Na Morte de Álvaro Cunhal

Francisco Martins Rodrigues

Maio/Junho de 2005


Primeira Edição: Política Operária nº 100, Mai/Jun 2005

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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No momento da morte de Álvaro Cunhal, não vou juntar-me às expressões de “profundo pesar” institucional que chovem de todos os lados, sobretudo dos seus adversários políticos. Muito menos às frases feitas sobre a sua dureza, ambição, modéstia ou imodéstia, etc. Acho que o peso da sua figura merece uma apreciação política séria.

Em primeiro lugar, não posso acompanhar os elogios das figuras gradas deste regime à “coerência” do falecido — elogios que apenas reflectem o desconforto perante um homem que chefiou a longa resistência dos comunistas à ditadura fascista e que, só pela sua presença, lhes atirava à cara a vergonha de não terem feito o mesmo quando era preciso provar o amor à “Democracia” que estão sempre a proclamar.

Apesar do seu valor como antifascista, coerência é justamente a qualidade mais problemática na carreira política de Álvaro Cunhal. Ele foi, como todos sabem, admirador fervoroso da grande revolução conduzida por Lenine, mas também das misérias que vieram depois, com Staline, Krutchov, Brejnev… até ao miserável desabar da URSS. E nunca explicou o que o levara a julgar socialista um regime onde os trabalhadores eram arregimentados.

Pior ainda a sua “coerência” na política interna: depois de ter apelado ao longo de décadas à “revolução”, quando esta finalmente começou a desenhar-se, passou a bradar contra os “actos irresponsáveis”. Pode dizer-se com justiça que Álvaro Cunhal contribuiu para fazer abortar a revolução que se esboçava em 74-75 no miserável forrobodó que por aí vai. Os burguesotes que o pintavam como um diabo vermelho bem lhe podem agradecer o favor que lhes fez.

Nesse caso, porque teimam mesmo assim alguns em acusá-lo de que quis “tomar o poder”? Naturalmente, porque precisam de ter uma justificação para o infame golpe militar de 25 de Novembro. E sobretudo, porque, habituados a ver o movimento de massas como uma marioneta nas mãos dos políticos, confundem o avanço irreprimível dos trabalhadores com planos tenebrosos da cúpula do PCP — a qual, na realidade se limitou a seguir a reboque da onda popular.

Promovem-no agora também a “homem de cultura”. Para além do mérito que tenha a sua produção literária e artística, acho difícil reconhecer valor cultural a um líder político que instituiu no seu partido o clima da ortodoxia, da aceitação obediente e do medo à crítica e que, pela extrema pobreza do seu pensamento político, formou toda uma escola de militantes convictos de que o marxismo é uma colectânea de fórmulas sagradas.

Álvaro Cunhal fica na história de Portugal não como revolucionário (que nunca foi) mas como um anti-imperialista e um progressista de vistas curtas, que conseguiu a proeza de, sem se desacreditar perante os trabalhadores, poupar à burguesia o calvário de uma revolução. Nestes últimos trinta anos, o prestígio da sua carreira de resistente antifascista já não era suficiente para apagar a falência de toda a sua política e os custos que esta acarretou para os explorados.

Toda a sua vida foi passada na busca de um meio-termo, capaz de acalmar a indignação dos pobres sem atemorizar as classes médias. Não é uma qualidade honrosa para quem sempre se reivindicou do título de comunista.


Inclusão 23/10/2018