Um Caso de Ingratidão

Francisco Martins Rodrigues

Maio/Junho de 2001


Primeira Edição: Política Operária nº 80, Mai-Jun 2001

Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo

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A burguesia é incapaz de reconhecer a ajuda inestimável que recebeu de Álvaro Cunhal na hora de todos os perigos.

“Leão velho, até os burros lhe dão coices”, pensará melancolicamente Cunhal ao ver o pouco respeito com que o tratam. Depois de ver desaparecer na voragem os seus mentores “soviéticos” e os “partidos irmãos”, chegou agora a vez de ser biografado por um ideólogo da direita e, pior, enxovalhado pelos seus próprios discípulos. E pior ainda, não em guerra aberta mas em jogadas de corredor e em confidências venenosas sopradas para os jornais.

O mais duro é que ele sabe que esta democracia pluralista em nome de cujos princípios lhe exigem autocrítica é em grande medida obra sua. Pode Mário Soares meter-se sem pudor diante dos holofotes como o “pai da democracia” — Cunhal sabe que o 25 de Abril foi concebido e preparado por si, nos longos anos da resistência antifascista. O golpe dos capitães e o que se seguiu foi a materialização do “levantamento nacional”, há muito delineado nos seus escritos e na sua acção política.

Houve sem dúvida muitas surpresas perturbantes, mas, nas grandes linhas, tudo seguiu o plano traçado — a democratização sem vinganças, a confraternização universal, a nacionalização dos monopólios, a reforma agrária, a descolonização. O novo regime seguiu esse caminho porque tomara forma lentamente no programa e na acção política do PCP e daí fora passando para as cabeças dos capitães progressistas do MFA.

Se a via foi essa e não outra, isso deveu-se à constância com que Cunhal a defendeu. Contra a parlapatice e a cobardia dos republicanos e socialistas que não estavam dispostos a arriscar a pele numa acção contra a ditadura e que receavam cem vezes mais uma explosão da “populaça” do que a PIDE. E também, por vezes, contra os “irresponsáveis” que queriam guiar o PCP no caminho duma insurreição antifascista sob condução da classe operária, hipótese que a Cunhal aparecia como uma loucura de transviados. Só que os frutos da “revolução” vitoriosa não foram os que ele esperava.

A Semi-Revolução Intermédia

Quando há 40 anos se começou a desenhar a crise final da ditadura fascista e a pergunta “que revolução vamos ter pela frente?” começou a interessar as fileiras do PCP, Cunhal distinguiu-se pela convicção com que defendeu a sua resposta: Portugal caminhava para uma “revolução democrática e nacional”, a qual não seria nem burguesa nem proletária – por muito estranho que isso parecesse aos que se aferravam a fórmulas marxistas. A razão desta originalidade parecia-lhe evidente: a classe no poder não era toda a burguesia mas apenas uma parte dela, os monopólios e os latifundiários, aliados ao imperialismo; a outra parte da burguesia ou era neutra ou estava mesmo interessada em aliar-se ao proletariado na revolução – seria o caso da pequena burguesia e de sectores da média burguesia “patriótica”.

Daí a razão por que a classe operária deveria tomar a cabeça da revolução, assumindo um papel determinante na frente das forças antimonopolistas, mas moderando e restringindo as suas ambições, para não pôr em risco essa frente. A breve trecho, essa moderação seria recompensada com a passagem a uma nova etapa, à revolução socialista.

Esforçando-se por vencer o cepticismo de alguns militantes jovens do partido, Cunhal desenvolveu no folheto Radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista, editado em 1970, o quadro prometedor que seria aberto por essa revolução intermédia. Vale a pena recordar:

“O proletariado e os seus aliados realizam a revolução democrática e nacional. Têm o poder nas mãos. Nacionalizam os sectores fundamentais da vida económica. Liquidam os latifúndios e a grande exploração agrícola capitalista. O proletariado encabeçando as mais amplas massas populares e dirimindo a seu favor os conflitos no seio da aliança, ganha posições decisivas no aparelho de Estado, nas novas forças armadas, nos novos serviços de segurança, etc. Está em condições de servir-se do novo aparelho do Estado (não, não haverá poder dos trabalhadores, nem revolução socialista com o ‘desaparecimento do Estado desde o início, como dizem os anarquizantes dos Cadernos) para esmagara burguesia e neutralizar as suas tentativas de contra-revolução

Este era o esquema. Os críticos apenas demonstravam a sua incapacidade para entender o carácter original desta revolução democrática e nacional que abriria passagem pacificamente à revolução socialista.

Durante dez anos, até ao Outono de 75, o PCP percorreu um esperançoso ascenso de influência política, a culminar nas jornadas delirantes do “poder popular”, que parecia seguir matematicamente os carris da “revolução popular e militar” prevista. Tudo correu às mil maravilhas enquanto o movimento percorreu a fase de desmontagem das estruturas arcaicas deixadas por meio século de ditadura fascista. Com que ardor defendiam nessa altura os Britos, os Vitais, as Zitas e os Judas a perspicaz e audaciosa elaboração teórica de Álvaro Cunhal! Mas tudo começou a correr ao contrário das previsões quando a burguesia (a classe burguesa agindo em conjunto, facto que a Cunhal deve parecer monstruoso) passou à etapa da reconstrução do seu regime. Aí, tudo se começou a desmoronar, com uma evidência cada vez mais difícil de ocultar.

Não que houvesse um regresso ao passado. As transformações realizaram-se de facto, tal como Cunhal previra e até excedendo as suas melhores expectativas. Só que não abriram nenhuma passagem pacífica para o socialismo mas uma transição pacífica para a modernização do capitalismo. O problema que preocupava toda a burguesia — o risco causado pelos elementos inflamáveis acumulados em meio século de ditadura — foi resolvido com a colaboração gratuita do chefe do PCP.

Abriu Cunhal os olhos perante a falência da sua “revolução”? De modo nenhum. Depois do golpe de 25 de Novembro, quando se perfilavam tendências para uma resistência operária encarniçada à remontagem da máquina de superexploração. Cunhal continuou a meter travões à resistência do proletariado em recuo, agora com o argumento de que era preciso não comprometer as “conquistas” e “não dar argumentos à reacção”; havia que “consentir sacrifícios para defender o sector não-capitalista da economia”; impunha-se o abandono ordeiro das terras da reforma agrária, com a certeza de que “bastará um dia para as reocupar de novo”. E assim veio até à triste falência actual, em que já se gastaram todas as promessas, todas as esperanças, todos os álibis.

As Classes Desobedientes

Mas isto quer dizer que afinal tinham razão os críticos que desde os anos 60 denunciavam a “revolução democrática e nacional” como uma fachada marxista imaginada por um político pequeno-burguês cuja missão histórica inconsciente era (e foi) a de ajudar o regime burguês a passara fase crítica da queda do fascismo e da liquidação do império colonial.

O “Estado democrático nas mãos de um governo revolucionário, dispondo dos meios de direcção da economia” não foi aquilo de que o PCP dispôs no Verão de 75? Porquê então passados três meses já não dispunha de nada e passados três anos andava a mendigar um pouco mais de moderação nos ataques? Evidente­mente, porque as classes não se comportaram segundo o esquema imaginado por Cunhal. O proletariado foi incapaz de dirigir a revolução democrática e nacional porque ela lhe negava qualquer papel político dirigente; limitou-se a ser uma força de choque, poderosa pelo seu ímpeto mas impotente porque privada de um objectivo revolucionário próprio e proibida pelos seus chefes de ajustar contas com a burguesia. A pequena burguesia justificou o alerta que fora feito anos antes: comportou-se como um inimigo, secundário e instável sem dúvida, mas um inimigo da revolução que deveria ter sido neutralizado para não envolver o proletariado nas suas vacilações e estúpidas ilusões. Da média burguesia não saíram esses sectores com que Cunhal sonhava, dispostos a agir como aliados fiéis da passagem pacífica ao socialismo; o que saiu foi uma força cega de defesa do capital, da ordem burguesa, de submissão ao imperialismo.

Agora, que tudo isso foi posto à prova na vida, pode-se analisar com objectividade o papel histórico dessa “revolução”: ela foi o cenário pseudo-revolucionário imaginado por Cunhal para ocultar ao proletariado português as reais tarefas revolucionárias que a queda do fascismo lhe colocava. Que não consistiam numa passagem imediata ao socialismo, mas que exigiam uma acção decidida do proletariado e restantes assalariados contra a resistência encarniçada da burguesia – do seu sector fascista, mas também do seu sector “democrático”. Só essa intervenção revolucionária independente teria colocado o proletariado em condições favoráveis para a luta pela expropriação da burguesia e pela revolução socialista.

Álvaro Cunhal consagrou-se definitivamente como um pseudomarxista, um gestor dos interesses burgueses junto do movimento operário. Agora, cumprida a sua missão ao longo de uma carreira de mais de meio século, tornou-se imprestável. Novos líderes despontam, à altura das novas tarefas da política burguesa para a classe operária.


Inclusão 05/07/2018