América Latina "Nova Era Revolucionária"?

Francisco Martins Rodrigues

Janeiro/Fevereiro de 2007


Primeira Edição: Política Operária nº 108, Jan-Fev 2007
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

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De novo, muitos olhos se voltam com esperança para a América Latina. A “revolução bolivariana” de Hugo Chávez na Venezuela, e a vitória de Evo Morales na Bolívia anunciam uma nova onda de resistência ao despotismo ianque, põem em respeito as oligarquias, dão novo alento aos movimentos populares, rompem o isolamento de Cuba. Mais recentemente, a reeleição de Lula e a eleição de Daniel Ortega na Nicarágua, de Rafael Correa no Equador e de Michelle Bachelet no Chile avolumaram a ideia de um grande movimento continental. Há já nos meios de esquerda quem saúde com júbilo a nova “viragem à esquerda” e mesmo a “nova era revolucionária” na América Latina.

Que a nova situação oferece maiores possibilidades de acção aos trabalhadores está fora de dúvida. A questão, para os revolucionários, é saber qual o seu fôlego, a sua natureza social... e os perigos que comporta.

Como ninguém ignora, a mola impulsionadora da actual “onda democratizadora” latino-americana está na concorrência exacerbada das grandes potências em torno das matérias-primas. A alta dos preços do petróleo, do gás, do cobre, abre aos sectores “progressistas” das burguesias latino-americanas um espaço novo de iniciativa política. E só o podem explorar, como uma dura experiência lhes ensinou, se contarem com o apoio das massas deserdadas para fazer frente às provocações, manobras desestabilizadoras e golpes do imperialismo.

É pois um movimento com limites bem definidos. Primeiro, porque é de natureza conjuntural — dura enquanto durar a tendência de alta dos preços das matérias-primas. Segundo, porque, para afrouxar a dependência asfixiante face aos EUA, cria outras dependências — da Europa, da China, igualmente predadoras. Terceiro, porque, a “lua-de-mel popular” só durará enquanto as massas não ultrapassarem os limites que lhes são fixados pelos regimes nacionalistas.

Hugo Chávez é o caso mais característico. Disposto a obter para o Estado venezuelano uma parte maior dos lucros do petróleo, até agora açambarcados pelos trusts, e conhecendo por experiência a agressividade do imperialismo e dos seus lacaios internos, tem vindo a canalizar uma parte das verbas do petróleo para apoios sociais na saúde, educação, habitação. Naturalmente, o povo pobre, e em particular a massa dos desempregados, só tem a beneficiar com isto. Mas isso não faz do chavismo uma política revolucionária ou socialista, como proclamam os eternos entusiastas das “revoluções” por cima. O projecto agora anunciado por Chávez de unir num partido único o conjunto de forças que o apoiam visa precisamente cortar o passo a eventuais radicalizações “descontroladas” do movimento de massas.

Processo semelhante está a ser esboçado na Bolívia, com Evo Morales, e no Equador, com a vitória de Rafael Correa. Pretendem cobrar mais às multinacionais do petróleo e do gás e, para dispor de força negocial, adoptam reformas populares (embora o progresso da “revolução” seja aqui mais difícil devido ao poder dos latifundiários, donos de mais de 90 por cento das terras cultiváveis).

Já no Brasil, parece difícil continuar a falar em “viragem à esquerda”, quando os programas de Lula contra a pobreza e a fome, que lhe asseguraram a segunda vitória eleitoral, têm como contrapartida a sua obediência aos acordos com o FMI, os cortes na segurança social, a protecção dos negócios da burguesia e da corrupção, a paralisação da prometida reforma agrária.

Mesmo assim há quem teime em ver no segundo mandato de Lula uma “nova oportunidade”. Oportunidade para quê? José Reinaldo Carvalho, vice-presidente do PCdoB, esse antigo partido “marxista-leninista” que se tornou um dos mais sólidos pilares do governo, põe a claro a natureza social do lulismo:

“A burguesia brasileira é demasiado poderosa para poder ser facilmente derrubada e além disso, contribui em grande parte para o desenvolvimento económico do país. Para julgar Lula, deve-se ter em conta não o que ele fez ou não fez contra os capitalistas brasileiros mas que se insurgiu claramente contra a hegemonia dos Estados Unidos na América Latina, e nomeadamente contra o acordo de livre troca, o ALCA” (entrevista a Solidaire, Bruxelas, 13/12).

Isto responde à pergunta: como podem os trabalhadores aproveitar a actual onda “progressista” na América Latina? Obviamente, inserindo-se nela, para se colocar em posições mais vantajosas de luta e de autonomia política, mas sem perder de vista nem por um instante que é um movimento nacional-burguês, limitado e instável. Confundi-lo com uma “viragem à esquerda” ou com uma “revolução” só lhes poderia trazer pesadas derrotas.


Inclusão 10/05/2018