Paixão Virtual

Francisco Martins Rodrigues

Janeiro/Fevereiro de 2006


Primeira Edição: Política Operária, nº 103, Jan-Fev 2006

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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Passado o calor da campanha, é altura de constatar que esta não foi, ao contrário do que se disse, “a eleição mais decisiva de sempre”. Por vezes joga-se numa eleição a escolha entre esquerda ou direita, ou, ao menos, a opção por um mal menor para barrar o caminho a um mal maior. Não era este o caso. A velha “defesa das conquistas de Abril” contra a recuperação capitalista passou à história. Agora a política de espoliação dos trabalhadores para benefício do capital ganhou tal força que qualquer governo e qualquer presidente lhe servem — veja- se o que “ganharam” os trabalhadores com a vitória “socialista” de há um ano.

Cavaco na presidência é uma vitória para a direita. A questão é: com Alegre ou Soares, a direita ganharia na mesma, porque eles iriam opor-se à cavalgada eurocapitalista tanto como se opôs Sampaio — isto é, nada. Cavaco será execrável. Eles seriam desprezíveis. Essa seria toda a diferença.

Porquê então, havendo tantas frentes de luta à espera de combatentes (contra a opulência dos ricos paga pela “austeridade” dos pobres, contra o desemprego, a impunidade patronal, a infame servidão dos imigrantes, a pilhagem das multinacionais e dos seus comissários, os serviços secretos, a barbárie da ocupação do Iraque e da escravização da Palestina...) — porquê teve a campanha eleitoral o condão de despertar tantas paixões inócuas?

E verdade que Alegre apelou a “esperança”, que Jerónimo anunciou uma “ruptura democrática”, e que Louçã proclamou que “estamos nas ruas com este povo que está em luta”. Mas isto foram só exercícios retóricos, a puxar ao voto. Não há povo em luta nas ruas, nem há ruptura, nem há esperança, porque se receia contestar o sistema.

Esta paixão eleitoral esconde uma doença: o medo a deitar Se quisermos algum dia poder tirar proveito de futuras eleições, temos que nos curar rapidamente dessa doença.


Inclusão 26/08/2019