Não se Aprende Nada

Francisco Martins Rodrigues

Setembro/Outubro de 2000


Primeira Edição: Política Operária nº 75, Set-Out 2000

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Os noticiários são invadidos por mais uma “crise decisiva” do PCP mas o público passa adiante. Não que a luta não seja real. Só que estes debates internos do PCP já cansam. A transcendente questão “de princípios” que separa as duas alas rivais é: deve o PCP avançar já para o poder como parceiro menor do PS ou continuar a apostar na oposição até o PS se resolver a inflectir à esquerda? Não valia a pena fazer tantos discursos por uma questão tão simples.

Causa-me vertigens ouvir hoje acusar-se o PCP de “dogmático” e “esquerdista” quando há perto de 40 anos o tive de abandonar, por o achar insuportavelmente reformista e revisionista. Foi o partido que mudou entretanto ou fui eu que me equivoquei em 1963 e vi tudo ao contrário? Nem uma coisa nem a outra. Nestes 40 anos o PCP prosseguiu a sua vocação de aperfeiçoador e moralizador do sistema. O problema é que Cunhal pôs em marcha um movimento que o ultrapassa e vê-se agora atacado pelos seus discípulos mais dilectos.

Sintomático que os cavalos de batalha, de uma parte e de outra, sejam distinções bizantinas em torno da interpretação das normas estatutárias e do marxismo-leninismo e não saltem para cima da mesa temas como o comportamento do partido face ao movimento grevista no PREC, as negociações com os golpistas do 25 de Novembro, a defesa que não foi feita da Reforma Agrária, o seguidismo face à ex-URSS, a luta contra o “esquerdismo”… Por uma razão simples: nisso todos eles estão de acordo.

O abandono da Comissão Política por José Soeiro, controleiro-geral do Alentejo, faz pensar irresistivelmente no caso de Zita Seabra. Nos anos 70 Soeiro celebrizou-se como perseguidor assanhado de “esquerdistas” no Alentejo, em nome da “defesa intransigente do Partido”. Tanta “ortodoxia” acabou por cansá-lo e agora queixa-se que já não consegue aguentar o ambiente na direcção. Se levar o mesmo balanço que a Zita, vai parar longe…

O motor da dissidência interna do PCP está no PS, e não é por os cunhalistas o dizerem que isso se torna menos verdade. Para os socialistas, a longevidade do “stalinismo” do PCP, quando em todo o mundo praticamente desapareceu, é um atestado de incompetência que os torna alvo de troça na Internacional Socialista. O PCP “rouba-lhe” toda uma área a que o PS se sente com direito desde os anos 80, e com autoridade redobrada depois da implosão do Leste. Daí as directivas categóricas de Soares: aposte-se tudo nos “rapazes desempoeirados”.

No Bloco, também, segue-se com ansiosa esperança os sinais de “fractura no sectarismo aparelhístico” e verbera-se o “anátema lançado sob a batuta de Cunhal” ao acusar os adversários de “quererem a social-democratização do PCP” (Combate, Setembro). Como se fosse alguma invenção de Cunhal! É indiscutível que todos os actuais dissidentes, como os de há dez anos, como os de há 15 ou 20 anos, querem a social-democratização plena do PCP. Não há membro do partido que não o saiba; podem ser reformistas mas não são imbecis. Basta ver o percurso dos Magalhães, Judas, Zita, Barros Moura, Cândida, Pina Moura, Veiga de Oliveira e tantos outros intrépidos lutadores pelo “rejuvenescimento e democratização do Partido”.

Se o PCP mudar finalmente o nome para Partido Democrático e Socialista ou coisa semelhante e abdicar da negregada foice e martelo, é de toda a justiça que o Público ocupe um lugar de convidado de honra no congresso de refundação. A paixão e o alvoroço com que a equipa deste jornal acompanha todos c enfadonhos episódios da luta interna do PCP n engana: há ali uma aposta sentida numa “nova al nativa de esquerda” que pudesse vir a aglutinar o ex-PC, o Bloco, uma parte do PS, quem sabe…

Brito, Amaral, Edgar batem-se pela “urgência do diálogo na área da esquerda” como se se tratasse de uma palestra entre cavalheiros. Ora, o PS está disposto a colaborar com um PCP satelizado: que, para começar, já não se chame “comunista”, expressão obscena, mas que sobretudo, para além da reforma dos símbolos, se conforme por inteiro às regras do jogo institucional. Porém, nessa reconversão, o que sobraria da base do PCP? Este enigma é o grande trunfo de Cunhal.

Pelo mesmo motivo que o PS apoia os “renovadores”, o PSD combate-os. Neste aspecto, o artigo de Pacheco Pereira fez uma excelente exposição dos interesses da direita nesta questão: quanto mais tempo durar o cunhalismo, mais afastada a ameaça de uma cooperação PS-PC que viria alargar o campo do “socialismo moderno” e tornar mais difícil o regresso do PSD ao poder.

Os cunhalistas acabam por ser beneficiados junto de certos sectores populares com a imagem de “ortodoxia” que lhes é atribuída. Ora, na realidade, o social-democratismo está solidamente implantado no interior do PCP. Sé) o ignoram aqueles que tomam à letra o discurso de tons radicais debitado junto de sectores operários ou da juventude. Na sua actividade parlamentar, sindical, autárquica, o PCP diferencia-se cada vez menos dos “partidos irmãos” europeus que fizeram agulha para o “socialismo democrático”: jogo institucional, carreirismo, corrupção…

O PCP não pode fugir à lenta mudança do clima social produzida pela entrada do país na “maioridade democrática” e pela integração europeia – desindustrialização, crescimento de uma classe média abastada, fragmentação e derrota do proletariado, suborno dos fundos estruturais.

Por uma má ironia da história, Cunhal, que tanto lutou contra Salazar, está numa situação comparável à do velho ditador, quando já só podia clamar aos seus fiéis: “Aguentar! Aguentar!” Mas o hipócrita “purismo” dos cunhalistas, cada vez mais distante do partido real, acabará por ser submergido pela lógica que ele próprio instaurou: se a política possível é de reformas, e se para as aplicar é preciso estar no governo, porquê sujeitar-se a ser escorraçado, só para satisfazer a teimosia saudosista da “fidelidade ao marxismo-leninismo”, do emblema da foice e do martelo e do nome de “comunista”

Há quem veja na nossa recusa a tomarmos partido pela “renovação” contra o “conservadorismo” um resto de nostalgia “stalinista”. Dizem-nos que, do ponto de vista da esquerda, uma vitória dos renovadores poderia pôr em movimento as forças sãs do PCP, impulsionar uma nova unidade da esquerda…

Só não nos explicam que forças sãs poderiam emergir de uma luta entre reformistas modernos e reformistas caducos. A luta interna no PCP só teria ecos positivos para o proletariado se nela se destacasse uma corrente comunista autêntica, capaz de criticar pela esquerda “renovadores” e “ortodoxos”. Mas essa corrente não existe. Há longuíssimos anos que o PCP se purgou de comunistas ou os lobotomizou.


Inclusão 02/10/2018