Congresso Unanimista

Francisco Martins Rodrigues

27 de Maio de 1990


Primeira Edição: Público, 27 de Maio de 1990

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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Todos ficaram contentes com o Congresso. Desapontados só ficaram os que sonhavam com uma desintegração fulgurante do “cunhalismo”.

Mas esses não tinham em conta a vitalidade que, apesar de tudo, advém ao PCP do seu papel social.

Finalmente, todos ficaram contentes com o Congresso. Álvaro Cunhal pôde rever-se ainda uma vez na “floresta dos cartões vermelhos” a aprovar as suas teses. Os delegados saíram aliviados pela assimilação das “três causas” e dos “cinco traços negativos”, convencidos de que afinal tudo vai acabar bem. Os dissidentes ficaram aliviados também, porque não desgostam do novo secretário-adjunto e, francamente, não se sentem com pachorra para fazer um partido novo. Até o PS ficou contente, porque lhe calha melhor um PCP que já conhece, e que espera ir devorando devagarinho, do que uma espécie de nova FSP a mexer com as suas bases.

Desapontados só ficaram os que sonhavam com uma desintegração fulgurante do “cunhalismo”. Mas esses não tinham em conta a vitalidade que, apesar de tudo, advém ao PCP do seu papel social.

É claro que as teses laboriosamente passajadas por Álvaro Cunhal não têm ponta por onde se lhes pegue; são uma trincheira de recurso, feita de tábuas, que a vida vai derrubar em pouco tempo. Prometer que a “perestroika” vai trazer a “reconstituição do poder dos sovietes”, nesta altura do campeonato, é quase comovente. Propor ao PS uma novíssima “alternativa democrática”, quando o mais seguro era fugir dele a sete pés, parece vocação suicida.

E as justificações de Cunhal para a sua lei interna unanimista? Vão ficando tanto mais caricatas quanto mais bem explicadas. Alegar que os dissidentes não conseguiram votos para ir ao Congresso não é confessar que os círculos eleitorais no partido foram tão sabiamente recortados como os que o prof. Cavaco quer recortar para o país? Condenar o confronto de teses como uma “guerra de barões” significa que Lenine, Trotsky e Bukharine, ao levarem as suas plataformas ao congresso do partido bolchevique se comportavam como “barões”? Pôr a resolução política no altar do “colectivo”, porque acolheu centenas de emendas, não é iludir que não houve nenhuma opção?

Mas estas fragilidades todas sustentam-se porque servem uma necessidade social: a daqueles trabalhadores que atravessaram a resistência ao fascismo, o ano de 75 e a “defesa das conquistas” e que, de tudo isso, criaram uma corrente e tiraram uma conclusão — sabem que não querem ser socialistas, “essa cambada de trampolineiros que nos venderam aos capitalistas e aos americanos”.

Só a ideia de ter que escolher entre Cunhal e Vital lhes parece ridícula: têm orgulho em ser qualquer coisa, iam agora tomar-se sociais-democratas?

Este é o seu lado forte. Mas têm o lado fraco — a ideia de revoluções com tiros para expropriar a burguesia parece-lhes uma loucura. E então não lhes resta outra alternativa senão doutrinarem esse PS que desprezam, a ver se ele lhes dá boleia para o Governo; contemplarem o modelo da URSS, para não perder a fé na viabilidade do socialismo; e, já que não sabem atacar o mundo exterior, defenderem-se fechados no unanimismo. É a isto que chamam “marxismo leninismo”, “centralismo democrático”, “comunismo”.

Até quando pode durar este equívoco? Até o capitalismo português pulverizar velhas relações sociais, o que ainda pode demorar o seu tempo. Afinal, este “comunismo” reformista é o contraponto operário a uma burguesia tão lazarenta que, durante meio século, reverenciou o grande estadista Botas de Santa Comba e anda agora à procura da sua identidade em África e nas procissões quando o povo deu um espirro, saltou pelas janelas em pânico.

Tenho cá o pressentimento de que os sujeitos que por aí andam enfadados por o “cunhalismo” não acabar, ainda vão ter saudades dele quando virem o que vem a seguir.


Inclusão 18/08/2019