Salazar e Outras Histórias

Francisco Martins Rodrigues

2005


Primeira Edição: 2005 data provável.

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Houve, naqueles breves dias abrilistas, uma inflação do anti-salazarismo. Todos faziam questão de execrar o ditador, os seus ministros, os seus capangas. Da noite para o dia, a lista dos resistentes antifascistas tomou proporções assombrosas. Descobria-se que o país em peso lutara sem desfalecimentos, ao longo de meio século, contra a ditadura. Só os ingénuos constatavam com vergonha ter sido os únicos a não enfileirar no combate épico de todo um povo.

Era da praxe chorar Catarina e José Dias Coelho. Espertalhões que tinham sabido governar a vidinha faziam-se passar por ex-perseguidos políticos e relatavam modestamente missões arriscadíssimas e nebulosas. Todos tinham tido um primo ou um amigo nas prisões. A concorrência era tal que o PS teve que recrutar à pressa todos os velhos anarquistas disponíveis, para compor a sua coroa de martírio.

O PCP estava em boa posição para desmascarar esta reles comédia. Durante 50 anos, ele fora “o partido”, a única força capaz de se organizar na clandestinidade, e conduzir, melhor ou pior, movimentos de massa contra a ditadura. Não lhe seria difícil fazer a verdadeira história do fascismo e do antifascismo e documentá-la de forma esmagadora. Poderia mostrar que o movimento antifascista não fora uma brilhante sucessão de acções espectaculares mas uma interminável, cinzenta, obstinada resistência de algumas centenas de militantes (por vezes apenas de dezenas!), entrecortadas por fugazes euforias de massas. Poderia pôr a ridículo o mito de uma oposição “socialista” que nunca fora além das conspirações de café, revelar a face balofa de “resistentes” como Mário Soares, Alegre ou Almeida Santos, pulverizar a colagem tardia à democracia dos Sá Carneiro e outros fascistóides, provar a colaboração dos bispos com a PIDE, falar das relações amistosas entre o patronato e o regime.

Só que o PCP não se atrevia a pôr a hipocrisia a nu. Nem lhe convinha. Havia longos anos que se constituíra prisioneiro da democracia burguesa, a quem hipotecara o seu futuro. Tinha portanto que fingir acreditar nos feitos da oposição democrática. Desacreditá-la seria desacreditar toda a sua estratégia. Além disso, esperava poder colher dessa mentira o seu pequeno lucro: tudo o que se dissesse para engrandecer a resistência ao fascismo projectaria maior prestígio sobre o próprio partido que fora a alma indiscutível dessa resistência. E mais: fechando os olhos à falsificação dos atestados antifascistas dos seus parceiros, esperava conservá-los como reféns, atrelados à sua “Unidade”, e levá-los de rastos a caminho do seu “socialismo”. Limitou-se assim a valorizar os seus milhares de anos de prisão, os seus mortos e as suas fugas das cadeias, o que, parecendo muito objectivo, foi uma forma de não fazer a história do fascismo.

O negócio durou enquanto durou. À medida que a balança de forças foi tombando para o lado da contra-revolução, que o povo se aquietou e que os fracos ventos abrilistas foram dando lugar à bafienta atmosfera da “normalização democrática”, a burguesia começou a olhar para o antigo regime com outros olhos, a frio, já sem os complexos iniciais. Podia-se condenar todo um sistema de manutenção da ordem, ainda que se lhe apontassem alguns “excessos”? Não podia. E os pides foram mandados para casa por falta de provas; aos juízes do Plenário, aos mafiosos do antigamente, aos filhos dos fascistas, por fim aos próprios fascistas, foram dados cargos dignos para que ninguém pensasse que havia qualquer indecorosa discriminação; a Constituição, as leis e a prática diária foram depuradas das excrescências populistas e retomaram a “normalidade”, isto é, a força coerciva sem a qual a extracção da mais-valia não funciona.

Aí por 1980, começou a descobrir-se que afinal não tinha importância nenhuma ter ou não participado em actos de resistência à ditadura. Passados uns anos já se estava a fazer uma nova descoberta: é que precisamente os servidores do antigo regime eram pessoas de confiança, ao passo que os antigos opositores activos eram na maioria gente marginal. Ou seja: quanto menos precisavam da caução antifascista do PCP, menos paciência tinham os homens do poder para conviver com ele. Hoje parece-lhes um mau sonho que tivessem em 74 acamaradado com Álvaro Cunhal e enxovalhado Franco Nogueira ou Antunes Varela.

É justo que aqueles que foram elevados ao poder graças ao sacrifício dos membros do partido comunista agora o desprezem? Dentro do universo mítico em tempos sonhado por Cunhal, desse universo moral composto por fascistas e antifascistas, não é justo, evidentemente. Mas no mundo real, no mundo da burguesia e do proletariado, as coisas têm outra lógica: a burguesia precisou temporariamente dos préstimos dos “comunistas” para segurar os operários numa curva difícil e ajudar a estabelecer uma nova relação com as ex-colónias; tolerou-os como iguais, ouviu-lhes os discursos, consentiu-lhes uma certa margem de manobra. Agora, porém, uma vez cumprida a tarefa, volta a pô-los no seu lugar – e para esta burguesia provinciana e tradicionalista o lugar dos capatazes continua a ser na cozinha.

Cunhal ter-se-á sentido amargurado por esta injustiça histórica. Mas o tratamento que o PCP recebe corresponde ao lugar que ocupa na sociedade – não aquele que diz ocupar mas o que efectivamente ocupa e que voluntariamente escolheu: o partido encarregado de manter a classe operária nos limites do sistema contando-lhe histórias sobre o socialismo.

A mais divertida destas cambalhotas foi talvez a dos investigadores que começaram a ter sérias dúvidas “científicas” sobre a propriedade de se falar em fascismo português, uma vez que o salazarismo se afastava em muitos pontos do modelo hitleriano. Impacientes com os exageros e com os mitos obrigatórios da propaganda abrilista oficial, começaram a dizer que o salazarismo não fora propriamente o inferno. Salazar tivera os seus lados positivos como economista, apoiara-se sempre mais na Inglaterra do que na Alemanha, mantivera Portugal fora da guerra com arte consumada, fora duma honestidade incorruptível. Por outro lado, a oposição à ditadura nunca fora o furacão popular que se sugerira, o número de vítimas fora afinal reduzido, a PIDE não podia ser comparada à Gestapo.

Hoje vê-se bem que estes escrúpulos “científicos” eram guiados por um seguro instinto de classe. A burguesia precisava de se libertar da chantagem moral que o PCP sobre ela exercia e elaborar a sua própria crítica do salazarismo, feita à sua medida. Em lugar das histórias sobre os clandestinos, as torturas da PIDE e a miséria dos operários e camponeses, apareceram estudos imparciais sobre a economia, a política e a diplomacia do Estado Novo, crónicas dos amores de Salazar, episódios cómicos sobre as absurdidades da censura. Daí a pouco, a massa dos antifascistas tinha mordido a isco e fazia gala em falar da ditadura como uma saloiada risível e da resistência como uma descontraída prova desportiva. Não tardou a chegar-se à conclusão de que o salazarismo fora apenas um regime autoritário com tintas liberais. Os que teimavam em falar em fascismo eram movidos pela “paixão partidária”.

O que se tem estado a fazer nesta matéria é apenas traduzir para português escolas americanas e europeias que desde o fim da guerra se exercitaram em criar uma base teórica para justificar a recuperação dos fascistas. À nossa escala, é uma cópia daqueles “revisionistas” alemães, que dão como não provada a existência dos campos de extermínio do nazismo. Assim, viemos das maldições ao “tenebroso regime fascista” até à nostalgia dos “bons tempos” arcaicos e tranquilos; da moda dos resistentes antifascistas, à admiração pela “inteireza moral” dos fascistas que não se arrependeram. E, por fim, chegámos à reabilitação de Salazar. Era inevitável. A burguesia já não suportava mais barreiras morais. Precisava de fazer justiça ao seu velho líder.

A burguesia estava saturada de Salazar, da sua estagnante teia burocrática corporativa, da sua vigilância maníaca sobre todas as formas de expressão. Mas era uma aversão superficial. No pensamento burguês actual, essa aversão dá lugar a uma cada vez mais profunda admiração. E não há que estranhar.

Podem nem todos dizê-lo, mas foi com Salazar e só com ele que se tornou realidade o sonho secreto desta burguesia anémica – a estabilidade do poder, a segurança da propriedade, a capacidade de manter a gentinha em respeito. Salazar teve sempre, em contraste com os políticos actuais – novos-ricos labregos e manobradores – um projecto perseguido inabalavelmente; não ia à deriva, não dependia de eleições, não se moldava docilmente às pressões internacionais; era ele que ditava as regras do jogo; ninguém lhas impunha, muito menos a populaça; era o governante que “veio para ficar” – e isso diz tudo da nostalgia com que hoje é encarado por uma boa parte da velha geração burguesa. E se é verdade que o burguês médio de hoje reconhece as vantagens práticas do regime democrático e as limitações que acarretava o salazarismo, ele também sente que a democracia só é hoje possível devido ao meio século de austeras proibições impostas por Salazar. Foi assim que se amealhou o capital donde tudo partiu.

Um reaccionário assumido como o Prof. António José Saraiva reconhece a Salazar a “limpidez e concisão do estilo”, a “força magnética” dos discursos. E é verdade. Havia em Salazar profundidade de pensamento político porque ele exprimia de forma concentrada um projecto para a burguesia nacional. Salazar gostava de dar nos seus discursos lições de política porque tinha a paixão de educar, unificar, dar confiança a uma burguesia atrasada e insegura.

É certo que esses discursos são uma amálgama de reaccionarismo fradesco-fascista, mas quem disse que não era essa precisamente a ideologia mais adequada à burguesia nacional da época? E foi justamente por ser o guia e mestre da burguesia que Salazar sobreviveu quase 50 anos no poder, só pontualmente tendo de recorrer a uma repressão maciça. A repressão desatou-se com ferocidade sobre os povos das colónias – e aí também o ditador foi a expressão fiel dos sentimentos dominantes da burguesia portuguesa.

Esta verdade cruel, ninguém a podia admitir na oposição. Todos, os democratas e o PCP, precisavam de alimentar o mito de uma aspiração democrática universal, que na realidade correspondia a uma pequeníssima fracção da burguesia da época. Porque os burgueses precisavam em esmagadora maioria daquilo mesmo, da ditadura, dos grémios e sindicatos nacionais; e os operários e camponeses precisavam de revolução e dum outro regime, embora não fossem capazes de o exprimir e se vissem obrigados a engolir as mistelas republicanas que lhes davam a beber.

Numa palavra: a tendência moderna para fazer a psicanálise de Salazar deriva da necessidade da burguesia ocultar a relação social de forças em que assentava o seu regime. Durante muitos anos, Salazar foi pintado como um demónio dotado de poderes quase sobrenaturais porque assim a burguesia podia assacar-lhe apenas a ele a sua própria dinâmica fascista, como classe. Hoje, diz-se que Salazar instaurou uma ditabranda (em vez de uma ditadura) e que injectou uma espécie de letargia no país para se explicar a aceitação que o seu regime teve por parte da maioria da burguesia.

Todo o sistema de poder tende a retardar sobre as relações de classe que dinamiza. O salazarismo, com a sua rigidez de couraça, tinha fatalmente que se retardar mais do que qualquer outro. Na crise de 58, quando foi contestado por milhões, na esteira de Delgado e do bispo do Porto, o salazarismo revelou-se como obsoleto e iniciou a agonia. Não era só uma questão ideológica: grandes capitalistas modernos começavam a ver mais inconvenientes do que vantagens no sistema da União Nacional/PIDE/Censura e a tomar as suas distâncias em relação a ele. Já se sentiam capazes de iniciar outros voos fora da asa paterna.

Se não fosse a eclosão das revoltas coloniais em 61 talvez a ditadura tivesse caído mais cedo, ao contrário do que se diz. Mas perante a guerra em África, a burguesia, que não é aventureira, entendeu que todo o regime burguês entrava num perigoso período de prova e que se exigia “unidade nacional” acima de tudo. Adiou portanto a questão da remodelação do regime e dedicou-se com tanto entusiasmo aos negócios da guerra que deixou chegar tudo à beira do abismo.

Recaiu sobre a pequena burguesia “progressista” o encargo de organizar uma alternativa de regime para lá da fatal derrota militar nas colónias. Era um encargo muito para além das suas capacidades e de que se saiu com o atarantamento que se conhece, mas no fim de contas com sucesso. É o que alguns românticos ainda hoje chamam a “revolução de Abril”, a “hipótese democrático-revolucionária de passagem ao socialismo” e outros nomes épicos. Como se o espectáculo a que se assiste presentemente não fosse a melhor prova de que não existiu revolução nenhuma! Quando uma revolução de verdade varre uma sociedade, poderá a seguir triunfar a contra-revolução, mas o que não pode nunca mais é voltar-se ao tipo de relações sociais de antigamente. O sistema burguês em Portugal teve que levar uma sacudidela para se actualizar e aguentar a amputação do império colonial. Mas a relação básica entre uma burguesia débil, insegura, propensa à tirania, e um proletariado ainda não desperto para a luta pelo poder persiste.

Porque a questão é esta: uma vez que a ditadura assentava numa decisão férrea de manter a força de trabalho barata sem olhar a meios, a sua duração anormal e a amplitude controlada da repressão significam que a resistência do movimento operário foi limitada, dispersa, frouxa. Se os operários e o seu partido tivessem sabido criar meios de acção eficazes para substituir a liberdade de organização que lhes tinha sido roubada, o fascismo teria sido obrigado a pagar um preço mais alto por tudo aquilo que roubou ao movimento operário, ter-se-ia desgastado mais depressa, a burguesia teria sido forçada muito mais cedo a descartar-se da ditadura.

Esta discussão tem sido sempre bloqueada pelo PCP, em nome do Tarrafal, dos mortos, dos anos de prisão. Quem tem autoridade moral para criticar que não se tenha feito mais? Mas não se trata de apoucar os sacrifícios e o heroísmo de milhares de militantes comunistas; trata-se de dar o balanço a uma linha política. E esse balanço mostra que o PCP, orientado pelo 7.º Congresso da Internacional Comunista, não podia ser o foco revolucionário capaz de concentrar as lutas de resistência num feixe insurreccional.

O diagnóstico está feito. A ideia abstrusa de que o fascismo fora “um passo atrás” e de que o objectivo da luta era “repor” a legalidade democrático-burguesa conduzia à preocupação obsessiva de não espantar a burguesia liberal e a pequena burguesia; e esta preocupação eliminava à partida qualquer hipótese de radicalização revolucionária da luta operária e camponesa. Tão simples como isto.

E aqui chegamos de novo à identidade do salazarismo como forma portuguesa do fascismo europeu. Quando as escolas burguesas multiplicam sapientemente as características definidoras do fascismo, elas procuram evacuar a sua base social: a burguesia que se via ameaçada pela revolução proletária vitoriosa na Rússia e estrangulada pela crise económica, tinha que pôr de lado toda a margem de consenso, concentrar-se, entrincheirar-se, negar todas as concessões anteriores ao movimento operário, preparar-se para a guerra com as burguesias rivais. Foi o fascismo.

Salazar disse-o sempre com a mesma clareza que Hitler ou Mussolini. É certo que usava uma linguagem diferente da deles, mas como não havia de o fazer se exprimia os interesses duma outra burguesia, com outra história, outras particularidades? Será assim tão estranho que haja tantos fascismos quantos os países?

Usando o chicote do fascismo, a burguesia europeia ensinou os comunistas a porem de lado os sonhos revolucionários dos primeiros anos e a darem-se por muito felizes com as liberdades democrático-burguesas. A “política nova” de Dimitrov significou que a lição tinha sido aprendida e que os comunistas estavam dispostos a converter-se em ponta de lança da restauração democrático-burguesa. Álvaro Cunhal foi, entre nós, o que de forma mais espontânea e calorosa, deu corpo a esta domesticação dos comunistas. A derrocada a que hoje assistimos, começou há 70 anos.

Mas subsiste uma outra questão: poderia Cunhal arregimentar a classe operária como força de choque da burguesia liberal no duelo contra o salazarismo se a própria classe operária não estivesse vocacionada para essa tarefa? Ou, dito de outro modo: se existisse uma autêntica necessidade revolucionária nos operários, assalariados rurais e camponeses pobres dos anos 30, não se teria ela exprimido em tendências radicais, entrando em choque com a via da unidade democrática do PCP?

Aqui, os álibis a que ainda hoje se agarram os libertários, deitando as culpas para os “métodos totalitários” dos comunistas, não explicam nada. A verdade é que a combatividade operária dos anos da República, por muito positiva que tenha sido, não tinha ainda verdadeiro arcaboiço anticapitalista (que se mede não apenas pela capacidade de lutar contra a exploração mas na capacidade de lutar pelo poder), não tinha maturidade politica, ideológica, organizativa, para abordar a tarefa do derrubamento da burguesia. Era uma luta de resistência, corporativa em muitos aspectos, contra o avanço da ordem capitalista.

O proletariado não trazia qualquer preparação política para responder à escalada fascista. Exceptuando o breve interlúdio de 1930-34, em que o partido comunista pareceu por um momento querer orientar-se para uma etapa superior de preparação da luta pelo derrube da burguesia, os operários conformaram-se a lutar pela restauração da democracia dos capitalistas. Dois ou três passos à retaguarda, que marcam toda a existência da classe operária no meio século e que se reflectiram na timidez das audácias proletárias de 74-75 com os resultados que se conhecem.

Talvez uma melhor compreensão do caso de Salazar ajude o movimento a sarar esta ferida e a ganhar confiança em si próprio para pensar no futuro – na luta operária internacional pelo comunismo.


Inclusão 02/10/2018