A Lei das 45 horas

Francisco Martins Rodrigues

Março/Abril de 1997


Primeira Edição: Política Operária nº 59, Mar-Abr 1997

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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 Impor a flexibilidade e polivalência a troco de uma “redução” fantasma dos horários – quem pode negar que estes socialistas são peritos em ilusionismo?

Veio do Norte a mais forte reacção operária à famigerada lei “socialista” das 40 horas: concentrações, marchas, cortes de estrada, paragens do trabalho. Em muitas fábricas do Vale do Ave os operários já puseram em vigor o descanso ao sábado. O governo, entalado entre a aproximação das eleições autárquicas e a inflexibilidade do patronato, tenta cansar o movimento com ameaças e “esclarecimentos”. E acabará por consegui-lo se a CGTP canalizar o apoio e simpatia ganhos entre os operários para as habituais diligências institucionais.

A Burla da Ministra

Em teoria, a lei das 40 horas viria beneficiar mais de um milhão de trabalhadores, que cumprem ainda horários de 41 a 45 horas semanais, sobretudo na têxtil, construção, mobiliário, comércio (já sem falar nos cerca de 300 mil que ainda trabalham mais de 46 horas, sobretudo na restauração, pesca e agricultura); muitos ainda não desfrutam da banalizada regalia do descanso ao sábado.

Mas neste tempo de ofensiva capitalista desbragada, era de prever que a “benesse” das 40 horas traria água no bico. Desde logo, como os industrial clamaram que a redução dos horários lhes tirava as condições para enfrentar a concorrência – o velho argumento com que há gerações se vêm esfolando os operários -, o governo ofereceu ao patronato das contrapartidas’: flexibilidade de horários (que passam a poder ir até às 9 horas diárias de trabalho “normal”) e polivalência (desempenho de funções não previstas na categoria). Eram precisamente as duas exigências que as confederações patronais vinham há anos reclamando e que o movimento sindical até agora conseguira bloquear.

Isto, porém, era considerado pouco pelos patrões. Então, a ministra do Emprego teve a esperteza de introduzir sorrateiramente na lei a especificação de que o trabalho efectivo exclui “todas as interrupções que impliquem a paragem do posto de trabalho ou a substituição do trabalhador”.

Assim, os industriais, após embolsarem as prendas da flexibilidade e da polivalência, aproveitaram a porta que o governo lhes abria para sofismar a “redução gradual da semana de trabalho”. As pausas há longos anos conquistadas (desde os anos 50, no tempo do governo fascista) e até aqui reconhecidas para um breve almoço, para lanche, ou para um curto descanso, deixam a partir de agora de contar no período de trabalho. E aí passam os operários a gozar a nova semana de 40 horas, trabalhando o mesmo (se não mais) do que antes!

Adesão Patronal

Lançada pelos grandes industriais têxteis do Vale do Ave (Manuel Gonçalves, Riopele, Somelos, Fitor, Sampaio Ferreira, Oliveira Ferreira, etc.), esta descarada “interpretação” da lei generalizou-se praticamente a todo o país. Quem diz que o patronato português é avesso às inovações?

Veja-se como os industriais de calçado aplicaram a lei: a semana de trabalho é reduzida de 43 para 41 horas, oferecendo os patrões 20 minutos (4 minutos diários!) e contribuindo os trabalhadores com a sua pausa, há muito consagrada, de 20 minutos diários para almoço. Assim se obtêm a “redução” de duas horas na semana de trabalho! O sindicato, naturalmente, tem estado a opor-se mas não parece que consiga levar a melhor.

Nas fábricas de garrafas da Marinha Grande, melhor ainda: ao deixar de ser contadas as pausas de meia hora diária para a refeição, os trabalhadores, em vez de terem os horários reduzidos de 42 para 40 horas, tiveram um agravamento de mais meia hora por semana! E não foi tudo. Considerando que a lei deveria ser aplicada retroactivamente, os patrões chegaram à conclusão de que os trabalhadores ainda lhes seriam devedores das horas de refeição já gozadas desde a aprovação da lei (em Julho). Após uma sucessão de plenários tiveram que abandonar esta última invenção mas a recusa a contar as pausas continua.

Nas confecções Melka, com fábricas no Cacém e em Palmeia, mais de 200 trabalhadores receberam processos disciplinares por terem posto em prática a semana de 40 horas, passando a sair às cinco da tarde. Depois de uma série de acções, o mais que conseguiram foi o arquivamento dos processos disciplinares mas à custa de voltarem a cumprir o horário antigo, com saída às 17:20.

Não Engolir a Pílula

O governo “socialista”, que julgou fazer uma flor de esquerda com a mistificação da “semana das 40 horas”, descobre agora que se meteu numa alhada de todo o tamanho em ano de eleições. A indignação operária e a adesão às iniciativas de mobilização da CGTP não prenunciam nada de bom quando chegar a contagem dos votos. Os autarcas do Norte, sobretudo, estão em pânico, perante o perigo de perderem os lugares em Dezembro. A UGT, assim como muitos deputados e autarcas socialistas, concordando todos que “a lei é boa”, pedem alarmados que o governo faça qualquer coisa para convencer os trabalhadores a engolir a pílula. Mas recuar é impossível: a CIP já fez saber que, “ou se cumpre a lei das 40 horas (como eles lhe chamam), ou não há concertação”, e aí considerar-se-iam com as mãos livres para novos ataques aos trabalhadores, com consequências imprevisíveis.

O estratagema usado para fazer os operários trabalhar mais é tão fraudulento que, se não se tratasse de relações laborais, onde toda a gente pensa que vale tudo, desde logo daria lugar a procedimento criminal. É uma medida bem na linha das tradições clerical- fascistas deste país. Importa pois que o movimento operário continue a rejeitar com decisão a burla das 40 horas. Para já, as operárias têxteis do Vale do Ave fizeram lembrar aos distraídos que o movimento operário ainda existe neste país. O perigo será deixar enlear a luta nas “clarificações” do Governo e da Assembleia, nas “recomendações” do Provedor de Justiça, ou na “simpatia” do presidente da República. Esses são expedientes com que se tenta desarmar a indignação operária. Tudo depende agora de saber se a acção da base, das fábricas, será capaz de impedir um acordo entre o Governo e os diplomatas da direcção da CGTP.


Inclusão 16/10/2018