A propósito do debate do Orçamento

Francisco Martins Rodrigues

Novembro/Dezembro de 2005


Primeira Edição: Política Operária nº 102, Nov-Dez 2005

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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A cólera surda que cresce no mundo do trabalho não está a passar pelos partidos de esquerda e pelos sindicatos. Estes não estão de modo algum à altura da gravidade da situação e da resposta exigida.

Durante o debate do Orçamento de Estado para 2006, Jerónimo, F. Louçã, Carvalho da Silva denunciaram com razão o desaforo da política governamental de impor a austeridade aos pobres para garantir os lucros dos ricos. Como se pode pedir mais sacrifícios a quem trabalha quando se deixam passar entre os dedos milhões de euros de impostos dos capitalistas? Como se pode falar em sacrifícios para todos, como se a crise fosse igual para todos? Como se pode falar em “privilégios” quando o nível salarial português é o mais baixo da Europa?

A coincidir com o debate no parlamento, a CGTP realizou uma jornada de protesto, participada por muitos milhares de trabalhadores. Está convocada uma semana de luta para Dezembro. Forçoso é contudo reconhecer que o movimento de resistência está longe de constituir um entrave à política do governo. Daí a pergunta: porquê a violência das medidas adoptadas não suscita uma reacção popular de grandes proporções?

O problema é que a nossa esquerda realmente existente, PCP, CGTP, BE, continua a concentrar os seus esforços em explicar aos trabalhadores que esta política é má e não lhes convém. Mas isso já eles sabem, mesmo os menos politizados. Quando os governantes todos os dias apregoam que o objectivo é “cortar nas despesas”, “facilitar os despedimentos”, “criar condições apetecíveis aos investidores” – não é preciso ser um barra em política para perceber quem ganha e quem perde com este estado de coisas.

O que falta, o que os trabalhadores não vêem, é o meio para provocar a tão falada “mudança de política”. E é isso precisamente que a esquerda não lhe diz, é aí que a sua linguagem se embrulha, se torna pastosa, sem nada concreto a que as massas se possam agarrar.

A cólera surda que cresce no mundo do trabalho não está a passar pelos partidos de esquerda e pelos sindicatos. Estes não estão de modo algum à altura da gravidade da situação e da resposta exigida. Prosseguem no ramerrão das negociações, das iniciativas parlamentares e mediáticas, dos protestos verbais, das concentrações com hora marcada, para que o governo “tome nota” do descontentamento dos espoliados. E o governo toma nota e segue em frente.

A correlação de forças seria bem diferente se tivéssemos partidos e sindicatos com outra linha de conduta, falando aos assalariados dos seus interesses e não dos “interesses do país”; atentos a ir directamente às massas lá onde é mais aguda a sua situação, de modo a criar choques com as autoridades; incansáveis na acusação ao sistema e no apelo aos trabalhadores para tornarem o regime ingovernável enquanto seguir este rumo. Claro, seriam alvo de imediato de um coro raivoso de acusações de “antidemocráticos”, que “não respeitam a livre opção dos cidadãos”, veriam os seus militantes ser detidos pela polícia, arriscar-se-iam a perder votos na próxima eleição, perderiam decerto simpatias nas classes médias. Mas mostrariam finalmente à massa trabalhadora que podia contar com uma vanguarda disposta a guiá-la para a luta. E aí acabaria o sentimento fatalista de impotência e surgiria outra dinâmica.

Ao nível do governo e do parlamento, do respeito pelas regras do jogo escolhidas pelos que mandam, o problema é insolúvel. Só se resolverá se intervier uma força exterior às instituições. Esse é o rumo que o PCP e o BE há muito rejeitaram, porque ameaçaria a sua política de integração e compromisso, como oposição dentro do regime, quando é necessária uma oposição ao regime.

A evolução do PCP e do BE vem abrindo um espaço à esquerda que precisa de ser preenchido. Todos os problemas do nosso país confluem num único: temos em Portugal um movimento democrático reformista, pequeno-burguês, não uma corrente comunista proletária. E essa que se impõe construir.


Inclusão 26/08/2019