos de esquerda(1) não propõem nem poderiam propor algo diferente. A tarefa dos sovietes regenerados é colaborar com a revolução mundial e com a construção de uma sociedade socialista. Portanto, a derrota da burocracia pressupõe a preservação da propriedade do estado e da economia planificada. É nisto que se encontra o “x” da questão.

É evidente que a distribuição das forças produtivas entre os diferentes ramos da economia, e de modo geral todo o conteúdo do plano, serão mudados drasticamente quando este plano estiver sendo determinado não pelos interesses da burocracia, mas pelos dos próprios produtores. Porém, à medida que o problema da derrota da oligarquia parasitária continue unindo à manutenção da propriedade nacionalizada (do estado) definimos a próxima revolução como uma revolução política. Seja como for, alguns dos nossos críticos (Ciliga, Bruno e outros) querem defini-las como uma revolução social. Aceitamos esta definição. Em essência, o que será modificado? As tarefas da revolução que estamos discutindo não ficam alternadas em nada.

Como norma nossos críticos aceitam os fatos tal e qual nós o estabelecemos, há muito tempo atrás. Não acrescentam nada de essencial à apreciação, seja sobre a situação da burocracia e dos trabalhadores, seja sobre o papel do Kremlin no campo internacional. Em todos esses terrenos, não só não conseguem desafiar nossa análise, mas se baseiam nela e inclusive se limitam totalmente a ela. A única acusação que dirigem contra nós é a e que não tiramos as “conclusões” necessárias. No entanto uma vez examinadas, parece que estas conclusões possuem um caráter puramente terminológico. Nossos críticos se negam a chamar o estado operário degenerado de estado operário. Exigem que a burocracia totalitária seja chamada de classe dirigente. Se propõem a considerar a revolução contra esta burocracia como uma revolução social e não política. Se lhes fizéssemos estas concessões terminológicas, colocaríamos nossos críticos em uma situação muito difícil, pois não saberiam nem mesmo o que fazer com sua vitória puramente verbal.

Examinemo-nos mais uma vez

Portanto, seria um monstruoso absurdo romper com os camaradas que possuem uma opinião diferente da nossa sobre o problema da natureza social da URSS, na medida em que se solidarizam conosco no que diz respeito às tarefas políticas. Porém, por outro lado, estaríamos sendo cegos se ignorássemos as divergências puramente teóricas, e inclusive terminológicas, uma vez que no curso de novos desenvolvimentos, podem tomar corpo e sangue e nos levar a conclusões diametralmente opostas. Assim como uma zelosa dona-de-casa não deixa nunca sua casa ficar cheia de teias de aranha e lixo, assim também um partido revolucionário nunca pode tolerar a falta da clareza, a confusão e os equívocos. Nossa casa deve conservar-se limpa!

Para ilustrar esta idéia, recordarei a questão do Termidor.

Durante muito tempo, afirmamos que na URSS, o Termidor estava somente sendo preparado, mas ainda não havia se consumado. Mais tarde, analisando a analogia com o Termidor, de uma forma mais precisa e reflexiva, chegamos à conclusão de que o Termidor já havia acontecido há muito tempo. Tal retificação, aberta, de nosso próprio erro, não suscitou a mínima comoção em nossas fileiras. Por que? Porque a essência dos processos na URSS havia sido compreendida de maneira idêntica por todos nós, pois havíamos estudado juntos, e todos os dias, o crescimento da reação. Para nós, tratava-se somente de precisar melhor uma analogia histórica, mais nada. Espero que ainda hoje, apesar do esforço de alguns camaradas para ocultarem as divergências sobre o problema da “defesa da URSS” – tema que iremos tratar a seguir – posamos, simplesmente precisando melhor nossas idéias, conservar nossa unanimidade sobre as bases do programa da Quarta Internacional.

Um desenvolvimento canceroso ou um novo órgão?

Nossos críticos argumentaram, mais de uma vez, que a atual burocracia soviética se parece muito pouco com a burocracia burguesa ou com a burocracia operária da sociedade capitalista; e em grau muito maior que a burocracia fascista, representa uma formação social nova e muito mais poderosa. Isto é totalmente correto, e nunca fechamos nossos olhos a este fato. Porém, se considerarmos a burocracia soviética como uma “classe”, então seremos obrigados a afirmar, imediatamente, que essa classe também não se parece, em nada, com nenhuma das classes proprietárias que conhecemos no passado; e o resultado, portanto não é dos melhores. Frequentemente, qualificamos a burocracia soviética como casta, sublinhando com isso seu caráter fechado, seu governo arbitrário, e a altivez da camada dirigente, que consideraram seus progenitores como descendentes dos lábios divinos de Brahma, enquanto que as massas populares provêm das partes mais vis de sua anatomia. Porém, mesmo esta definição, também não possui um caráter estritamente científico. Sua vantagem relativa, reside no fato de que o caráter provisório deste termo fica claro para todos, uma vez que não ocorre a ninguém, identificar a oligarquia de Moscou à casta hindu dos brâmanes. A antiga terminologia sociológica não preparou, e nem poderia preparar, um nome para um novo fenômeno social que está em processo de evolução (degeneração), e que não assumiu formas estáveis. No entanto, continuamos qualificando a burocracia soviética de burocracia, sem esquecer suas particularidades históricas. No momento, e desde o nosso ponto de vista, isto é suficiente.

Cientifica e politicamente – e não só terminologicamente – o problema se coloca da seguinte forma: a burocracia representa um desenvolvimento temporário em um organismo social, ou este desenvolvimento já se transformou em um órgão historicamente indispensável? As excrescências sociais podem ser produto de uma combinação “acidental” (ou seja, temporal e excepcional) de circunstâncias históricas. Um órgão social (e toda classe, inclusive uma classe exploradora, o é) não pode se constituir a não ser como resultado das profundas exigências internas da própria produção. Se não respondemos a esta questão, toda a discussão se degenerará em um estéril jogo de palavras.

A rápida degeneração da burocracia

A justificativa histórica de toda classe governante sempre consistiu nisto: em que o sistema de exploração por ela dirigido, colocou o desenvolvimento das forças produtivas em um nível superior. Indubitavelmente, o regime soviético deu um poderoso impulso à economia. Porém, a origem deste impulso foi a nacionalização dos meios de produção e o inicio da planificação da economia, e de forma nenhuma, o fato da burocracia ter usurpado a direção da economia. Ao contrario, a burocracia, como sistema, se converteu no pior dos freios ao desenvolvimento técnico e cultural do país. Tal coisa ficou escondida durante certo tempo, pelo fato da economia soviética ter se ocupado, durante dois decênios, em transplantar e assimilar a tecnologia e a organização da produção dos países capitalistas avançados. Bem ou mal, o período de cópias e imitações ainda pôde se acomodar ao automatismo burocrático, ou seja, à asfixia do espírito de iniciativa e criação. Porém, quanto mais se desenvolvia a economia e mais complexas se tornavam as suas exigências, tanto mais insuportável se tornava o obstáculo do regime burocrático. A contradição sempre crescente entre uma e outra leva a convulsões políticas incessantes, ao extermínio sistemático dos elementos criadores mais iminentes em todos os terrenos de atividade. Assim, antes de se exsudar como “classe dirigente”, a burocracia entrou em contradição irreconciliável com as exigências do desenvolvimento. A explicação para tal coisa, deve ser buscada exatamente no fato de que a burocracia não é a portadora de um novo sistema econômico próprio, que sem ela se torna impossível, mas é uma excrescência parasitária em um estado operário.

As condições para a onipotência e queda da burocracia

A oligarquia soviética possui todos os defeitos das velhas classes dirigentes, sem possuir a missão histórica destas. Na degeneração burocrática do estado soviético, não são as leis gerais da sociedade contemporânea, do capitalismo ao socialismo, as que encontram sua expressão, mas sim um reflexo particular, excepcional e temporário dessas leis, nas condições de um país revolucionário atrasado em um meio capitalista. A escassez dos bens de consumo e a luta geral por sua obtenção dão origem ao surgimento de um policial, que se atribui a função de distribuição desses bens. A pressão hostil exercida a partir do exterior impõe ao policial, o papel de “defensor” do país, lhe dá uma autoridade nacional e lhe permite dessa forma, saquear duplamente o país.

No entanto, ambas as condições para a onipotência da burocracia (o atraso do país e a vizinhança imperialista) possuem um caráter temporário e transitório e devem desaparecer com a vitória da revolução internacional. Os próprios economistas burgueses calcularam que, com uma economia planificada, poder-se-ia elevar rapidamente a renda nacional dos EUA para 200 bilhões de dólares anuais e desta forma, garantir a toda população não só a satisfação de suas necessidades elementares, mas inclusive um verdadeiro bem-estar. Por outro lado, a revolução internacional significa o fim do perigo proveniente do exterior, causa suplementar da burocratização. A eliminação da necessidade de se gastar uma parte enorme da renda nacional em armamentos, aumentaria ainda mais o nível de vida e o nível cultural das massas. Nestas condições, a necessidade de um policial-distribuidor desapareceria por si mesmo. A administração, como uma cooperativa gigantesca, substituiria muito rapidamente o poder estatal. Não haveria lugar para uma nova classe dirigente e nem para um novo regime de exploração, situado entre o capitalismo e socialismo.

E se a revolução socialista não se realizar?

A desintegração do capitalismo, assim como a desintegração da velha classe dirigente alcançou limites extremos. É impossível a permanência deste sistema. As forças produtivas devem ser organizadas de acordo com um plano. Porém, quem levará a cabo esta tarefa? O proletariado ou uma nova classe de “comissários” (políticos, administradores e técnicos)? De acordo com a opinião de alguns pensadores, a experiência histórica demonstra que não se pode ter esperanças no proletariado. O proletariado se mostrou “incapaz” de impedir a última guerra imperialista, apesar do fato de que naquele momento já existiam as condições materiais para a revolução socialista. Após a guerra, a vitória do fascismo foi novamente conseqüência da “incapacidade” do proletariado para tirar a sociedade capitalista do beco sem saída. Por sua vez, a burocratização do estado soviético foi conseqüência da “incapacidade” do próprio proletariado para negar a sociedade através de um mecanismo democrático. A revolução espanhola foi estrangulada pelas burocracias fascistas e stalinistas, ante os mesmos olhos do proletariado mundial. Por fim, o último elo desta cadeia, é a nova guerra imperialista, cuja preparação tomou forma aberta, com uma total impotência por parte do proletariado mundial. Se esta concepção for aceita, ou seja, se se admite que o proletariado não possui forças para levar a cabo a revolução socialista, então obviamente, a urgente tarefa de estatizar as forças produtivas será levada a cabo por outros. Por quem? Por uma nova burocracia que substituirá a burguesia decadente, como uma nova classe dirigente em escala mundial é dessa forma que o problema começou a ser colocado por aqueles “esquerdistas”, que não se cansam de debater em cima de palavras.

A guerra atual e o destino da sociedade moderna

Pela própria evolução dos acontecimentos, este problema agora é colocado de forma bastante concreta. Teve inicio a Segunda Guerra Mundial. Tal coisa confirma, sem qualquer sombra de duvidas, que a sociedade não pode continuar vivendo sobre as bases do capitalismo. Deste modo, submete o proletariado a uma nova e talvez decisiva prova.

Se, como acreditamos firmemente, esta guerra provoca uma revolução proletária, ela levará inevitavelmente à derrota da burocracia da URSS e à regeneração da democracia soviética sobre bases econômicas e culturais muito mais elevadas do que em 1918. Neste caso, o problema de se a burocracia stalinista era uma “classe” ou uma excrescência no estado operário se resolverá automaticamente. Para qualquer pessoa, ficará claro que, no processo de desenvolvimento de revolução mundial, a burocracia soviética foi somente uma recaída episódica.

No entanto, se se admite que a guerra atual provocará não a revolução, mas um declínio do proletariado, então resta outra alternativa: a maior decadência do capitalismo monopolista, sua maior fusão com o estado, e a substituição da democracia ali aonde ainda existia por um regime totalitário. Atualmente, e sob estas condições, a incapacidade do proletariado para tomar em suas mãos a direção da sociedade, poderia levar ao crescimento de uma nova classe exploradora, a partir da burocracia fascista bonapartista. De acordo com essas evidências, este seria um regime de decadência, que assinalaria a eclipse da civilização.

Resultado análogo poderia se dar no caso em que o proletariado dos países capitalistas avançados, tendo conquistado o poder, se mostrasse incapaz de conservá-lo e o abandonasse nas mãos de uma burocracia privilegiada, como no caso da URSS. Então, seríamos obrigados a reconhecer que a razão da recaída burocrática está baseada não no atraso do país, e nem no cerco imperialista, mas na incapacidade congênita do proletariado, de se converter em classe dirigente. Então, seria necessário estabelecer retrospectivamente, que em seus traços fundamentais, a atual URSS foi precursora de um novo regime explorador em escala internacional.

Nos distanciamos muito da controvérsia terminológica sobre a nomenclatura do estado soviético. Porém, não deixamos nossos críticos protestarem. Somente levando-se em conta a necessária perspectiva histórica pode-se fazer um juízo correto sobre um problema como o da substituição de um regime social por outro. A alternativa histórica, levada até o fim, é a seguinte: ou o regime de Stalin é uma recaída detestável no processo de transformação da sociedade burguesa em uma sociedade socialista, ou o regime de Stalin é o primeiro estágio de uma nova sociedade exploradora. Se a segunda hipótese mostrar-se correta, então, logicamente, a burocracia se converterá em uma nova classe exploradora. Por mais custosa que seja a segunda perspectiva, se o proletariado se mostrasse realmente incapaz de cumprir a missão que lhe impõe o curso dos acontecimentos, restaria somente reconhecer que o programa socialista, baseado nas contradições internas da sociedade capitalista, acabou sendo uma utopia. E, por si só, estaria evidente que seria necessário um novo programa “mínimo” para a defesa dos interesses dos escravos da sociedade burocrática totalitária.

Porém, existem dados objetivos tão incontrovertidos ou talvez, tão impressionantes, que hoje nos obriguem a renunciar à perspectiva da revolução socialista? Esta é a questão.

A teoria do “coletivismo burocrático”

Pouco depois da subida de Hitler ao poder, um “comunista de esquerda” alemão, Hugo Urbahns, chegou à conclusão de que ao invés do capitalismo, estava iminente uma nova era histórica de “capitalismo de estado”. Os primeiros exemplos desse regime que Urbahns assinalou foram a Itália, a URSS e a Alemanha. No entanto, não tirou as conclusões políticas de sua teoria. Recentemente, um “comunista de esquerda” italiano, Bruno R., que anteriormente havia aderido a Quarta Internacional, chegou à conclusão de que o “coletivismo burocrático” substituiria o capitalismo (Bruno R., La Bureaucratisation du Munde, Paris, 1939). A nova burocracia é uma classe, uma relação com os trabalhadores é a exploração coletiva, os proletários se converteram nos escravos dos exploradores totalitários.

Bruno R. coloca num mesmo nível a economia planificada na URSS, o fascismo, o nacional-socialismo e o New Deal de Roosevelt. Sem dúvidas, todos estes regimes possuem características comuns, que, em última instância, estão determinadas pelas tendências coletivistas da economia moderna. Inclusive antes da revolução de outubro, Lênin formulou as principais particularidades do capitalismo imperialista desta forma: concentração gigantesca das forças produtivas, crescente grau de fusão do capitalismo monopolista com o estado, e a tendência orgânica em direção à ditadura pura, como resultado desta fusão. As características da centralização e da coletivização, determinam tanto a política da revolução como a da contra-revolução; porém, de forma alguma, isto significa que seja possível se igualar a revolução, o Termidor, o fascismo e o “reformismo”, como resultado da prostração política da classe operária. O fenômeno, em si mesmo, é incontestável. Porém, onde estão seus limites e qual o seu peso histórico? O que nós aceitamos como uma deformação de um período transitório, como o resultado do desenvolvimento desigual de múltiplos fatores no processo social, é considerado por Bruno R. como uma formação social independente, na qual a burocracia é a classe dirigente. De todas as formas, Bruno R. tem o mérito de tirar o problema do círculo vicioso dos exercícios terminológicos em cadernos escolares e passá-lo ao plano das generalizações históricas mais importantes. Isso faz com que fique mais fácil descobrir o seu erro.

Como muitos ultra-esquerdistas, Bruno R. identifica, em essência, o stalinismo com o fascismo. Por um lado, a burocracia soviética adotou os métodos políticos do fascismo; por outro, a burocracia fascista, que continua limitando-se a medidas “parciais” de intervenção estatal, está se dirigindo e logo vai alcançar a estatização completa da economia. A primeira afirmação é absolutamente correta. Porém, a afirmação de Bruno de que o “anti-capitalismo” fascista seja capaz de chegar à expropriação da burguesia, é completamente equivocada. As medidas “parciais” de intervenção estatal e nacionalização, diferem na realidade da economia planificada de estado, tanto quanto a reforma difere da revolução. Mussolini e Hitler estão somente “coordenando” os interesses dos proprietários e “regulando” a economia capitalista, e além disso tudo, principalmente para fins bélicos. A oligarquia do Kremlin é, repitamos, outra coisa: tem a oportunidade de dirigir a economia como organismo, só pelo fato da classe operária russa ter levado a cabo a maior virada nas relações de propriedade de toda a história. Esta diferença não pode ser deixada de lado.

Porém, mesmo que admitamos que o socialismo e o fascismo vindo de pólos opostos, cheguem um dia a ser o mesmo tipo de sociedade exploradora (“coletivismo burocrático”, de acordo com a terminologia de Bruno R.), isto ainda não tirará a humanidade de seu beco sem saída. A crise do sistema capitalista não é produzida somente pelo papel reacionário da propriedade privada, mas também pelo não menos reacionário papel do estado nacional. Inclusive se os diferentes governos fascistas tiverem êxito em estabelecer um sistema de economia planificada em seu país, então – a longo prazo – à margem dos inevitáveis movimentos revolucionários do proletariado, imprevisíveis em qualquer plano, a luta entre os estados totalitários para a dominação mundial continuará, e inclusive se intensificaria. As guerras devorariam os frutos da economia planificada e destruiriam as bases da civilização. É certo que Bertrand Russel acha que como resultado da guerra, algum estado vitorioso, pudesse unificar o mundo inteiro em um cárcere totalitário. Porém, mesmo que esta hipótese se realizasse, coisa que é altamente duvidosa, a “unificação” militar não teria maior estabilidade do que o tratado de Versalhes. Os levantes nacionais e as pacificações culminariam em uma nova guerra mundial, que seria a sepultura da civilização. Não são os nossos desejos subjetivos, mas a realidade objetiva, o que indica que o único caminho para a humanidade é a revolução socialista mundial. A alternativa para isso é a volta à barbárie.

O proletariado e sua direção

Muito breve deveremos dedicar um artigo, em separado, à questão da relação entre a classe e sua direção. Aqui, devemos nos limitar só ao mais indispensável. Somente “marxistas” vulgares, que consideram que a política é um “reflexo” direto e simples da economia, são capazes de pensar que a direção reflete a classe, direta e simplesmente. Na realidade, a direção, tendo se elevado acima da classe oprimida, sucumbe inevitavelmente à pressão da classe dominante. Por exemplo, a direção dos sindicatos norte-americanos, “reflete” não tanto o proletariado, mas a burguesia. A seleção e educação de uma verdadeira direção revolucionária, capaz de resistir à pressão da burguesia, é uma tarefa extraordinariamente difícil. A dialética do processo histórico se expressou de forma extremamente brilhante no fato de que o proletariado do país mais atrasado, a Rússia, sob certas condições históricas, deu lugar à direção mais sagaz e à mais corajosa. Ao contrário, o proletariado do país com a mais antiga cultura capitalista, a Grã-Bretanha, possui, inclusive hoje, a mais estúpida e servil das direções.

A crise da sociedade capitalista, que tomou um caráter mais aberto em julho de 1914, produziu uma crise aguda na direção proletária, a partir do primeiro dia da guerra. Durante os 25 anos que transcorreram desde então, o proletariado dos países capitalistas avançados ainda não criaram uma direção que possa estar à altura das tarefas de nossa época. No entanto, a experiência da Rússia demonstra que tal direção pode ser criada. (Isso não significa, logicamente, que estaria imune à degeneração). Consequentemente, a questão está colocada de seguinte maneira: a necessidade histórica objetiva, em seu longo caminho, abrirá seu próprio espaço na consciência da vanguarda da classe operária? Ou seja, no processo desta guerra e destas profundas comoções que deverá engendrar, formar-se-á uma verdadeira direção revolucionária, que seja capaz de dirigir o proletariado rumo à conquista do poder?

A Quarta Internacional responde esta questão afirmativamente, não só através do texto de seu programa(2), mas também através do fato mesmo de sua existência. Todas as distintas variedades de representantes desiludidos e atemorizados do pseudo-marxismo, atuam, pelo contrário, baseados na suposição de que a bancarrota da direção “reflete” somente a incapacidade do proletariado para levar a cabo sua missão revolucionária. Nem todos nossos opositores expressam claramente este pensamento, mas todos eles – ultra-esquerdistas, centristas, anarquistas, para não mencionar os stalinistas e os social-democratas – descarregam sua responsabilidade pelas derrotas nas costas do proletariado. Nenhum deles assinala sob que condições precisas o proletariado será capaz de levar a cabo a virada socialista.

Se admitirmos que é verdade que a causa das derrotas residem nas qualidades sociais do próprio proletariado, então a situação da sociedade moderna deverá ser considerada como desesperadora. Sob as condições do capitalismo decadente, o proletariado não cresce nem numericamente e nem culturalmente. Portanto, não existem motivos para esperar que em algum momento se coloque à altura das tarefas revolucionárias. A questão se apresenta de forma completamente diferente para aquele que tem claro o profundo antagonismo que existe entre a exigência orgânica, profunda e insuperável das massas trabalhadoras para se libertarem do sangrento caos capitalista, e o cadáver conservador, patriótico e completamente burguês da direção do movimento operário, que sobrevive por si mesma. Devemos escolher entre uma destas duas concepções irreconciliáveis.

A ditadura totalitária: uma situação de crise aguda e não um regime estável

A revolução de outubro não foi um acidente. Havia sido prevista há tempos. Os acontecimentos confirmaram esta previsão. A degeneração não refuta a previsão, porque os marxistas nunca acreditaram que um estado operário isolado na Rússia pudesse se manter indefinidamente. Esperávamos, é certo, a destruição do estado soviético ao invés de sua degeneração; ou mais corretamente, não diferenciávamos o suficiente entre estas duas possibilidades. Porém, elas não se contradizem de forma alguma. Em certo estágio, a degeneração acaba inevitavelmente na destruição.

Um regime totalitário, seja do tipo stalinista ou do tipo fascista, devido à sua própria essência, só pode ser um regime transitório, temporário. Na história, a ditadura pura geralmente foi produto e o sinal de uma crise social especialmente séria, e de forma alguma, de um regime estável. As crises agudas não podem ser uma situação permanente da sociedade. Um estado totalitário é capaz de suprimir as contradições sociais durante um certo período, mas é incapaz de se perpetuar. As purgas monstruosas na URSS são o testemunho mais convincente de que a sociedade soviética tende, organicamente, a recusar a burocracia.

É algo realmente estranho que Bruno R. veja exatamente nas purgas stalinistas, a prova de que a burocracia se converteu em classe dirigente, pois em sua opinião, somente uma classe dirigente é capaz de tomar medidas de tal amplitude(3). Sem dúvida, esquece que o czarismo, que não era uma “classe”, também se permitiu tomar medidas de grande escala nas purgas, e mais ainda, exatamente no período em que estava se aproximando de seu fim. Sintoma da proximidade de sua agonia mortal, pela extensão e fraudulência monstruosa de suas purgas, Stalin não nos testemunha outra coisa a não ser a incapacidade da burocracia para se transformar em uma classe dirigente estável. Não ficaremos em uma posição ridícula se justamente alguns anos antes ou alguns meses antes da queda desonrosa da oligarquia bonapartista, lhe dermos a denominação de nova classe dirigente? Em nossa opinião, colocar claramente esta questão, isolará os camaradas das experiências terminológicas e das generalizações extremamente ligeiras.

A orientação para a revolução mundial e a regeneração da URSS

Já se demonstrou que um quarto de século é espaço de tempo muito curto para o rearmamento revolucionário da vanguarda proletária mundial, e um período muito longo para se manter o sistema soviético intacto e isolado em um país atrasado. A humanidade agora está pagando por isso, com uma nova guerra imperialista; mas a tarefa básica de nossa época não mudou só porque não foi solucionada. No último quarto de século, uma conquista colossal e uma mostra inapreciável para o futuro é constituída pelo fato de que um dos destacamentos do proletariado mundial foi capaz de demonstrar na ação como esta tarefa deve ser resolvida.

A segunda guerra imperialista coloca esta tarefa, ainda não solucionada, num nível histórico muito mais elevado. Novamente, põe à prova, não só a estabilidade dos regimes existentes, mas também a capacidade do proletariado para substituir esses regimes. O resultado desta prova terá, indubitavelmente, um significado decisivo para nossa avaliação sobre a época contemporânea, como uma época da revolução proletária. Se, ao contrário de todas as probabilidades, a revolução de outubro não encontrar, no curso da guerra atual ou imediatamente depois, sua continuação em algum dos países avançados; e se ao contrario, o proletariado for acossado em todas as frentes, então sem dúvidas, deveremos colocar a questão de revisar nossa concepção da época atual e suas forças motrizes. Neste caso, tratar-se-ia não de grudar uma etiqueta sobre a URSS ou o bando de Stalin, mas de reconsiderar a perspectiva histórica mundial para as próximas décadas, e talvez séculos: entramos na época da revolução social e da sociedade socialista, ou ao contrário, entramos na época da decadente sociedade da burocracia totalitária?

O duplo erro dos esquemáticos como Hugo Urbahns e Bruno R., consiste primeiro em que proclamam que este regime já foi finalmente instaurado; e segundo, que definem como um estado transitório prolongado da sociedade entre o capitalismo e o socialismo. Já é absolutamente evidente que se o proletariado internacional, como resultado da experiência de toda nossa época e da presente nova guerra, mostrar-se incapaz de se converter em dono da sociedade, isto significaria a perda de toda a esperança para a revolução socialista, uma vez que é impossível esperar outras condições mais favoráveis para isso; em qualquer caso, agora nada é capaz de prever ou caracterizar tal coisa. Os marxistas não têm o menor direito (se a desilusão e o cansaço não são considerados “direitos”) de chegar à conclusão de que o proletariado perdeu suas possibilidades revolucionárias e deve renunciar a todas as aspirações de hegemonia na era imediatamente próxima. Na escalada da história, quando se trata de profundas mudanças nos sistemas econômicos e cultural, vinte e cinco anos pesam menos que uma hora na vida de um homem. Em que medida um homem é justo quando por causa de fracassos empíricos que acontecem no decorrer de uma hora ou um dia, renuncia aos objetivos que tinha, baseado na experiência e análise de toda a sua vida anterior? Durante os anos da mais negra reação russa (1907-1917), tomávamos como nosso ponto de partido aquelas possibilidades que o proletariado russo havia revelado em 1905. Nos anos da reação mundial, devemos partir das possibilidades que o proletariado russo revelou em 1917. A Quarta Internacional não se chama partido mundial de revolução socialista por casualidade. Nosso caminho não será mudado. Orientamos nosso curso em direção da revolução mundial, em virtude deste mesmo fato, em direção à regeneração da URSS como estado operário.

A política externa é a continuação da política interna

O que defendemos na URSS? Não são aquelas coisas nas quais a URSS se parece com os países capitalistas, mas precisamente aquilo em que ela se diferencia destes. Na Alemanha, também defendemos uma insurreição contra a burocracia dirigente, porém só para derrotar imediatamente a propriedade capitalista. Na URSS, a derrota da burocracia é indispensável para a preservação da propriedade estatal. Estamos pela defesa da URSS somente neste sentido.

Entre nós, não existe nada que coloque em dúvida o fato de que os operários soviéticos devam defender a propriedade estatal, não só contra o parasitismo da burocracia, mas também contra as tendências restauradoras da propriedade privada, por exemplo, pela aristocracia kolkosiana. Porém, depois de tudo isso, a política externa é a continuação da política interna. Se em termos de política interna ligamos a defesa das conquistas da Revolução de Outubro, com a luta irreconciliável contra a burocracia, também devemos fazer o mesmo com relação à política externa. Sem dúvidas, Bruno R., de acordo com o fato de que o “coletivismo burocrático” saiu vitorioso em todas as frentes, nos assegura que nada ameaça a propriedade estatal, porque Hitler (e Chamberlain?) estão tão interessados quanto Stalin na sua manutenção (logo verá!). É triste dizer, mas as afirmações de Bruno R., são frívolas. Em caso de vitória, certamente Hitler começaria por defender a devolução de todas as propriedades que foram expropriadas aos capitalistas alemães; depois, asseguraria a mesma coisa aos capitalistas ingleses, franceses, belgas, uma vez que chegaria a um acordo com eles, às custas da URSS; por fim, faria da Alemanha o principal contratador das mais importantes empresas estatais da URSS, favorecendo os interesses da máquina militar alemã. Agora Hitler é um aliado e amigo de Stalin; porém, se com a ajuda de Stalin, Hitler conseguir sair vitorioso na frente Oeste, na manhã seguinte voltará seus canhões contra a URSS. E finalmente, também Chamberlain, em circunstâncias semelhantes, atuaria da mesma forma que Hitler.

A defesa da URSS e a luta de classes

Os erros existentes sobre o problema de defesa da URSS, normalmente partem de uma compreensão incorreta dos métodos de “defesa”. De forma alguma, a defesa da URSS significa se aproximar da burocracia do Kremlin, aceitar sua política, ou conciliar com a política de seus aliados. Nesta questão, assim como em todas as outras, permanecemos completamente no terreno da luta de classes internacional.

Recentemente, no minúsculo jornal francês Que faire?, dizia-se que como os “trotskystas” são derrotistas com relação à França e à Inglaterra, eles também são derrotistas com relação à URSS. Em outras palavras: se você quiser defender a URSS, deixe de ser derrotista em relação aos seus aliados imperialistas. Que faire? Pensou que as “democracias” seriam os aliados da URSS. O que estes sábios estão dizendo agora, não sabemos. Porém, dificilmente seria algo importante, uma vez que seu método está podre. Renunciar ao derrotismo com relação ao campo imperialista, ao qual a URSS hoje adere ou aderirá amanhã, é empurrar os operários do campo inimigo para o lado de seu governo; significa renunciar ao derrotismo em geral. Sob as condições de uma guerra imperialista, a renuncia ao derrotismo, que é equivalente à negação da revolução socialista – negar a revolução em nome da “defesa da URSS” – sentenciará a URSS à decomposição final e à ruína.

“Defesa da URSS” segundo a interpretação do Comintern, assim como a “luta contra o fascismo” de ontem, está baseada na negação da política de independência de classe. O proletariado é transformado – por distintas razões, em circunstâncias variadas, mas sempre e invariavelmente – em força auxiliar de um campo burguês contra outro campo burguês. Contrastando com isso, alguns de nossos camaradas dizem: na medida em que não queremos nos converter em aliados de Stalin e seus aliados, renunciamos a sua compreensão de “defesa” coincide exatamente com a compreensão dos oportunistas; não pensam em termos de política independente por parte do proletariado. Como questão de fato, defendemos a URSS como defendemos as colônias, como resolvemos todos os nossos problemas, não apoiando alguns governos imperialistas contra outros, mas com o método da luta de classes internacional, tanto nas colônias como nos centros metropolitanos.

Não somos um partido governamental; somos o partido da oposição irreconciliável, não só nos países capitalistas, mas também na URSS. Nossas tarefas, entre elas a “defesa da URSS”, não são levadas a cabo através de governos burgueses, nem muito menos do governo da URSS, mas exclusivamente através da educação das massas, através da agitação, explicando aos operários o que devem defender e o que devem derrotar. Tal “defesa” não pode ter resultados imediatos milagrosos. Mas não pretendemos nos transformar em santos milagrosos. Na situação atual, tal e como as coisas se apresentam, somos uma minoria revolucionária. Nosso trabalho deve ser orientado de forma que os operários, sob os quais temos influência, possam apreciar corretamente os acontecimentos, não sejam colhidos de surpresa e preparem o sentimento geral de sua própria classe para a solução revolucionária das tarefas que confrontamos.

A defesa da URSS, para nós, coincide com a preparação da revolução mundial. Somente aqueles métodos que não entrem em conflito com os interesses da revolução são admissíveis. A defesa da URSS está ligada à revolução socialista mundial, assim como uma tarefa tática está ligada a uma estratégia. Uma tática está subordinada a um fim estratégico e de forma nenhuma pode entrar em contradição com este último.

A questão dos territórios ocupados

Enquanto escrevo estas linhas, a questão dos territórios ocupados pelo exército vermelho ainda permanece obscura. Os despachos telegráficos se contradizem uns com os outros, à medida que ambas as partes mentem muito; mas as atuais relações nos campos de batalha são, sem dúvidas, extremamente agitadas. A maior parte dos territórios ocupados serão, sem sombra de dúvidas, parte da URSS. De que forma?

Vamos admitir por um momento, que de acordo com o tratado de Hitler, o governo de Moscou deixe intacto os direitos de propriedade privada nas zonas ocupadas e se limite a “controlar”, de acordo com o modelo fascista. Tal concessão teria um caráter profundamente principista e poderia ser o ponto de partida para um novo capítulo na história do regime soviético; e consequentemente, de nossa parte, um ponto de partida para uma nova avaliação da natureza do estado soviético.

No entanto, é mais provável que nos territórios que foram planejados para fazer parte da URSS, o governo de Moscou atue expropriando os grandes proprietários e estatizando os meios de produção. Esta variante é a mais provável, não porque a burocracia continue sendo fiel ao programa socialista, mas porque não deseja e nem é capaz de tomar o poder e os privilégios que comparte com a velha classe dirigente nos territórios ocupados. Aqui, é forçosa uma analogia literal. O primeiro Bonaparte deteve a revolução através de uma ditadura militar. No entanto, quando as tropas francesas invadiram a Polônia, Napoleão assinou um decreto: “A servidão está abolida”. Tal medida foi adotada, não porque Napoleão simpatizasse com os camponeses, e nem por princípios democráticos, mas pelo fato da ditadura bonapartista se basear em relações de propriedade burguesa e não feudais. À medida em que a ditadura bonapartista de Stalin se baseia na propriedade estatal e não na privada, a invasão da Polônia pelo exército vermelho levará, por si só, à abolição da propriedade privada capitalista, da mesma forma que fará com que o regime dos territórios ocupados estejam de acordo com o regime da URSS.

Esta medida, de caráter revolucionário – “a expropriação dos expropriadores” – neste caso é levada a cabo de forma burocrático-militar. O chamado à ação independe das massas nos novos territórios – e sem tal chamado, inclusive formulado com extrema prudência é impossível constituir um novo regime – seria indubitavelmente esmagado no dia seguinte, por desapiedosas medidas policialescas, visando assegurar a predominância da burocracia sobre as massas revolucionárias vigilantes. Este é um lado da questão. Mas existe o outro. Visando a possibilidade de ocupar a Polônia através de uma aliança militar com Hitler, durante muito tempo o Kremlin cansou e continua cansando as massas da URSS e no mundo inteiro, e com isso, desorganizou completamente as fileiras de sua própria Internacional Comunista. O critério político prioritário, não é, para nós, a transformação das relações de propriedade nesta ou naquela área, por mais importantes que sejam, mas a mudança na consciência e organização do proletariado mundial, a elevação de sua capacidade de defender as conquistas obtidas e conquistar outras novas. A partir deste único e decisivo ponto de vista, a política de Moscou, tomada em seu conjunto, conserva completamente o seu caráter reacionário, e é o principal obstáculo no caminho da revolução mundial.

No entanto, nossa análise geral sobre o Kremlin e o Comintern, não modifica o fato particular de que a estatização da propriedade, nos territórios ocupados, é em si mesmo uma medida progressiva. Reconhecemos isso abertamente. Se amanhã Hitler lançar seus exércitos contra o Leste, para restaurar a “lei e a ordem” na Polônia Oriental, os operários avançados defenderão, contra Hitler, estas novas formas de propriedade estabelecidas pela burocracia bonapartista soviética.

Não modificamos nossa orientação!

Como dissemos, a estatização dos meios de produção é uma medida progressiva. Porém, sua progressividade é relativa; seu peso específico depende da soma total de todos os fatores restantes. Assim, devemos constatar primeiro e principalmente, que a extensão do território dominado pela autocracia burocrática e pelo parasitismo, encobertas pelas medidas socialistas, podem aumentar o prestígio do Kremlin, engendrar ilusões sobre a possibilidade de substituir a revolução proletária por manobras burocráticas, e tudo o mais. Este dano, ultrapassa de longe o conteúdo progressivo das reformas stalinistas na Polônia. Para que a propriedade nacionalizada nas áreas ocupadas, assim como na URSS, seja à base de um genuíno progresso, ou seja, base para o desenvolvimento socialista, é necessário derrotar a burocracia de Moscou. Nosso programa, consequentemente, conserva toda sua validade. Os acontecimentos não nos surpreenderam. Só precisamos interpretá-los corretamente. É preciso entender claramente que no caráter da URSS e em sua posição internacionalista, estão contidas contradições agudas. É impossível se livrar destas contradições com a ajuda de jogos de tipo terminológico (“Estado operário” – “Estado não-operário”). Devemos considerar os fatos tais como eles se apresentam. Devemos traçar nossa política tomando como ponto de partida as reais relações e contradições.

Não confiamos nenhuma missão histórica ao Kremlin. Estivemos e continuamos contra ocupações de novos territórios pelo Kremlin. Estamos pela independência da Ucrânia soviética, e se os bielo-russos quiserem, também da Bielo-Rússia soviética. Ao mesmo tempo, nas partes da Polônia ocupadas pelo exército russo, os partidários da Quarta Internacional devem jogar um papel decisivo na expropriação dos grandes proprietários de terra e capitalistas, na distribuição de terra entre os camponeses, na criação de sovietes e comitês operários etc. Enquanto fazem isso, devem conservar sua independência política, devem lutar, nas eleições para os sovietes e comitês de fábrica, pela total independência destes organismos frente à burocracia, e devem realizar propaganda revolucionária no espírito de desconfiança com relação ao Kremlin e seus agentes locais.

Porém, suponhamos que Hitler aponte seus canhões para o Leste e invada os territórios ocupados pelo exército vermelho. Sob estas condições, os partidários da Quarta Internacional, sem modificar de forma alguma sua atitude frente à oligarquia do Kremlin, colocarão como a mais urgente tarefa do movimento, a resistência militar contra Hitler. Os operários dirão: “Não podemos deixar que Hitler derrote Stalin; isso é tarefa nossa”. Durante a luta militar contra Hitler, os operários revolucionários devem se esforçar para manter as relações, as mais fraternas possíveis, com a base dos lutadores do exército vermelho. Enquanto isso com as armas nas mãos, lutam contra Hitler, os bolcheviques deverão ao mesmo tempo, fazer propaganda revolucionária contra Stalin, preparando sua derrota para a próxima, a talvez muito próxima, etapa.

Este tipo de “defesa da URSS”, naturalmente será diferente – tanto quanto o céu é diferente da terra – da defesa oficial que agora é levada a cabo sob o lema: “Pela Pátria! Por Stalin!”. Nossa defesa da URSS é colocada sob o lema: “Pelo socialismo! Pela Revolução Mundial! Contra Stalin”. Para que estas duas variantes de “defesa da URSS” não se confundam na consciência das massas, é necessário conhecer claramente e precisamente como formular palavras-de-ordem que correspondam à situação concreta. Porém, acima de tudo, é necessário estabelecer claramente o que estamos defendendo e como estamos defendendo isso e contra quem estamos defendendo isso. Nossas palavras-de-ordem criarão uma confusão entre as massas, somente se não tivermos uma clara concepção de nossas tarefas.

Conclusões

Seja como for, agora não temos razões para modificar nossa posição principista em relação à URSS.
A guerra acelera os distintos processos políticos. Pode ser que acelere o processo de regeneração revolucionária da URSS. Mas também pode ser que acelere o processo de degeneração final. Por isso, é indispensável que continuemos pacientemente e sem preconceitos, estas modificações que a guerra introduz na vida interna da URSS, de forma que possamos dar conta delas a tempo.

Nos territórios ocupados, nossas tarefas continuam sendo basicamente as mesmas que na URSS; mas na medida em que estão colocadas de forma extremamente aguda por causa dos acontecimentos, permite que clarifiquemos muito mais as nossas tarefas gerais com relação à URSS.

Devemos formular nossas palavras-de-ordem de tal forma, que os operários vejam claramente o que é que estamos defendendo na URSS (propriedade estatal e economia planificada) e contra quem estamos levando uma luta implacável (a burocracia parasitária e seu Comintern). Não devemos perder de vista, por um só momento, o fato de que para nós, a questão da derrubada da burocracia soviética está subordinada à questão da preservação da propriedade estatal dos meios de produção na URSS; que a questão da manutenção da propriedade estatal nos meios de produção da URSS está subordinada, para nós, à questão da revolução proletária mundial.

Coyoacán (México) 25 de setembro de 1939


Notas:

(1) Recordamos que alguns dos camaradas que se inclinam a considerar a burocracia como uma nova classe, por sua vez se opõem, resolutamente, a que a burocracia seja expulsa dos sovietes (nota de Trotsky). (retornar ao texto)

(2) Trata-se do “Programa de Transição”. (retornar ao texto)

(3) Certamente, na última parte de seu livro, que consiste exatamente em contradições fantásticas, Bruno R. refuta consciente e articuladamente sua própria teoria do “coletivismo burocrático”, exposta na primeira parte do mesmo livro, e declara que o stalinismo, o fascismo e o nazismo, são formações parasitárias e transitórias, castigos históricos devido à impotência do proletariado. Em outras palavras, depois de haver submetido os pontos de vista da Quarta Internacional ao mais duro tipo de critica, Bruno R. volta-se, deliberadamente, para estes pontos de vista, mas somente para empreender outra série de erros. Não vemos razão em seguir os passos de um escritor que obviamente perdeu a cabeça. De seus argumentos, nos interessa aqueles através dos quais tenta demonstrar que a burocracia é uma classe. (retornar ao texto)

capa
Inclusão 18/04/2009
Última alteração 20/05/2014