Anti-história

Francisco Martins Rodrigues

Março/Abril de 1994


Primeira Edição:  Política Operária nº 44 Mar-Abr 1994

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Quem deve assumir as culpas pela fácil vitória da direita no 25 de Novembro: o PCP ou a extrema-esquerda? O debate, que alguns tomam como quezília inútil entre vencidos, vem muito a propósito neste 20º aniversário da queda do fascismo.

“O esquerdismo facilitou a contra-revolução”, repetiu há dias, pela centésima vez, Carlos Brito, numa assembleia do PCP consagrada ao 25 de Abril. É bom que continuem com a cantilena, que equivale a uma confissão. Na verdade, a campanha contra os malefícios do “esquerdismo” contêm muito mais do que a busca dum bode expiatório, ou a tacanha arrogância de quem se julga dono do movimento e não tolera o desrespeito pelas suas “directivas”; ela resume a linha política real do PCP melhor do que todos os quilómetros de resoluções do comité central.

O caso é que o PCP ainda não conseguiu, e provavelmente nunca conseguirá, digerir este facto, assombroso e desnorteante à luz do seu “marxismo”: a vaga popular espontânea que galgou os limites da democratização fixados pela Junta de Salvação Nacional e modificou anarquicamente todas as regras do jogo.

Apenas uma semana após o 25 de Abril, Cunhal e os seus amigos descobriam com apreensão e alguma amargura que os trabalhadores, manifestando-lhes reconhecimento pelo seu passado de resistência ao fascismo, não se contentavam com a liberdade outorgada e davam ouvidos às mais estranhas ideias. Os factos políticos começaram a ser criados na rua e nos plenários, ao sabor de agitadores de ocasião – desde o saneamento de administradores à ocupação de casas, à proposta de igualização dos salários ou à exigência de independência imediata para as colónias. Comissões adhoc, eleitas em assembleia e com uma composição imprevisível, assumiram a direcção dos acontecimentos.

E, facto alarmante para o PC, as iniciativas vanguardistas, provenientes de pequenas minorias, popularizavam-se prontamente e em breve se tornavam corrente dominante, sem ter em conta os ritmos previstos e deitando por terra os equilíbrios laboriosamente negociados ao nível do governo ou da Junta. O PC encontrou-se assim na situação desconfortável de ter que pedir às massas que se comportassem ordeiramente para não comprometer a sua credibilidade perante os parceiros do governo. Como não foi obedecido, criou a psicose das “provocações esquerdistas”, que transviavam o bom senso dos trabalhadores.

Ora, os “esquerdistas”, pulverizados em grupos e grupinhos (maoístas, anarquistas, anarco-sindicalistas, anarcocomunistas, guevaristas, leninistas…), numericamente insignificantes, sem experiência política, só deviam a sua inesperada influência ao facto de irem ao encontro do estado de espírito da vanguarda. E foi assim ao longo de todo o primeiro ano, até às eleições para a Constituinte, como mostram numerosos episódios entretanto apagados e hoje esquecidos de quase todos.

O "Partido de Vanguarda" fica para trás

Quem se lembra de que, pouco mais de um mês após o 25 de Abril, José Magro, dirigente do PC, foi expulso dos CTT por acusar a greve (que nós apoiávamos) de pretender “fomentar um clima de descontentamento e de revolta que só à reacção e ao fascismo aproveitam”? Ou de que a primeira resposta da Intersindical às greves que proliferavam como cogumelos foi considerá-las “inoportunas” e “encorajadas pela reacção”, enquanto Cunhal admoestava que “a greve generalizada pode levar ao caos”? Ou de que o slogan “nem mais um só soldado para as colónias”, lançado pelos maoístas, foi adoptado pelo povo nas manifestações, apesar da desaprovação do PC?

Nesse Verão, enquanto os “esquerdistas” ajudavam febrilmente os moradores das barracas a ocupar casas, faziam piquetes à porta da Penitenciária para não deixar soltar os pides, exigiam a libertação dos primeiros presos políticos da democracia, activavam as primeiras ocupações, o PC afadigava-se a cuidar dos sindicatos e do MDP, a prevista “frente popular” que acabou como refúgio de democratas moderados, ou enredava-se nas tricas do Conselho de Estado e do Governo Provisório, sem perceber que a corrente popular derivara para outros canais.

Com os operários das multinacionais (Timex, ITT, Applied, etc.) a lutar contra a sabotagem económica, o Avante deitava água na fervura, assegurando que “o investimento estrangeiro tem ainda vastas possibilidades de uma vantajosa e larga retribuição”. A greve da TAP, que formulou reivindicações avançadas, foi difamada em comunicados do PCP: Em Setembro, quando os operários da Lisnave puseram Lisboa em estado de choque, desfilando a exigir o saneamento dos administradores comprometidos com o fascismo, andava o PC a ver se apaziguava Spínola com uma manifestação de homenagem… O “partido de vanguarda” dava conselhos de prudência que não eram escutados, anunciava “conquistas” que o movimento já tinha deixado para trás, e, a cada passo, via com desgosto os seus militantes deixarem-se envolver pelos “esquerdistas”.

O perigo de contágio tornou-se evidente na euforia do 28 de Setembro, que pôs lado a lado militantes “comunistas” e “esquerdistas”, nas barragens contra a “maioria silenciosa” e no assalto às sedes dos grupos fascistas. Alarmados com esta confraternização, os chefes do PC passaram a ter que manobrar em todas as frentes: dentro do governo e do MFA, com a rua, junto da sua própria base… num esforço esgotante de “desdobramentos tácticos” para criar uma atmosfera de confiança no Governo, Cunhal assinou a lei antigreve (que acabou por não ser aplicada devido ao repúdio dos trabalhadores); apelou à oferta de um dia de trabalho “para a Nação”; aconselhou os monopólios a “tirar uns tostões dos seus próprios bolsos para satisfazer as justas reivindicações dos trabalhadores”; condenou as primeiras ocupações de herdades no Alentejo, apoiadas pelos “esquerdistas”.

Em Defesa da Ordem

Ao entrar o ano de 75, quando a pressão do PS e PPD já provocava sinais de clivagem no seio do MFA, o PC endureceu a batalha anti-esquerdista. O cerco ao congresso do CDS no Porto, levado a cabo pelos “esquerdistas” com largo apoio popular, uma das acções que mais fizeram progredir a consciência política dos trabalhadores do Norte, foi condenado como “acto desordeiro”. No 7 de Fevereiro, com milhares de operários a protestar na rua contra a entrada no Tejo da esquadra da NATO, Octávio Pato veio para a televisão comparar a manifestação à da “maioria silenciosa” e pedir um acolhimento amistoso aos marinheiros americanos! Às vésperas do 11 de Março estava Joaquim Gomes no Pavilhão dos Desportos a dizer aos oficiais da PSP e da GNR “confiamos em vocês e esperamos que confiem em nós”. No decurso do golpe, enquanto os “esquerdistas” acorriam ao Ralis e saqueavam a casa de Spínola, o PC ordenava aos seus militantes a máxima contenção, para não agravar as desinteligências entre os militares. Em 19 de Maio, para mostrar à GNR que não havia que temer radicalismos, Miguel Urbano Rodrigues sentou-se ao lado deles numa homenagem a Catarina Eufémia, em Baleizão!

Se o 25 de Abril foi algo mais do que uma vulgar liberalização, isso deveu-se à irrupção popular incontrolável desses primeiros meses. O PCP opôs-se-lhe, por ver nessas iniciativas uma ameaça à “consolidação da democracia”: ou porque poderiam dividir o MFA, ou hostilizar as classes médias, ou cair numa provocação imperialista… Para os líderes do PC, o “desenvolvimento do processo revolucionário” consistia num trabalho exaustivo de atracção dos sectores moderados, de neutralização de adversários, de hábeis manobras de cúpula. Cultivavam uma imagem de “vanguarda responsável” que sabe para onde vai e obtém avanços sem necessidade de desordens, o que agradava à massa moderadamente “progressista” mas à custa dum corte crescente com a vanguarda do movimento. Assim, num período de agitação revolucionária, em que tudo dependia do protagonismo da vanguarda com o resto a vir por arrasto, o PC distanciou-se dela e hostilizou-a. É isto que permite apontá-lo como o responsável pela derrota do campo popular face à direita.

O Verão da Agonia

Os seis meses seguintes, geralmente apresentados como o “auge da revolução”, foram na realidade a sua agonia tumultuosa. Tudo fora jogado e perdido no primeiro ano. Se, até aí, o movimento fizera uma avançada fulgurante, isso devera-se à cobertura das unidades militares afectas à esquerda. Nunca tivera que defrontar uma oposição séria; as duas tentativas da direita foram tão ineptas que ainda favoreceram mais a radicalização do processo. Por isso, quando, com as eleições, a burguesia e a vasta massa popular sob sua influência afirmaram, com a votação maioritária no PS e no PPD, o anseio de pôr termo à “bagunça”, a esquerda ficou desamparada. Se o povo não queria a revolução, podiam os revolucionários impô-la?

Na realidade, a convocação precipitada de eleições, antes de estarem cumpridas as tarefas primárias de liquidação da ditadura – prisão e julgamento dos fascistas, criminosos de guerra e reaccionários; reconhecimento da independência das colónias; expropriação do grande capital; reforma agrária – foi uma cedência do MFA à pressão imperialista e uma oportunidade graciosamente oferecida à burguesia para restaurar a ordem. Fortalecida com a autoridade do voto popular, a burguesia retomou a iniciativa e lançou-se na acumulação de forças para a contra-revoluçâo.

Nesta nova etapa, revelou-se toda a fragilidade da extrema-esquerda, que alimentara não poucas ilusões no guarda-chuva militar e não se preparara de forma alguma para o momento inevitável da luta pelo poder. As suas ruidosas acções de força que se multiplicaram durante o “Verão quente” (República, Renascença, manifestação pelo COPCON…) chocavam-se contra o muro da conspiração contra-revolucionária que avançava passo a passo. Com uma parte dos grupos maoístas negociando a fusão num partido único no pior momento; com outra parte (AOC e MRPP) a fazer causa comum com o PS e com os Nove, ou seja, efectivamente ao serviço da reacção; com outros ainda (PRP, MES) embrenhados em conspirações de quartel e na disputa de caudilhos militares; com os anarquistas exibindo a sua soberana indiferença pelas necessidades reais do movimento – a extrema-esquerda não foi capaz de reganhar a iniciativa, apesar da justeza de acções pontuais como o assalto à embaixada de Espanha, a defesa das sedes no Porto, ou um lançamento, tarde de mais, de uma organização independente de soldados.

Do lado do PC, todavia, o problema não era de fragilidade ou de imaturidade mas de busca calculista de uma saída airosa da balbúrdia que lhe garantisse uma posição estável na futura democracia. Vendo a sua cotação com pára-raios popular baixar vertiginosamente à medida que a burguesia readquiria confiança em si própria, escorraçado do governo pela assembleia de Tancos, com as sedes queimadas pelos fascistas, empurrado para diante pela onda de ocupações de terras no Alentejo e Ribatejo, nem por isso o PC se aproximou dos “esquerdistas”, embora uma parte dos militantes o desejasse. A táctica seguida visou essencialmente conduzir os trabalhadores às boas, à resignação face ao “restabelecimento da ordem” e negociar um entendimento qualquer com os militares golpistas. As grandes jornadas de massas de Agosto, o cerco à Assembleia, etc., serviram à direcção do PC apenas para regatear as condições desse acordo.

As Culpas do PC

A nossa resposta à acusação de que “o esquerdismo facilitou a contra-revolução” pode resumir-se assim:

Apontando o dedo acusador ao “esquerdismo”, os chefes do PC revelam pois involuntariamente a sua postura intermédia, reformista – isso é, burguesa – hostil às potencialidades revolucionárias do movimento. O ingénuo general Vasco Gonçalves deixou-o escapar uma vez mais na assembleia referida: “Os soldados, generosos e inexperientes, queriam dum dia para o outro o céu e a terra e nós não tínhamos quadros preparados dentro do Exército para combater o esquerdismo”. Podem felicitar-se por ter ganho a batalha.


Inclusão 02/10/2018