Acalmia Enganosa

Francisco Martins Rodrigues

Março/Abril de 2005


Primeira Edição: Política Operária nº 99, Mar-Abr 2005
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

Fala-se de “desanuviamento internacionale “regresso à cooperação atlântica”. Na realidade, prossegue em ritmo febril o jogo das grandes potências, ocupando posições com vista a futuros confrontos.

As recentes tournées de Bush e de Condoleezza Rice deram lugar a declarações optimistas por toda a Europa: com a administração Bush a regressar ao “multilateralismo”, estariam criadas novas condições para a pacificação no Médio Oriente. A realidade é toda outra. Bush veio pressionar e engodar a Europa para o ajudar, mediante contra­partidas apetitosas, a gerir os “quebra-cabeças” do Iraque e da Palestina e a lançar as novas operações contra a Síria e o Irão.

Consolidada no poder, a equipa de Bush acha a situação propícia para prosseguir com o seu plano global. De facto, de uma forma ou de outra, os EUA conseguiram levar a cabo “eleições” no Afeganistão e no Iraque, obtiveram uma trégua na Palestina, e com este simulacro de normalização podem agora passar a outra etapa: a questão síria, sem descurar a cartada maior, o Irão.

As declarações provocadoras de Condoleezza contra a Coreia do Norte, a nova “revolução popular” teleguiada, desta vez no Quirguizistão, a nomeação dos falcões Wolfowitz e John Bolton, um para o Banco Mundial, o outro a representar os EUA na ONU, e sobretudo a crise política no Líbano – mostram o que valem as palavras apaziguadoras.

Líbano: Crime da Síria ou da CIA?

A quem interessava o assassinato do antigo primeiro-ministro Hariri, esse riquíssimo homem de negócios, até há poucos meses aliado de Damasco? A grande imprensa europeia (Times, Corriere della Sera, El País, Libération), acusou desde logo a Síria da autoria do atentado, o que parece altamente improvável; só por espírito suicidário o regime de al-Assad, já na mira dos Estados Unidos, se lançaria em tal aventura. Com as investigações ordenadas pela ONU a cair em ponto morto (o que só por si é altamente suspeito), o mais certo é que nada se descubra. Basta porém procurar quem são os beneficiários do atentado e da onda de manifestações “espontâneas” que se seguiu para suspeitar que estejamos perante mais um acto de diversão da CIA ou da Mossad, ou de ambas. A presença das tropas sírias no Líbano garantia o apoio ao Hezbollah, protegia os campos de refugiados palestinianos e pressionava os sionistas a sair da Cisjordânia. Por isso a retirada dos sírios é um claro triunfo para Sharon. Quanto às vantagens para Bush são óbvias. Confrontado com a intolerável aliança recentemente concluída entre a Síria e o Irão, o Pentágono vai desenrolar todo um programa metódico de pressão e de provocações sobre a Síria, sem excluir a possibilidade de uma invasão armada.

E nesta nova aventura, o clã de Bush conta com a cumplicidade da França. Tradicional manipuladora da burguesia “cristã” libanesa, Paris sonha com um regresso em força ao Líbano. O que diz tudo sobre as “objecções de princípios” que a França faz aos Estados Unidos.

Palestina:  Os eternos sacrificados

Outra cartada bem sucedida de Bush foi o “apaziguamento” na Palestina, com o compromisso de cessação das hostilidades assinado em Charm El-Cheik por israelitas e palestinianos. A segunda Intifada, e os seus 3.585 palestinianos mortos, civis na quase totalidade, muitos deles jovens, é assunto a esquecer.

George Bush está a permitir de novo aos europeus a participação no jogo da Palestina, mesmo sabendo que isso não agrada de todo a Sharon. Mas com essa espécie de prenda espera pode envolvê-los mais na difícil questão iraquiana.

A realidade é que Sharon permanece inflexível quanto à manutenção do controle israelita sobre a maior parte da Cisjordânia, que insiste em chamar “Judeia e Samaria”. Focando a atenção da opinião internacional no folhetim da evacuação dos colonatos na faixa de Gaza, como prova da sua “boa vontade”, vai dando novos passos na construção do Muro e das estradas reservadas aos colonos na Cisjordânia.

A agência Reuters noticia, citando a imprensa de Tel Aviv, que Israel pretende construir este ano 6.390 novas casas nos colonatos judeus da Cisjordânia, a somar às 3.000 casas edificadas nos últimos dois anos. Os já 225.000 os israelitas a viver em 120 colonatos nos territórios ocupados da Cisjordânia serão multiplicados várias vezes. Embora o governo de Ariel Sharon se tenha comprometido a desmantelar estes colonatos ilegais, o seu plano é criar uma situação de facto que torne “psicologicamente impossível” a restituição dos territórios ocupados. Como de outras vezes no passado, as concessões aparentes de Sharon servem de veículo a ganhos territoriais a longo prazo.

Irão: “Desafio intolerável”

 Entretanto, vai seguindo o seu caminho a preparação da opinião pública mundial contra outro dos “Estados párias”, o Irão. Como anteriormente no Iraque, Washington demonstra a sua “paciência” dando prazos ao regime de Teerão para se dobrar às suas exigências, até que anuncie que “não se pode esperar mais”. Os pretextos são basicamente semelhantes aos usados contra o Iraque: a ameaça nuclear e os direitos humanos. As motivações reais, de que se fala muito menos, são outras: o Irão, segunda reserva mundial de petróleo (produção de 2,7 milhões de barris/dia), assinou enormes contratos de fornecimento de petróleo à China, à Índia e ao Japão; prepara-se para entrar, com o apoio da China e da Rússia, no grupo de Xangai; e está a projectar a criação de uma “bolsa petrolífera” em Teerão, para concorrer com as praças de Londres e Nova Iorque. Se esta iniciativa for por diante, os centros financeiros anglo-americanos ver-se-ão privados das rendosas manipulações com os preços do crude e, pior ainda, na nova bolsa de Teerão, os produtos serão cotados em euros e não em dólares.

Para além do desenlace mais que duvidoso de uma invasão (o Irão é um país poderoso, que não se compara com o Iraque exausto e arruinado de 2003), Washington teria que gastar muito dinheiro para conseguir que a UE, a China e a Rússia fechassem os olhos a essa nova aventura. Para já, a aposta parece ser pois nas manobras de desestabilização interna, que tão bons resultados têm dado nos países do Cáucaso e da Ásia Central que faziam parte da ex-URSS.

A “vocação europeia”: aproveitar as sobras

Recebido em Bruxelas de forma cordial e com renovadas promessas de eterna amizade, George Bush marcou pontos junto do aliado europeu recalcitrante. Acenando com a ameaça de reduzir as trocas tecnológicas, conseguiu mais um adiamento na decisão europeia de levantar o embargo da venda de armas à China. E arrancou aos membros europeus da NATO uma resposta positiva ao pedido de ajuda para a formação do exército e da polícia iraquianas. Contudo, no habitual jogo com o pau de dois bicos, seis países informaram logo de seguida não terem condições para enviar oficiais para o Iraque. E dez dias antes da visita de Bush, o chanceler Schröeder fez questão de declarar acintosamente que “a NATO não é o local mais adequado para os parceiros transatlânticos discutirem e coordenarem as suas estratégias”.

Outro sinal de alarme para Washington: logo a seguir à digressão ianque, Schröeder e Chirac, com Zapatero a reboque, promoveram um encontro com Putine. O eixo Berlim-Paris, que é o verdadeiro governo da UE, empenha-se em fazer esquecer a Moscovo o desgosto pelo golpe sofrido com as “revoluções” na Ucrânia e no Quirguizistão e procura “ancorar a Rússia à Europa”.

Ao mesmo tempo que aproveitam as sobras que lhes deixa o grande meliante, os governantes europeus trabalham sem descanso para reforçar as suas posições próprias. Com a crise económica a eternizar-se, a UE não deixa passa nenhuma ocasião de promover os interesses das suas multinacionais; ao lado dos Estados Unidos, quando possível; mas sem eles, e mesmo contra eles, quando necessário. Não é necessário demonstrar os perigos que este jogo de salteadores acumula para a humanidade. 


Inclusão 10/06/2018