Depois do ‘Verão quente’ Inverno gelado

Francisco Martins Rodrigues

23 de Setembro de 1990


Primeira Edição: Público, 23 de Setembro de 1990

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.


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Se eu disser que os artigos de Fernando Dacosta e Ferreira Fernandes sobre o “Verão quente”, no Magazine do PÚBLICO de 9 de Setembro, enriquecem o “dossier” do pensamento político de direita, vão dizer que é uma boca gratuita. Afinal, o que escreveram eles de mais em relação ao que é habitual sobre o assunto?

Realmente, nada. Dramatizando o relato em tons épicos (caso do texto de Fernando Dacosta) ou levando-o para o jocoso, como se tudo não tivesse passado de uma macacada (é o que faz Ferreira Fernandes), ambos exprimem uma mesma reacção de fundo: a recusa a aceitar um movimento social que mudou a face do país. E esta recusa é de direita.

Já Vasco Pulido Valente, numa das suas crónicas neste jornal (Público, 21 de Julho), exprimiu com eloquência insuperável o “horror”, o “medo” e o “nojo” que nele causaram “as infinitas torpezas da ‘revolução’”, a provar o “primitivismo de um povo e a irremediável vilania de uma cultura”.

Atitude de direita tanto mais evidente quando lhe falta poder de encaixe. Em qualquer país evoluído, a burguesia já teria mais que tempo para digerir e arrumar com louvor numa prateleira inofensiva os episódios do “poder popular”, cobrindo-os de uma “patine” poética, anulando-os pela recuperação. Aqui não. O rancor, o medo, a vergonha explodem de cada vez que se fala na “revolução”.

E até mesmo os que se pretendem mais pluralistas recusam falar do essencial desse movimento, por sinal a coisa mais importante que aconteceu a Portugal nos tempos modernos. Só isto: milhões que tinham vivido de joelhos durante meio século de ditadura, não se contentaram em que lhes dissessem que eram livres e quiseram realizar a sua própria ideia de liberdade, experimentar a ser algo mais do que vendedores de força de trabalho, dar voz sobre a política e a gestão das empresas, ser cidadãos, mesmo — e ao fazê-lo (com extraordinária moderação, bondade, vacilação) sacudiram relações e hábitos sociais petrificados e deram um piparote à burguesia. E por aí se ficou a “revolução”.

O mais cómico é que, com quanto maior eloquência os cronistas tentam transmitir os excessos do “terror anarco-populista” e a epopeia dos resistentes da “democracia”, melhor mostram a sua tacanhez de espírito, a mesquinhez das suas vivências, o cagarola apego pequeno-bruguês à ordem estabelecida.

Foi saqueada (e muito bem!) a embaixada de um país fascista que acabara de garrotar cinco revolucionários? Destruição selvática! Soldados sentados na messe dos oficiais, discutindo política? Anarquia! República das bananas! (Agora, felizmente, já não somos república das bananas...). Os mutilados da guerra saindo para a rua nas suas cadeiras de rodas para se fazerem lembrados? Horribilismo macabro! Operários irritados com um governo que os engana descaradamente montando cerco à Assembleia para que lhes aprovem o malfadado aumento duns tostões no salário? Aí, temos direito ao fogo de artifício todo: o calvário dessas 20 horas 20, em que os eleitos do país estiveram sequestrados; a angústia da incerteza; as sandes para matar a fome; os espíritos cultivados sofrendo o ultraje dos apupos da populaça ignara...

Francamente, só desejo que os testemunhos involuntariamente hilariantes sobre a epopeia dos “combatentes da liberdade” no Verão de 75 sejam recolhidos numa antologia. Seria uma pena perderem-se. Dão um retrato devastador da classe que governa este país.

Seja como for, apesar do ridículo disto tudo, não se pode duvidar da sinceridade com que é dito. O pavor das pessoas de bem foi real. E compreende-se: não aconteceu nada, mas podia ter acontecido. E isso que lhes é intolerável — a ideia de que, por um momento, estiveram à mercê da rua. E ainda hoje sentem pele de galinha ao recordar esses dias, agora que dominam com mestria o baralho de cartas da democracia, e estão seguros de que todas as combinações possíveis de votos livres e soberanos não virão pôr em causa a ordem e a propriedade.

Esse pavor retrospectivo cega tanto que ainda há que insista em procurar os cabecilhas e aponte com rancor os dirigentes do PCP. É uma injustiça histórica para o PCP, que seguiu o movimento porque era a única maneira de não perder mão nos trabalhadores. Coitado do PCP! É agora, manso e colaborante, que ele é igual a si próprio, não no tempo em que esbracejava pelo “avanço da revolução”.

Mas esta necessidade de descobrir cabecilhas tem a sua lógica. A burguesia precisa de acreditar que havia forças ocultas a manipular os trabalhadores porque não se conforma com a ideia de que o vulgar homem da rua, pacato e resignado, pudesse acumular em si todo o realíssimo desprezo que manifestou naqueles dias pelas pessoas de propriedade, pelas normas da lei, pelos princípios indiscutíveis.

É duro demais para acreditar. A burguesia portuguesa interiorizou de tal maneira a imagem do “nosso bom povo” que lhe era oferecida pelo casulo protector do salazarismo (por favor, não me venham com a velha história de que Salazar governava “contra todo o país”...), que ficou sem nervos para encarar a realidade — o nojo que o povo pode acumular contra os que vivem legal e democraticamente às suas costas. E, no entanto, é verdade.


Inclusão 21/08/2019