Cunhal, Democrata Incompreendido

Francisco Martins Rodrigues


Primeira Edição: Caderno n.º 7 Álvaro Cunhal — O Democrata (7 artigos publicados na Política Operária)

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Não seremos nós, comunistas revolucionários portugueses, a pôr em dúvida o papel de primeiro plano desempenhado por Álvaro Cunhal na luta do povo português contra o fascismo. Ele ganhou merecidamente um enorme prestígio popular pela tenacidade com que se bateu toda a vida contra a reacção e o imperialismo, e isso tornou-se patente na impressionante homenagem em que se transformou o seu funeral.

Contestamos, porém, a opinião, hoje expressa quase unanimemente, da esquerda à direita, de que Cunhal tenha sido um “marxista-leninista intransigente”, um “comunista no estado puro”, um defensor coerente dos interesses políticos do proletariado. Por três razões, que passarei a expor brevemente.

Primeira. Na sua luta indómita contra o salazarismo, Álvaro Cunhal guiou-se sempre pela ideia de que à ditadura fascista deveria suceder, com o menor abalo possível, uma democracia burguesa (a que ele chamava “democracia nacional”). Considerava “irrealista” e “aventureira” a perspectiva de um movimento insurreccional de massas, que fizesse da queda do fascismo o início de uma profunda crise social, capaz de abalar até aos alicerces o poder burguês. Por isso mesmo, orientou a actividade do PCP, não na via leninista da independência política do proletariado, em aliança com os camponeses pobres e os povos oprimidos das colónias, mas para a Unidade com a burguesia oposicionista, celebrizada sob a fórmula da “Unidade de todos os portugueses honrados”. Para o conseguir, privou o movimento operário de reivindicações políticas próprias, incutiu no povo uma difusa ideologia democrática unitária, trocou a organização revolucionária dos soldados e marinheiros (que o PCP praticara até 1936) pela atracção dos oficiais democratas, tardou demasiado em lançar a luta contra as guerras coloniais, etc.

Esta abdicação do objectivo revolucionário e esta inversão das alianças teve, sem dúvida, a sua parte de responsabilidade na longa vida do fascismo português — quase meio século! — e isto porque a massa esmagadora dos pobres da cidade e do campo permaneceu à margem da luta de classe, enquanto o aliado preferencial do PCP, a burguesia democrática, tinha mais medo do povo e dos comunistas do que do fascismo. Assim, o “levantamento nacional” prometido por Cunhal veio a materializar-se no 25 de Abril de 1974 por um golpe de oficiais do exército, obrigados a agir pela iminência de uma derrota nas guerras africanas. O poder passou directamente do aparelho fascista para o MFA (Movimento das Forças Armadas), apostado em conter as aspirações das massas através de uma tutela paternalista.

Os trabalhadores aproveitaram porém a liberdade política enfim conquistada para lançar uma escalada de reivindicações que iam muito para além do programa do MFA: ocuparam empresas, terras e casas, expulsaram patrões, exigiram o regresso das tropas coloniais, o castigo dos torturadores fascistas, etc. Abriu-se em Portugal uma crise de poder. Nessa nova situação carregada de possibilidades revolucionárias, Álvaro Cunhal, ao mesmo tempo que enaltecia o movimento popular, endeusava sem descanso a “aliança Povo-MFA”, ou seja, a subordinação do movimento popular ao Exército, e mobilizava o PCP para a luta contra o “esquerdismo” e o “aventureirismo”. Como seria de prever, este jogo duplo não evitou que os oficiais “patriotas”, pressionados pela burguesia e pelo imperialismo, entrassem em concessões sucessivas à direita e acabassem por abraçar a “reposição da ordem” no Verão de 1975. O movimento popular, politicamente desarmado, foi traído no golpe de 25 de Novembro desse ano, perdeu as suas conquistas sem resistência séria e entrou numa crise de que ainda não se recompôs.

Assim, a política seguida por A. Cunhal, fossem quais fossem as suas convicções subjectivas, conduziu o movimento operário a ser utilizado como peão na transição do fascismo para a democracia burguesa, desperdiçando uma ocasião única para arrancar conquistas duradouras e completar a sua educação revolucionária.

Segunda. Cunhal manteve o PCP inabalavelmente ligado à URSS, opondo-se à capitulação da quase totalidade dos partidos comunistas europeus que nas últimas décadas abraçaram a via do chamado “eurocomunismo”, ou seja, da passagem para o campo social-democrata. Isto abona o seu sentimento anti-imperialista, mas de modo algum demonstra coerência revolucionária. De facto, para ele, a “fidelidade ao leninismo” consistia em apoiar em todas as circunstâncias o poder de Estado da União Soviética, como “herdeiro legítimo” da revolução de Outubro, sem querer saber das tremendas transformações que aí vinham ocorrendo.

Para ele, a substituição do poder dos sovietes pelo poder dos aparatchiks, a onda de terror dos anos 30, a burocratização sufocante de toda a vida política, social e intelectual, a dogmatização do marxismo, não punham em causa a natureza “socialista” da URSS. Uma vez que a URSS tinha uma economia estatizada, se opunha ao imperialismo e apoiava os movimentos de libertação — aliás, de forma cada vez mais dúplice a partir de 1956 —, o facto de o proletariado russo ter perdido o poder que conquistara na revolução de 1917 era-lhe indiferente.

Nos últimos tempos, tentando tardiamente desligar-se do afundamento do “campo socialista”, Cunhal argumentou que “sempre tivera reservas” a alguns dos seus aspectos. A verdade é que aplaudiu publicamente todas as inflexões da política soviética, desde a invasão da Checoslováquia à campanha contra a China de Mao e à invasão do Afeganistão, sujeitando-se mesmo a desempenhar o papel de emissário do governo de Moscovo junto dos satélites recalcitrantes.

Ele não foi, como tantos outros militantes, simplesmente iludido pela degeneração da União Soviética, que então se apresentava como a única alternativa à barbárie imperialista; propagandeou um “socialismo” sem luta de classes e sem ditadura do proletariado, envenenando com isso a consciência do proletariado português.

Terceira. Cunhal teve o grande mérito de construir, à frente de uma plêiade de militantes, um partido firme e disciplinado, capaz de resistir à perseguição implacável da ditadura. Mas o PCP, concebido como instrumento da “Unidade nacional” antifascista e não como vanguarda revolucionária do proletariado, foi adquirindo ao longo dos anos as taras do que Lenine chamava um “partido pequeno-burguês para operários”: medo à iniciativa das massas, controleirismo rotulado de “centralismo democrático”, estreiteza ideológica, esterilização da vida interna, dogmatismo.

Obcecado em evitar a todo o custo o confronto de opiniões e as lutas internas, Cunhal alimentou nos militantes um activismo cego, terreno ideal para a lenta ocupação do partido pela ideologia burguesa e fonte de onde vêm brotando em catadupa sucessivas dissidências social-democratas.

Tendo renunciado de vez a uma política de aliança revolucionária dos oprimidos, o PCP procura, hoje como há 50 anos, ganhar as boas graças de sectores democráticos da burguesia para construir uma “democracia avançada” — objectivo mais do que nunca utópico, porque ultrapassado pela marcha da luta de classes em Portugal. Daí, e apesar da influência popular de que ainda dispõe, a sua degeneração reformista e o seu declínio irreversível. Após décadas de “cunhalismo”, o proletariado português está confrontado com a necessidade de construir de raiz o seu partido comunista, à margem do PCP, partido do passado, não do futuro.

Na hora em que todos reverenciam o dirigente desaparecido, fazemos questão em sublinhar aquilo que o distanciou do proletariado. A ilusão na colaboração de classes tem sem dúvida raízes profundas no proletariado português; mas Álvaro Cunhal, com a sua patética “Unidade nacional” e a sua imaginária “revolução democrática e nacional” operário-burguesa, sufocou o espírito revolucionário de classe, causou sérias derrotas ao movimento operário e retardou de várias décadas a sua emancipação política. É mais que tempo de os proletários tomarem consciência de que o “cunhalismo” deve ser rejeitado porque impede a luta contra a burguesia em todas as frentes — política, económica, ideológica —, luta sem a qual não existe aproximação ao socialismo.


Inclusão 23/10/2018