Brumas do Fascismo

Francisco Martins Rodrigues

Janeiro/Fevereiro de 2004


Primeira Edição: Política Operária nº 93, Jan-Fev 2004
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

Verdadeiramente colossal a vastidão dos temas que João Bernardo ataca no seu mais recente trabalho, Labirintos do fascismo(1), cuja apresentação teve lugar em Dezembro, na Associação Abril em Maio. Apoiado num levantamento riquíssimo das lutas sociais na primeira metade do século XX europeu, o livro abre pistas inesperadas sobre a questão do fascismo.

Porém, se as hipóteses avançadas são estimulantes, a linha geral das conclusões parece-me altamente contestável. Na impossibilidade de fazer aqui uma resenha mais completa, evoco os tópicos que me surgem como mais polémicos.

Quem quis o fascismo, quem fez o fascismo? Bernardo não se satisfaz com a fórmula clássica da “ditadura do grande capital” e assegura que o fenómeno fascista “não pode ser entendido como um movimento de classe, mas como um movimento social global”, que “atravessa todas as camadas da sociedade”, que se alimenta num “nacionalismo de base proletária”, etc. Aqui, a primeira dúvida. Será que o facto de atravessar todas as camadas da sociedade retira ao fascismo o seu sinal de classe? Que a burguesia no poder utilize a sua hegemonia em todos os terrenos para criar correntes de apoio de massa à sua política não é novidade; não é isso que torna essa política um “movimento social global”. O que deu ao movimento fascista a sua potencialidade mortífera foi a circunstância de a grande burguesia ter podido mobilizar ao serviço dos seus interesses estratégicos o desespero de vastas camadas sociais intermédias, num ambiente geral de pânico causado pela guerra, pela grande crise e pelo pavor do “bolchevismo”. A escala inaudita em que os regimes fascistas combinaram demagogia, fanatismo e terror tinha que paralisar toda a oposição e arregimentar multidões – mas isso não tirou a esses regimes o carácter de “ditadura do grande capital”.

O fascismo – e é justamente Bernardo que o nota – surgiu como reacção burguesa ao bloqueio do desenvolvimento económico: ou por causa de uma derrota militar (Alemanha), ou por não ver recompensada a vitória (Itália, Japão), ou em busca de um arranque da acumulação (Espanha, Portugal, Brasil, Argentina). “Os regimes fascistas só se impuseram onde haviam surgido impedimentos à evolução do capitalismo” (p. 162). Este é o cerne do problema; tudo o resto são derivados.

Por isso mesmo o nazismo foi de facto a “encarnação superior ou mais concentrada” do fascismo, classificação que Bernardo não aceita. Decerto, como ele diz, as teses académicas que estabelecem as “condições mínimas” do fascismo não passam de um recurso para branquear as variantes menos típicas (como foi o caso do salazarismo). Mas isso não permite negar que os fascismos tiveram muitas gradações, consoante os condicionalismos da luta de classes em cada país, e que o regime hitleriano foi fascismo “em estado puro” — poder sem limites dos aparelhos de terror, fanatismo de massas, expansionismo guerreiro, extermínio industrializado — justamente como resultado do poderio ímpar da burguesia alemã. A forma mais concentrada de fascismo manifestou-se no país de mais elevada concentração capitalista — e isto diz tudo sobre a natureza social do fenómeno.

Bernardo defende com razão que a avaliação do fascismo não dispensa o exame autocrítico das fraquezas do movimento anticapitalista. Mas desloca, de forma surpreendente, essa “autocrítica”, das indecisões e debilidades do movimento comunista da época, para uma alegada “convergência” entre fascismo e comunismo. Pretende que teria havido entre os dois campos “circulação de ideias” e “partilha de quadros ideológicos e quadros organizativos” (uns e outros atacavam a democracia burguesa, uns e outros criaram partidos centralizados) – como se a crítica revolucionária da sociedade burguesa devesse ser responsabilizada pela onda reaccionária que desencadeia como resposta. Quanto à “circulação de militantes” entre comunismo e fascismo, os exemplos que apresenta apenas ilustram as oscilações bruscas que os períodos agudos de luta de classes provocam nas consciências individuais – em todas as correntes políticas.

Para Bernardo, a prova forte da “convergência” é a campanha do Partido Comunista Alemão em meados dos anos 20 contra a social-democracia, atacada como “social-fascista”, no momento em que o nazismo em ascenso ameaçava as liberdades. Comunistas e nazis teriam mesmo sido aliados contra a social-democracia: “Milícias dos nazis e dos comunistas podiam espancar-se e assassinar-se reciprocamente mas encontravam um terreno comum quando se tratava de malhar nos social-democratas” (p. 501). Este quadro dos bandos rivais de energúmenos totalitários “malhando” nos pobres democratas será certamente grato a um Mário Soares, mas é inteiramente falso. Porque o outro “actor” em presença, o partido social-democrata, dispunha de poder, contemporizava com os nazis, e a sua polícia assassinava brutalmente manifestantes comunistas desarmados.

Os comunistas subestimaram a ameaça nazi, é certo; acreditavam que se os nazis dessem um golpe de Estado pouco tempo durariam no poder; mas na altura não eram os únicos a ter essa ilusão. E sobretudo, não se pode atribuir aos comunistas e ao sector mais radicalizado do proletariado alemão, acossados desde a tentativa revolucionária de 1918, as mesmas responsabilidades históricas do que à social-democracia, partido de governo, favorecendo, por medo da revolução, a viragem da burguesia para o regime fascista.

Mais frágil ainda me parece a teoria sobre um “novo modo de produção” que teria irmanado a Alemanha nazi e a URSS de Staline. Fazendo referência a teóricos que teriam “detectado no fascismo e no stalinismo uma base comum ao nível das classes sociais” (p. 210), Bernardo admite que em ambos os regimes a organização centralizada do capitalismo teria dado lugar ao poder de uma classe de burocratas, gestores e tecnocratas, originando muitos paralelos entre ambos, nomeadamente o tenebroso fenómeno do escravismo dos campos de trabalho. “Terá o escravismo de Estado soviético constituído com o escravismo de Estado nazi um novo modo de produção assente num novo sistema de exploração?”, pergunta João Bernardo, para responder: “A questão permanece inteiramente por resolver”.

Não me parece. É precisamente a diferença das bases sociais dos dois regimes que lhes retira quaisquer laços de parentesco. O regime stalinista, erguido sobre o derrube revolucionário da burguesia num país atrasado, criou um gigantesco aparelho de controle burocrático da propriedade estatizada, dado que não existiam na Rússia as condições mínimas para a socialização, para a ditadura do proletariado; ao passo que, na Alemanha, a burocracia e as empresas nacionalizadas serviam os interesses dos grandes trusts privados. Enquanto a classe dos “gestores” soviéticos servia um processo de acumulação capitalista totalmente estatizada num país atrasado, os gestores do nazismo serviam um dos mais poderosos blocos capitalistas mundiais. Daí ainda outra diferença: o capitalismo nazi tinha uma dinâmica expansionista e guerreira (obter na partilha imperialista o lugar a que se considerava com direito e que lhe fora negado por Versalhes), enquanto o capitalismo estatal stalinista tinha uma dinâmica externa defensiva, visando consolidar um regime ameaçado por todas as potências. Por último, o sistema de trabalho escravo nazi nasceu como “solução” para “limpar” o terreno que deveria caber aos colonizadores “arianos” na sua marcha para Leste (daí a sua natureza essencial de extermínio), enquanto os campos de concentração stalinistas surgiram da necessidade de o capitalismo estatal esmagar a resistência da pequena propriedade privada, assegurar a obediência da população e garantir uma férrea unificação do comando, vital para a sobrevivência do regime. Os traços de semelhança entre ambos (a supressão das liberdades, os campos de trabalho…) não os tornam um “novo modo de produção”; pela mesma altura, as “democracias liberais” (Estados Unidos, Inglaterra, França…) aplicavam essas mesmas medidas, não no interior, mas no exterior, aos povos colonizados. O que só comprova que o modo de produção capitalista, em todas as suas variantes, é antagónico com a liberdade…

Tenho também as minhas dúvidas sobre se os capítulos que Bernardo dedica à ideologia fascista acertam no alvo. Ele encontra no percurso dos políticos que chegaram ao fascismo a influência cruzada da paixão pela ordem e de uma profunda revolta contra as elites corruptas e decrépitas do regime democrático; avalia o peso das manias rácicas anti-semitas e anti-eslavistas incutidas de longa data no povo alemão (a que o próprio Marx não terá sido imune!); entra em conta com a tradição populista na política, muito antes de o fascismo a ter usado como arma; analisa a busca de uma estética “superior” que trouxe ao fascismo muitos intelectuais… e com isto, queiramos ou não, manda para segundo plano a essência do movimento: a aversão entranhada da burguesia aos “horrores do bolchevismo” e ao ascenso político do proletariado que a Rússia parecia anunciar. Foi o ódio de classe em estado puro que produziu as proezas terroristas anti-operárias dos anos 20-30, aliás largamente documentadas ao longo da obra.

Naturalmente, os fascistas, bandos de loucos fanáticos servidos por assassinos a soldo e por legiões de imbecis, tinham que produzir uma riquíssima gama de aberrações ideológicas. Mas não são as imagens alucinadas com que eles se viam a si próprios e com que procuravam dar uma aparência de legitimidade à sua ditadura brutal que nos ajudam a perceber a sua natureza social. Os fascistas são os menos indicados para nos dar pistas sobre o que representam. Os eixos ideológicos do fascismo só podem ser encontrados na dinâmica do grande capital em crise que precisa de acorrentar as massas pelo terror, na dissolução dos valores tradicionais da pequena burguesia, na putrefacção de todo um sistema.

Muito mais haverá a dizer sobre um trabalho tão rico em conteúdo como audacioso na busca de novas pistas. Contudo, ficou-me a impressão geral de que as teses de Bernardo sofrem de um desvio de perspectiva que o conduziu a três erros. Primeiro, pretendendo captar todos os cambiantes do fenómeno do fascismo, acabam por diluir o seu carácter de classe fundamental como regime de excepção da burguesia em crise. Segundo, ao atribuir à burocracia uma estratégia de classe autónoma, encontram parentescos entre sistemas radicalmente diferentes, como eram a Alemanha de Hitler e a URSS de Staline. Terceiro, ao abstrair das limitações históricas do movimento anticapitalista no século que terminou, atribuem-lhe culpas que não lhe cabem – e isto resulta numa absolvição parcial das responsabilidades das classes intermédias e da social-democracia na emergência do fascismo.


Notas de rodapé:

(1) Labirintos do fascismo. Na encruzilhada da ordem e da revolta, João Bernardo. Ed. Afrontamento, Porto, 2003. 960 págs. (retornar ao texto)

Inclusão 25/05/2018