40 anos depois da Revolução dos Cravos, há um retrocesso

Otelo Saraiva de Carvalho

25 de abril de 2014


Primeira Edição: Entrevista a Lúcia Rodrigues/Opera Mundi

Fonte: Opera Mundi - https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/34974/otelo-saraiva-de-carvalho-40-anos-depois-da-revolucao-dos-cravos-ha-um-retrocesso

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O homem que, ao lado do capitão Salgueiro Maia, fez ruir uma ditadura de 48 anos em Portugal, não se considera um herói. Embora conte com orgulho que que até hoje, 40 anos após a Revolução dos Cravos — processo liderado por ele e que depôs o salazarismo em 25 de abril de 1974 — é parado na rua por populares, que o abraçam para agradecer o ato de valentia.

“Os ideais de Abril se mantêm naquela geração que sofreu a ditadura fascista e que sentiu o sopro da liberdade naquele dia 25. Eu, todos os dias, tenho o reflexo disso em gente anônima que me expressa seu carinho. Esses ideais mantêm-se vivos”, ressalta o coronel Otelo Saraiva de Carvalho em entrevista exclusiva a Opera Mundi.

Major à época da Revolução, Otelo diz temer que, quatro décadas depois do Movimento das Forças Armadas (MFA) ter derrubado o arbítrio, Portugal possa vir a sofrer um retrocesso político e social. Para ele, a crise econômica, imposta pelo capital financeiro, que atinge a Europa e o país, em particular, pode conduzir a um fechamento do regime.

“A situação é dramática e pode agravar-se. A brutal austeridade imposta pelo governo e pela Troika (FMI, União Europeia e Banco Central Europeu) tem gerado desemprego altíssimo e empobrecimento generalizado. A crise econômica abateu-se sobre os cidadãos”, afirma, lembrando os cortes de salário e de aposentadorias e o aumento de impostos. “Os reformados (aposentados) estão sendo despojados de suas pensões, mas eles é que têm sustentado os filhos desempregados, os netos”, alerta.

Otelo não esconde a frustração pelo rumo que o país tomou. “Nós (revolucionários) tínhamos esperança de que os avanços para a classe menos favorecida prosseguiriam, mas, 40 anos depois, vemos que a situação sofreu um retrocesso enormíssimo. Há mais de dois milhões de portugueses em estado de pobreza. Para nós, isso é um desgosto enorme, é o fim de um sonho, o óbito do 25 de Abril”, sentencia.

Ele explica que quem mais ganha com a miséria do povo são as elites. No processo atual, “os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres”, observa. A dívida pública portuguesa é alta, atualmente na casa dos 125% do PIB (Produto Interno Bruto). “Há economistas que consideram que não será possível pagá-la, mesmo vivendo sob austeridade durante décadas”, diz.

De acordo com Otelo, a situação é caótica e o euro é visto como um dos elementos que contribuíram para a derrocada do poder econômico dos portugueses. Moeda valorizada para os padrões de consumo do país, o euro só pode ser emitido pelo Banco Central Europeu sob o comando da Alemanha, que não tem interesse em alterar a situação. 

“Há economistas que advogam a necessidade de sair do euro e retornar a moeda própria. O euro seria uma coisa bonita, uma moeda única para a Europa, mas Portugal não tem capacidade para exportar seus produtos confrontando-os com os da Alemanha, França”, adverte.

Espionagem

Otelo critica o controle exercido sobre os cidadãos e destaca as revelações feitas por Edward Snowden. “O mundo caminha para que, em um prazo de 10, 20 anos, sejamos inspecionados em qualquer parte, e convencidos de que isso é para nossa segurança. É assustador”, critica. Segundo ele, a democracia corre sérios riscos frente a esse panorama. “Se a austeridade continuar, vão existir surtos e os aparelhos de repressão vão se intensificar. Julgo que o governo montou uma rede de informadores. Escutas telefônicas (sem o consentimento judicial) existem, apesar de ilegais”, afirma.

Revolucionário convicto, Otelo diz considerar que a democracia direta, na qual a população decide em assembleias populares seu destino, é o melhor modelo político de governo. Apesar de não ser leitor de Marx, concorda com seus conceitos, como o da luta de classes. “Para mim, ser de esquerda é ter uma preocupação muito grande para que toda a ação política seja orientada para elevar ao máximo o nível econômico, social e cultural do povo."

Na juventude, Otelo quis ser ator, mas foi impedido pelo pai. Acabou se convertendo em protagonista da história de seu país. Apesar de continuar a acreditar e a defender o poder popular, é pessimista em relação ao futuro. “Ditaduras ainda são possíveis. A estratégia (adotada) é a do empobrecimento de milhões.” Ele também não descarta a possibilidade de uma terceira guerra mundial. “O capitalismo precisa disso. Os recursos não comportam todo mundo, aí se eliminam pessoas”, justifica.


Inclusão: 13/05/2020