A Internacional Comunista na Europa

Francisco Martins Rodrigues

2004


Primeira Edição: Texto inacabado, inédito, 2004

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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A primeira coisa que salta à vista é que as perspectivas revolucionárias da Europa neste século foram simplesmente inexistentes. A luta abnegada dos comunistas europeus (é só destes que falamos aqui) serviu para obter melhorias materiais, afrouxar por vezes a canga da exploração, derrubar ditaduras… mas não acumulou forças para a revolução anticapitalista. Pelo contrário, todos reconhecem que as massas trabalhadoras, se são hoje incomparavelmente menos miseráveis e ignorantes do que no princípio do século, estão contudo mais integradas no espírito da ordem burguesa.

Isto, naturalmente, não é culpa dos comunistas, mas do crescimento do imperialismo na Europa, com os seus tentáculos chegando a todas as classes; só que não se pode deixar de perguntar: esteve a linha geral do comunismo adaptada a essa situação de concentração capitalista?

A Internacional Comunista de 1919 teve um alcance histórico ao levar a todo o mundo as ideias libertadoras da revolução russa, empurrar a social-democracia para o seu lugar de servente do capital e romper com a tradição do socialismo imperial, que reservava este à raça branca(1). Equivocou-se porém ao julgar iminente uma revolução proletária que irradiaria da Europa para o resto do mundo.

O I Congresso da IC declarava “chegada a hora da luta final e decisiva” e apontava como tarefa do proletariado “a conquista imediata dos poderes públicos”. Lenine julgava descortinar o “começo da revolução socialista mundial” e considerava mesmo “bastante provável que, muito em breve a revolução estale em muitos Estados da Europa Ocidental”.(2) Ao inspirar-se no êxito do bolchevismo para lhe tentar copiar os métodos, os comunistas partiam do pressuposto ilusório de que a vitória operária de 1917 testemunhava o amadurecimento revolucionário geral do proletariado: se os comunistas russos tinham podido tomar o poder num país atrasado, com muito mais razão poderiam fazê-lo os europeus, apoiados numa forte e experiente classe operária… Numa perspectiva voluntarista ingénua, os jovens comunistas europeus concluíam da vitória russa que a revolução dependia sobretudo da audácia, de um partido de tipo bolchevique, de uma acertada política de aliança operário-camponesa e de uma hábil combinação do trabalho legal e ilegal.

Esquecia-se, na vaga de entusiasmo pela vitória dos comunistas russos:

  1. que, na Rússia, a audácia de Lenine e dos bolcheviques, com toda a sua genialidade, fora possível graças a uma situação revolucionária, que estava longe de existir na Europa;
  2. que o facto de a revolução russa ser conduzida pelos operários não lhe alterava o carácter burguês, etapa essa já ultrapassada na quase totalidade dos países europeus; e
  3. a que o imperialismo acarretava na Europa a proliferação em larga escala de forças contra-revolucionárias, levantando entraves imprevistos à revolução socialista.

A revolução russa vinha mostrar a entrada do mundo numa época de grandes convulsões populares, a emergência do proletariado como classe em disputa do poder, o papel decisivo de um partido revolucionário marxista apto a conduzir as massas à conquista do poder, sem nada de comum com a velha social-democracia, mas não provava que os comunistas europeus pudessem ter a mesma sorte dos bolcheviques desde que lhes copiassem a estratégia e a táctica. A experiência russa podia servir, e serviu, de modelo aos revolucionários nas sociedades atrasadas do Oriente, em luta pela sua revolução antifeudal e anti-imperialista, mas não tinha termo de comparação com os países capitalistas avançados, particularmente com as metrópoles imperialistas como a Inglaterra, Alemanha, França, Bélgica.

Em 1921, o III Congresso já admitia que “a revolução mundial… exigirá um período bastante longo de combates revolucionários” e reconhecia o “elevado grau de organização da burguesia nos países capitalistas desenvolvidos da Europa”(3) mas destacava, nas reivindicações imediatas, as nacionalizações e o controlo operário e continuava a orientar a penetração nos sindicatos e a utilização do parlamentarismo na perspectiva de um levantamento proletário próximo, que poderia ocorrer em primeiro lugar nos Balcãs ou na Itália, ou sobretudo na possibilidade de “unir a Alemanha industrial à Rússia agrícola”(4).

No Esquerdismo, Lenine atacou o infantilismo “esquerdista” no pressuposto de que amadureciam na Europa situações revolucionárias. Havia que liquidar o isolamento sectário porque a revolução batia à porta. Mas não batia.

Desmentida a expectativa na revolução europeia iminente, os partidos procuraram adaptar-se à situação real de acumulação de forças, mas sem ter a noção de que todas as componentes da táctica leninista só faziam sentido no pressuposto de uma situação revolucionária em gestação, de uma tendência geral de deslocação das massas para o terreno da revolução e do comunismo. Na ausência dessa situação — e era o que se passava na Europa — essas mesmas manobras tácticas tornavam-se no seu contrário, fomentavam o oportunismo. O oportunismo imperialista sufocou as revoluções nas metrópoles e nas periferias.

Assim, os jovens partidos comunistas europeus partiram para a batalha animados dum forte espírito revolucionário, em ruptura com a traição social-democrata, mas desfasados de toda a situação social em que estavam inseridos. A sua tentativa para deslocar rapidamente o proletariado do campo do reformismo para o campo do comunismo tinha que fracassar porque a simpatia espontânea e calorosa do operariado (sobretudo das suas camadas mais pobres) pela revolução dos sovietes não era suficiente para criar uma situação revolucionária; essa dependia de factores estruturais que não estavam reunidos em nenhum país europeu (a não ser nas periferias, a braços com revoluções burguesas atrasadas — Hungria, Espanha, etc.). E nessa situação, a massa do proletariado, mesmo quando radicalizava as formas de luta, tendia a manter-se no quadro do sistema e era avessa a aderir a um partido que lhe trazia a mensagem da revolução e da conquista do poder a curto prazo.

Naufragada, aí por 1923, a esperança na revolução europeia imediata, impunha-se reformular os pressupostos que presidiram à fundação da Internacional. A putrefacção da II Internacional demonstrara já aonde podia levar a crença numa sequência linear capitalismo avançado-socialismo; a constatação marxista de que o imperialismo prepara a passagem mundial ao socialismo, se transferida para a escala do curto prazo e de cada país, pode tornar-se uma fonte de oportunismo e de corrupção imperialista. Contudo, a IC não trabalhou sobre as lições desses anos de ilusão 17-23, nem sobre as preciosas indicações marginais de Lenine no Imperialismo.(5) Afundando-se no erro, pôs-se a tentar apurar o impasse, melhorando os métodos de mobilização de massas, na luta em duas frentes, contra o esquerdismo e o direitismo.

Seria demasiado simples atribuir um tal fenómeno de cegueira colectiva à falta de estudo do marxismo e do leninismo. A resposta não pode ser encontrada meramente em termos de conhecimento teórico. A situação real do capitalismo europeu e o carácter da sua luta de classes estavam ocultos pelo choque gigantesco, ainda fresco, do primeiro massacre interimperialista; era natural que, pela sua atrocidade desmedida, fosse interpretado como anunciador do fim iminente do sistema. A nova situação ficava oculta sobretudo pelo dilema dramático trazido pelo triunfo do novo regime na Rússia: a URSS não era socialista nem caminhava para o socialismo mas erguera-se sobre uma gigantesca revolução operário-camponesa, expropriara a sua burguesia e proclamava como alvos, num mundo subjugado ao capital e à propriedade privada, o socialismo e o comunismo. A hostilidade rancorosa de todos os regimes burgueses, dos democratas como dos fascistas, ao “bolchevismo” mais acentuava a onda de solidariedade à União Soviética como pedra de toque da identidade revolucionária do proletariado.

Mas se para os operários avançados este antagonismo com a sua própria burguesia era a base da sua existência como classe autónoma, nem por isso ele deixava de assentar nestes dois equívocos — o mito do socialismo soviético e o mito de uma situação revolucionária na Europa. Os partidos da IC caíram assim numa armadilha histórica que os conduziu à ruína.

Ao fazer o balanço deste período, não podemos esquecer porém que a crença dos comunistas na revolução a curto prazo e o seu seguidismo perante Moscovo partiam de uma postura acertada no essencial: abominação da sua própria ordem burguesa, rejeição do colaboracionismo social-democrata, solidariedade aos povos oprimidos da colónias, fidelidade ao que julgavam ser o “mundo novo”. Foi isso que esqueceram, com um pânico indecente, os comunistas cor-de-rosa que, desde os anos 70 e sobretudo depois da queda do “Muro”, se sentiram obrigados a dar a mão à palmatória à social-democracia e trataram de converter-se em “socialistas democráticos” ou “comunistas populares”.

Não há pois motivo para estranheza perante a trajectória seguida pela IC e por cada um dos seus partidos: a convicção de que se lhes exigia e era possível a conquista a breve prazo da maioria do proletariado colocou-os à partida num trilho errado. À “doença infantil do esquerdismo” sucedeu, quase sem transição, a “doença senil do direitismo”. Dos pseudo-sovietes, dos “sindicatos vermelhos”, do boicote às eleições, do agitativismo frenético, que apostavam numa radicalização inexistente e fechavam os comunistas em seitas impotentes, passou-se à penetração paciente nos órgãos de massas, à política de “frente única”, à transformação dos PCs numa força eleitoral, legal… que selou a esterilização burguesa-progressista dos partidos nos anos 30, a sua degeneração em social-democratas de esquerda nos anos 50, e por fim em social-democratas, sem mais, nas últimas décadas.

Pode assim dizer-se, em balanço final, que a acumulação de forças promovida primeiro, na passagem do século, pelos partidos social-democratas, depois pelos partidos comunistas europeus, foi uma acumulação reformista, negativa do ponto de vista da revolução. O proletariado melhorou a sua condição material, elevou a sua capacidade organizativa, mas não avançou um passo no caminho da subversão da ordem do capital. Foi uma evolução geral, regular, inelutável, que não pode ser atribuída a esta ou àquela circunstância, às manobras geoestratégicas defensivas de Staline, ou às propensões reformistas de um Thorez ou um Togliatti. Tudo se passou como se não houvesse alternativa ao fracasso do projecto comunista na Europa.

O pior foi que os PCs europeus (e o dos EUA) irradiaram o seu reformismo intrínseco para as regiões periféricas, cederam à tendência para as subordinar às suas conveniências estratégicas de colaboração de classes, e bloquearam em muitos casos a marcha das revoluções nacional-democráticas, essas sim, possíveis a curto prazo no “Terceiro Mundo”.

Era este fracasso inevitável? Podemos admitir que existia uma alternativa para a luta revolucionária na Europa, mas só se os comunistas tivessem adoptado uma perspectiva estratégica e tácticas adequadas ao estádio ascensional do capitalismo no continente e à real correlação das forças sociais, se tivessem encetado um trabalho de conquista a longo prazo do proletariado. Isso ter-lhes-ia evitado tanto o desespero “esquerdista” como a degeneração oportunista.

Cento e quarenta anos depois de um punhado de revolucionários europeus, inspirados na “Manifesto do Partido Comunista” terem criado a AIT, com o objectivo de libertar o proletariado da servidão do capitalismo, os tentáculos do capitalismo estenderam-se a todos os recantos do mundo e tomaram-se incomparavelmente mais sufocantes, à custa de uma exploração desenfreada, de matanças mundiais e guerras de conquista como a que está a decorrer no Médio Oriente.

A burguesia percorre o único caminho que tem à sua frente — a corrida cega à acumulação e concentração do capital. Ao fazê-lo, multiplica a capacidade produtiva da sociedade ao mesmo tempo que reduz as massas à miséria. As invenções e progressos do capitalismo tornaram a abundância possível para toda a humanidade — mas o resultado prático foi tornar um milhão de magnates mais ricos que 3.000 milhões de desgraçados. E, como se isso não bastasse, a rivalidade entre os centros do capital para ver quem domina o planeta desencadeiam guerras ferozes e devastadoras. Todos começam a sentir que o sistema capitalista mergulha sob os nossos olhos no estertor de uma agonia catastrófica. É a sobrevivência da humanidade que está ameaçada.

Parece que já seria tempo de vermos ascender um modelo de uma nova sociedade, livre das taras do capitalismo. Mas os continuadores dos comunistas de 1864 continuam metidos nos subterrâneos, ignorados pelas massas, a tentar cavar os caboucos do edifício.

Hoje o proletariado vê atrás de si um historial de lutas gloriosas mas também de amargas derrotas. Por razões diferentes, a AIT, depois a II Internacional, mais tarde a Internacional Comunista, naufragaram, deixando atrás de si o cepticismo quanto à capacidade de o proletariado intervir unificado à escala do mundo, segundo um programa político autónomo. Desde a Comuna de Paris, afogada em sangue, à grande revolução dos sovietes, abortada num regime despótico, à revolução chinesa, tumultuosamente convertida aos valores do capitalismo — a busca da sociedade comunista, livre, igualitária, é hoje geralmente olhada como uma miragem.

Instalou-se no campo anticapitalista uma profunda descrença quanto à capacidade de o proletariado se afirmar na sociedade como “classe para si”, no célebre dizer de Marx. Em vez da Internacional temos agora uma corrente que se afirma nos dias de hoje contra a barbárie do capital, a dos fóruns sociais mundiais e da “altermundialização”, onde o proletariado desempenha um papel mais que modesto ao lado das outras classes — tanto em activistas como na ideologia. O que diz tudo sobre o caminho percorrido.

Isto parece ser tanto mais indiscutível quanto o proletariado, incomparavelmente mais numeroso hoje do que há 140 anos, mas batido pela marcha da concentração capitalista, é hoje fragmentado, precarizado, diminuído face ao saber técnico moderno, passado à reserva — dir-se-ia que a lição que a burguesia tirou das lutas do século XX foi dissolver o proletariado. Isto enquanto ascendem nas metrópoles do capital as classes médias, cuja ideologia invade toda a sociedade.

De derrota em derrota, chegámos a um ponto em que os comunistas são olhados como uma raça em extinção e as massas não lhes dão ouvidos. Neste século e meio fomos deslizando insensivelmente para fora do marxismo revolucionário. Depois foi um abalo, uma ruptura, mas recomeçou o movimento de adaptação.

A burguesia está farta de saber que a oposição parlamentar e sindical são a respiração do sistema. Oposição amordaçada, sentam-se em cima de nós e convidam-nos a apreciar a democracia.

Hoje a independência política do proletariado é mais difícil de conseguir, A situação tem estado a evoluir aceleradamente para a globalização, com a pulverização da própria classe operária, a fragmentação, os precários, todos os fenómenos novos que estamos a ver. O sistema corrompe largas franjas, são subornados, e os de baixo sem voz.


Notas de rodapé:

(1) Consultar a este respeito Les quatre premiers congrès mondiaux de 1’Internationale Communiste, 1919, 1923. Ed. Maspéro, Paris, 1970, p. 37. (retornar ao texto)

(2) Id., p. 30. (retornar ao texto)

(3) Id., p. 94. (retornar ao texto)

(4) Id., pp. 104-105. (retornar ao texto)

(5) (Citar as passagens do Imperialismo .....) (retornar ao texto)

Inclusão 16/11/2018