Cunhal, um "Português Honrado"

Francisco Martins Rodrigues

Setembro de 2005


Primeira Edição: ABRENTE Nº 37 Julho-Agosto-Setembro de 2005

Fonte: Primeira Linha em Rede

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Nom seremos nós, comunistas revolucionários portugueses, a pôr em dúvida o papel de primeiro plano desempenhado por Álvaro Cunhal na luita do povo português contra o fascismo. Ele ganhou merecidamente um enorme prestígio popular pola tenacidade com que se bateu toda a vida contra a reacçom e o imperialismo, e isso tornou-se patente na impressionante homenagem em que se transformou o seu funeral.

Contestamos, porém, a opiniom, hoje expressa quase unanimemente, da esquerda à direita, de que Cunhal tenha sido um "marxista-leninista intransigente", um "comunista no estado puro", um defensor coerente dos interesses políticos do proletariado. Por três razons, que passarei a expor brevemente.

Primeira. Na sua luita indómita contra o salazarismo, Álvaro Cunhal guiou-se sempre pola ideia de que à ditadura fascista deveria suceder, com o menor abalo possível, umha democracia burguesa (a que ele chamava "democracia nacional"). Considerava "irrealista" e "aventureira" a perspectiva de um movimento insurreccional de massas, que figesse da queda do fascismo o início de umha profunda crise social, capaz de abalar até aos alicerces o poder burguês. Por isso mesmo, orientou a actividade do PCP, nom na via leninista da independência política do proletariado, em aliança com os camponeses pobres e os povos oprimidos das colónias, mas para a Unidade com a burguesia oposicionista, celebrizada sob a fórmula da "Unidade de todos os portugueses honrados". Para o conseguir, privou o movimento operário de reivindicaçons políticas próprias, incutiu no povo umha difusa ideologia democrática unitária, trocou a organizaçom revolucionária dos soldados e marinheiros (que o PCP praticara até 1936) pola atracçom dos oficiais democratas, tardou demasiado em lançar a luita contra as guerras coloniais, etc.

Esta abdicaçom do objectivo revolucionário e esta inversom das alianças tivo, sem dúvida, a sua parte de responsabilidade na longa vida do fascismo português - quase meio século! - e isto porque a massa esmagadora dos pobres da cidade e do campo permaneceu à margem da luita de classe, enquanto o aliado preferencial do PCP, a burguesia democrática, tinha mais medo do povo e dos comunistas do que do fascismo. Assim, o "levantamento nacional" prometido por Cunhal véu a materializar-se no 25 de Abril de 1974 por um golpe de oficiais do exército, obrigados a agir pola iminência de umha derrota nas guerras africanas. O poder passou directamente do aparelho fascista para o MFA (Movimento das Forças Armadas), apostado em conter as aspiraçons das massas através de umha tutela paternalista.

Os trabalhadores aproveitárom porém a liberdade política enfim conquistada para lançar umha escalada de reivindicaçons que iam muito para além do programa do MFA: ocupárom empresas, terras e casas, expulsárom patrons, exigírom o regresso das tropas coloniais, o castigo dos torturadores fascistas, etc. Abriu-se em Portugal umha crise de poder. Nessa nova situaçom carregada de possibilidades revolucionárias, Álvaro Cunhal, ao mesmo tempo que enaltecia o movimento popular, endeusava sem descanso a "aliança Povo-MFA", ou seja, a subordinaçom do movimento popular ao Exército, e mobilizava o PCP para a luita contra o "esquerdismo" e o "aventureirismo". Como seria de prever, este jogo duplo nom evitou que os oficiais "patriotas", pressionados pola burguesia e polo imperialismo, entrassem em concessons sucessivas à direita e acabassem por abraçar a "reposiçom da ordem" no Verao de 1975. O movimento popular, politicamente desarmado, foi traído no golpe de 25 de Novembro desse ano, perdeu as suas conquistas sem resistência séria e entrou numa crise de que ainda nom se recompujo.

Assim, a política seguida por A. Cunhal, fossem quais fossem as suas convicçons subjectivas, conduziu o movimento operário a ser utilizado como peom na transiçom do fascismo para a democracia burguesa, desperdiçando umha ocasiom única para arrancar conquistas duradouras e completar a sua educaçom revolucionária.

Segunda. Cunhal mantivo o PCP inabalavelmente ligado à URSS, opondo-se à capitulaçom da quase totalidade dos partidos comunistas europeus que nas últimas décadas abraçaram a via do chamado "eurocomunismo", ou seja, da passagem para o campo social-democrata. Isto abona o seu sentimento anti-imperialista, mas de modo algum demonstra coerência revolucionária. De facto, para ele, a "fidelidade ao leninismo" consistia em apoiar em todas as circunstâncias o poder de Estado da Uniom Soviética, como "herdeiro legítimo" da revoluçom de Outubro, sem querer saber das tremendas transformaçons que aí vinham ocorrendo.

Para ele, a substituiçom do poder dos sovietes polo poder dos aparatchiks, a onda de terror dos anos 30, a burocratizaçom sufocante de toda a vida política, social e intelectual, a dogmatizaçom do marxismo, nom punham em causa a natureza "socialista" da URSS. umha vez que a URSS tinha umha economia estatizada e se opunha ao imperialismo e apoiava os movimentos de libertaçom -aliás, de forma cada vez mais dúplice a partir de 1956-, o facto de o proletariado russo ter perdido o poder que conquistara na revoluçom de 1917 era-lhe indiferente.

Nos últimos tempos, tentando tardiamente desligar-se do afundamento do "campo socialista", Cunhal argumentou que "sempre tivera reservas" a alguns dos seus aspectos. A verdade é que aplaudiu publicamente todas as inflexons da política soviética, desde a invasom da Checoslováquia à campanha contra a China de Mao e à invasom do Afeganistám, sujeitando-se mesmo a desempenhar o papel de emissário do governo de Moscovo junto dos satélites recalcitrantes.

Ele nom foi, como tantos outros militantes, simplesmente iludido pola degeneraçom da Uniom Soviética, que entom se apresentava como a única alternativa à barbárie imperialista; propagandeou um "socialismo" sem luita de classes e sem ditadura do proletariado, envenenando com isso a consciência do proletariado português.

Terceira. Cunhal tivo o grande mérito de construir, à frente de umha plêiade de militantes, um partido firme e disciplinado, capaz de resistir à perseguiçom implacável da ditadura. Mas o PCP, concebido como instrumento da "Unidade nacional" antifascista e nom como vanguarda revolucionária do proletariado, foi adquirindo ao longo dos anos as taras do que Lenine chamava um "partido pequeno-burguês para operários": medo à iniciativa das massas, controleirismo rotulado de "centralismo democrático", estreiteza ideológica, esterilizaçom da vida interna, dogmatismo.

Obcecado em evitar a todo o custo o confronto de opinions e as luitas internas, Cunhal alimentou nos militantes um activismo cego, terreno ideal para a lenta ocupaçom do partido pola ideologia burguesa e fonte de onde venhem brotando em catadupa sucessivas dissidências social-democratas.

Tendo renunciado de vez a umha política de aliança revolucionária dos oprimidos, o PCP procura, hoje como há 50 anos, ganhar as boas graças de sectores democráticos da burguesia para construir umha "democracia avançada" -objectivo mais do que nunca utópico, porque ultrapassado pola marcha da luita de classes em Portugal. Daí, e apesar da influência popular de que ainda dispom, a sua degeneraçom reformista e o seu declínio irreversível. Após décadas de "cunhalismo", o proletariado português está confrontado com a necessidade de construir de raiz o seu partido comunista, à margem do PCP, partido do passado, nom do futuro.

Na hora em que todos reverenciam o dirigente desaparecido, fazemos questom em sublinhar aquilo que o distanciou do proletariado. A ilusom na colaboraçom de classes tem sem dúvida raízes profundas no proletariado português; mas Álvaro Cunhal, com a sua patética "Unidade nacional" e a sua imaginária "revoluçom democrática e nacional" operário-burguesa, sufocou o espírito revolucionário de classe, causou sérias derrotas ao movimento operário e retardou de várias décadas a sua emancipaçom política. É mais que tempo de os proletários tomarem consciência de que o "cunhalismo" deve ser rejeitado porque impede a luita contra a burguesia em todas as frentes — política, económica, ideológica —, luita sem a qual nom existe aproximaçom ao socialismo.


Inclusão