Ainda há Lugar para os Sindicatos?

Francisco Martins Rodrigues

Outubro de 2000


Primeira Edição: Política Operária nº 76, Set-Out 2000

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Ainda há lugar para os sindicatos?. João Bernardo tem sérias dúvidas de que os sindicatos sejam ainda, na época actual, um instrumento de defesa dos assalariados.

É o que anuncia no subtítulo do seu livro Transnacionalização do capital e fragmentação dos trabalhadores. Ainda há lugar para os sindicatos?, Editorial Boitempo, São Paulo, 2000. E não pela falta de ética dos seus líderes:

“Os dirigentes sindicais podem manter os trabalhadores regularmente informados de uma boa parte das decisões tomadas nas reuniões de direcção e podem não levar no bolso o dinheiro da tesouraria, mas não é por isso que se altera a estrutura burocrática dos sindicatos e que o seu funcionamento deixa de ser autoritário e centralizado.”

O mais curioso é que estas ideias, transmitiu-as o autor a milhares de activistas da CUT brasileira em palestras, cursos e seminários ao longo dos últimos anos. Algo verdadeiramente impensável no nosso meio sindical…

A burocracia operária, tal é para Bernardo a chave para entender as derrotas do movimento neste último século.

“Todos os fracassos do movimento operário, sem excepção, resultam… de ele ter repetidamente permitido que as burocracias geradas no seu interior se convertessem numa verdadeira classe exploradora”. Porque “a dialéctica social do capitalismo consiste na possibilidade de reforçar os mecanismos da exploração com elementos gerados no interior do próprio processo de luta contra a exploração”.

Para ajudar a entender a ditadura da burguesia de forma mais profunda e real, Bernardo introduz o conceito de Estado amplo. Este vai muito além do mero aparelho estatal (o “Estado restrito”), já que os patrões e gestores desfrutam, dentro das suas empresas, de autênticos poderes legislativos, executivos e judiciais.

“O governo, o parlamento e os tribunais reconhecem aos proprietários  privados e aos gestores uma enorme latitude na administração, na condução e na punição da força de trabalho, ou seja, reconhecem-lhes uma verdadeira soberania”.

E como o desenvolvimento do capitalismo reforça continuamente esta soberania paralela, estreita-se mais e mais o campo de manobra dos dirigentes sindicais, que tradicionalmente se apoiavam nas instituições estatais para conter a voracidade dos capitalistas. Ao mesmo tempo que a aliança com os governos já não lhes garante força política, grande parte das empresas já não está interessada no aparelho sindical enquanto regulador do mercado de trabalho. Resultado: os filiados debandam e as quotizações sindicais entram em queda. Daqui a tendência irreprimível dos burocratas sindicais para se tornarem eles próprios gestores capitalistas, através de participações em empresas, manipulação dos fundos de pensões, gestão de cursos de formação profissional pagos pelo Estado, etc.

Bernardo aborda depois a nova situação mundial para destacar o seu traço mais marcante: enquanto a classe capitalista aumentou a sua coesão à escala internacional, os assalariados continuam fragmentados por categorias e fronteiras. “Actualmente temos os capitalistas internacionalizados e os trabalhadores repartidos por nações”, situação inversa da do começo do século, quando os capitalistas estavam agudamente divididos e o operariado atingira um elevado grau de homogeneidade social e cultural – o que ajuda a compreender a vaga revolucionária europeia de 1916-21. É esta fragmentação do mundo do trabalho que torna tão importante a luta contra o racismo. Bernardo critica com razão os meios sindicais que, “mesmo quando abordam a questão do racismo insistem em considerá-lo exteriormente aos conflitos do trabalho e em remetê-lo para o plano da cidadania, como se ele dissesse respeito a todas as camadas sociais, quando o racismo é hoje precisamente a questão central da solidariedade na classe trabalhadora”. Um alerta que deveria ser tomado em conta também pela esquerda no nosso país…

Finalmente, haverá uma alternativa para os sindicatos? Bernardo admite que possam vir a renovar-se como órgãos de luta anticapitalista, mas só se um surto generalizado de lutas dos trabalhadores derrubar a burocracia sindical. Outra hipótese é que o recomeço da ofensiva operária destrua ou relegue os sindicatos a um plano secundário e que uma estrutura democrática e basista – as comissões de trabalhadores – venha a substituí-los, como já tem acontecido em diversos países, em situações de profunda crise social.

Muitas observações de passagem enriquecem este trabalho. Como as que interpretam a sociedade soviética e a sua degeneração, tema a que o autor retorna em todas as suas obras.

Pode-se discordar, naturalmente, de diversos pontos de vista do autor. Suscita-nos dúvida, por exemplo, a tese de que a introdução acelerada de novas tecnologias não implica uma tendência inelutável para o aumento do desemprego. Ou a afirmação de que os meios dirigentes da UE procuram impedir a internacionalização das burocracias sindicais no espaço europeu, quando é o contrário que parece acontecer. Sente-se, sobretudo, a falta de questionamento do papel da pequena burguesia na subjugação do proletariado, o que cinge demasiado a análise ao fenómeno burocrático. Mas as explorações de João Bernardo sobre o mundo da luta de classes são sempre estimulantes porque reavivam a consciência das contradições fundamentais e da via para lhes procurar solução.


Inclusão 05/09/2018