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Francisco Martins Rodrigues

Fevereiro de 1989


Primeira Edição: Política Operária nº 18, Jan-Fev 1989

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


“Como é que os operários mantiveram a confiança nos chefes do PCP mesmo depois de eles terem capitulado vergonhosamente em 75 com a desculpa de que não se podia romper a aliança Povo-MFA?” — pergunta, inconformado, um velho camarada da corrente ML. “Não deveríamos reconhecer que o nosso movimento operário é reformista por tendência?”

A atitude pode parecer muito radical mas acho que encobre uma fuga à autocrítica. Fomos nós, extrema-esquerda, que permitimos que a rendição de Cunhal em 75 não se revelasse aos olhos da classe operária como uma traição aberta. E por isso estamos a pagar há 14 anos com este longo eclipse da esquerda.

No Outono de 75, todos os grupos da “esquerda revolucionária”, do MES à LUAR, da UDP ao PRP, balançavam à toa entre a contra-revolução “democrática” do PS, a capitulação gesticulante do PCP e o putchismo folclórico da “esquerda militar”. Havia aspectos muito positivos em quase todos os grupos e havia um bom trabalho de massas. Mas nenhum deles tinha solidez teórica e de classe suficiente para se desprender desse triângulo pequeno-burguês e aglutinar uma vanguarda operária em torno da tarefa do momento — levantar as massas de trabalhadores e soldados contra a conspiração da direita, enfrentá-la a tiro, porque tinha chegado a hora em que a direita já não podia ser detida com manifestações e plenários.

Esse passo não pôde ser dado porque não havia nenhuma força capaz de o dar. Se alguns tinham previsto o desenlace clássico que ia ter a “revolução dos cravos”, o certo é que ninguém tivera a coerência de se preparar para ele. Nestas condições, culpar a classe operária é absurdo. Os operários começaram por depositar a sua confiança, como era inevitável, nos partidos reformistas e nos militares reformistas, que apareciam como os doadores da liberdade e da paz. Mas quando acabou a lua-de-mel “democrático-popular” e veio ao de cima a incurável cobardia e duplicidade dos reformistas para concretizar a tão falada “revolução” — quando chegou a hora de passar à segunda etapa, não estava lá nenhum partido revolucionário para recolher a cólera da vanguarda e dar o passo seguinte. Esta é a questão; Cunhal cumpriu a sua missão; nós não cumprimos a nossa.

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O nosso problema: somos lidos por pessoas com simpatias de esquerda que não querem desistir e que esperam encontrar na nossa revista argumentos para fortalecer as suas convicções. Em vez disso, deparam com uma crítica cerrada, destrutiva, a toda a “esquerda real”, em nome dos princípios duma esquerda ideal, que não existe. Não é de estranhar que se sintam desorientadas, frustradas, logradas, e nos perguntem se afinal queremos agrupar forças contra a direita ou se queremos agravar ainda mais a confusão.

— Sim, queremos aumentar a confusão nas vossas cabeças, porque é essa a única esperança de que acabem por perceber que ser de esquerda não é ser evolucionista, progressista, pacifista, utopista. Com isso pode o capitalismo bem. Ser de esquerda é preparar a grande derrocada do sistema de compra e venda da força de trabalho; é criar as condições sociais para que a exploração do homem pelo homem seja punida como crime; é odiar o poder burguês sobre todas as coisas; não é cozinhar emplastros para pôr por cima do cancro.

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A questão da pequena burguesia aparece cada vez mais como um revelador, um separador entre revolução e reformismo. Experimentem dizer que os interesses operários não são iguais aos da pequena burguesia; que a nata dos operários-técnicos, engordados com bons salários, abafa e sabota a revolta dos de baixo; que os engenheiros não são os “novos operários”, mas polícias dos operários; que para dar rumo certo à luta é precisa a hegemonia do proletariado sobre as restantes classes populares — e imediatamente vos saltarão em cima, não apenas o PS, não apenas o PCP, mas também praticamente toda a “extrema-esquerda”, todos preocupadíssimos em “não isolar a classe operária dos seus aliados”, essa exigência do bom senso elementar que só os loucos desprezariam.

Só não explicam como pode alguém estabelecer uma aliança se não tiver claro primeiro aquilo que é e aquilo que não é. Aqui para nós, vocês receiam que a classe operária se isole ou receiam que descubra que é uma classe com interesses próprios, diferentes? Querem que a classe operária tenha aliados ou querem que ela seja o vosso aliado às ordens?

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Hoje em dia, não há nada mais simpático na esquerda do que dizer-se desiludido com a podridão dos partidos e defensor da “autonomia das bases”, da “democracia sem açaimos”, etc. Paleio insuportável! Já se descobriu alguma maneira de uma classe se exprimir com autonomia face às outras classes se não for por intermédio dessa armadura que se chama um partido político?

Opor-se à formação dum partido operário revolucionário, democrático e centralizado, em nome do “anti-autoritarismo” não equivale a mutilar a classe da sua forma de expressão política, vedar-lhe o direito a cristalizar-se numa força de ataque, reduzi-la à impotência? O vosso culto altruísta pela autonomia não resulta afinal na defesa da servidão para uma classe operária decapitada?


Inclusão 06/09/2018