Agonia do Abrilismo: Processo FUP/FP-25

Francisco Martins Rodrigues

Maio/Junho de 1987


Primeira Edição: Política Operária nº 10, Mai-Jun 1987

Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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O silêncio quase generalizado que acolheu a sentença de 500 anos de prisão para os réus de Monsanto indica que muita coisa mudou em Portugal.

Às vezes, os acontecimentos políticos mais carregados de significado e de consequências passam quase despercebidos e só vêm a mostrar a sua envergadura anos mais tarde. Foi, parece-nos, o que se deu com a sentença do caso FUP/FP-25, que não suscitou qualquer sobressalto na opinião publica e passou como um episódio banal, mais ou menos previsto, merecendo, quando muito, repa­ros marginais à condução do processo e um ou outro comentário compadecido à má sina de Otelo.

Há contudo aspectos singulares neste caso de polícia:

O caso FUP/FP-25 funcionou assim como um revelador da correlação das forças sociais. Treze anos após o 25 de Abril, é a direita que julga e condena a esquerda à sombra das instituições. Como no tempo do fascismo. Com uma diferença, porém — é que agora a repressão conta com o consenso da oposição democrática e da massa da população.

“Terrorismo”

Este facto incontestável é geralmente oculto atrás de um sofisma. O caso, diz-se, não pode servir de critério porque não é tipicamente político. Fossem quais fossem as irregularidades do processo, é convicção geral que os réus estavam associados de uma forma ou de outra às FP-25. “O que se esperava que o tribunal fizesse perante uma organização que assalta bancos, põe bombas e mata pessoas, em regime democrático? Se Otelo não teve cabeça, de que se queixa? Foi ele, com a sua irresponsabilidade, que permitiu à direita marcar pontos”.

É uma lógica podre duma ponta à outra. Mesmo que aceitássemos como boa a prova feita em tribunal, mesmo que levássemos a sério a teoria das liberdades democráticas em capitalismo, teríamos que perguntar pode-se com um mínimo de decência condenar alguém em Portugal por ‘associação terrorista’ quando Spínola é marechal, os pides publicam livros de memórias, um bombista encartado é inspector da Judiciária e oficiais do exército contratam pistoleiros para fazer terrorismo em Espanha? Alguém está a cumprir pena pelas mortes de Luís Caracol, assassinado à pancada em pleno dia, na rua, do padre Maximino de Sousa e Maria de Lourdes, despedaçados à bomba, de José Jorge Morais, Joaquim Palminha, Casquinha e Caravela, abatidos a tiro? Quem vai pagar pela selvajaria diária da PSP e da GNR de que Barqueiros é apenas o ultimo exemplo?

As “forças democráticas”, ao condenar a violência, venha ela donde vier”, fingem não notar esta diferença — que o regime reprime a violência de esquerda e protege a violência de direita Procedem assim, não por ingenuidade humanitária, mas guiando-se por um cálculo tortuoso a violência da direita deve ser moralmente condenada mas não castigada, “porque isso iria dar argumentos à direita”: mas a violência de esquerda deve ser reprimida sem contemplações, “para não dar argumentos à direita”… O que isto significa é a cumplicidade com uma efectiva ditadura da direita, a coberto da defesa da democracia.

A necessidade de cumprir a lei contra os presos do caso FUP/FP-25 não passa dum pretexto descarado. A verdade nua e crua é que Otelo, Goulart, Gobern Lopes, etc. são condenados como activistas da esquerda, e os outros são poupados, como activistas da direita. O “Estado de Direito” é o Estado da direita. O resto são histórias para papalvos.

“Provocação”

O que está em causa quando se nega solidariedade aos presos deste processo não é a discordância quanto aos métodos de luta mas uma questão política.

Tem sido dito que, com a condenação de Otelo, “foi o 25 de Abril que foi condenado”: compara-se o tribunal de Monsanto aos antigos tribunais plenários e os presos do caso FUP/FP-25 aos antigos presos políticos antifascistas. Mas isto encobre o fundo da questão.

Porque é que os antigos presos políticos tinham a solidariedade da oposição democrática (aliás, muito mais limitada do que hoje se pretende fazer crer) e os actuais presos políticos não podem contar com essa solidariedade? Porque a luta para passar do fascismo à democracia era vista como uma “causa nobre”. Mas toda a luta que ponha em causa esta democracia para passar ao socialismo é vista como uma “loucura” ou uma “provocação”.

Dito por outras palavras: os democratas, mesmo os que se situam mais à esquerda, como os do PCP e da UDP, não alinham em nada que pretenda passar para além desta democracia. Chegaram ao regime dos seus sonhos e estão para ficar.

É claro que isto não pode ser confessado por partidos que se fazem acreditar como os arautos (ordeiros) da luta pelo socialismo. Eles têm que encontrar “razões de peso” para se dessolidarizarem. E como não basta invocar divergências quanto aos métodos de luta (porque isso não impediria logicamente a solidariedade) é preciso concorrer com a direita na invenção de calúnias que façam o vazio à volta dos presos.

É o que faz com arte consumada o PCP, pondo a circular internamente as histórias mais incríveis para desacreditar os presos e limitando no Avante a informação do julgamento a três linhas em letra miúda no resumo das notícias da semana.

É o que faz o PC(R), com menos habilidade ou mais descarado cinismo, ao dedicar uma pagina do seu jornal a exaltar Otelo como bom democrata e vitima da burguesia, para acrescentar que “as FP não passam duma organização provocatória criada pelos serviços policiais secretos com o objectivo de desorientar a luta dos trabalhadores” (Bandeira Vermelha, 28/5/87). Como é que “provocadores” apanham penas de 15 anos é pormenor que, pelos vistos, não incomoda esta gente.

Separar Otelo, “idealista generoso mas ingénuo”, dos restantes presos, degradados à condição de provocadores, é o estratagema a que estão a deitar mão todos os reformistas, para disfarçar a sua submissão ao regime.

Isolamento

Uma coisa é certa: este festival de baixeza só é possível porque a esmagadora maioria da opinião operária e popular nunca aderiu ao “Projecto Global” de Otelo nem aos atentados das FP-25, não se viu representada neles, encarou-os sempre com desconfiança e mesmo com hostilidade

E isto conduz-nos ao erro político de fundo do vanguardismo guerrilheirista já anteriormente discutido nas páginas desta revista. As FP-25 e aqueles que de algum modo as apoiaram sofrem as consequências de terem aferido o estado de espírito das massas pela sua própria indignação. Julgavam que, para passar da débil resistência actual a uma nova ofensiva, bastava galvanizar o povo com acções exemplares, mas enganaram-se. Pensavam poder suscitar um amplo apoio à luta pela subversão das instituições cobrindo-a com a bandeira unitária do 25 de Abril, mas os cálculos saíram-lhes errados E erros destes pagam-se caro.

Porquê? Porque o quadro político da luta de classes actual já não tem nada a ver com o do tempo do fascismo nem mesmo com o de 1974-75. O 25 de Novembro é irreversível, tal como o 25 de Abril. O que se coloca agora é a luta directa e declarada pela revolução socialista, e essa tem que acumular forças num processo demorado de propaganda, agitação e organização. Pretender queimar etapas e superar o atraso em que nos encontramos com exibições de vanguardismo voluntarista redunda apenas em desgaste de forças e dá novos trunfos à direita.

Não haja dúvidas de que as forças do capital vão utilizar a sentença de 20 de Maio e a indiferença com que foi acolhida como catapulta para novos avanços, nas eleições e para além delas.

CEE Não São só Empréstimos

Aqueles que pensavam estar perante mais um julgamento-opereta, como o do caso PRP, avaliavam mal os passos feitos nos últimos anos na consolidação reaccionária das instituições. Sobretudo depois da adesão à CEE.

Não é exagero dizer que, com a sentença de 20 de Maio, Portugal deu o último passo que lhe faltava para entrar na Europa unida. Ao aplicar aos presos uma punição exemplar, o tribunal de Monsanto não fez mais do que corresponder às exigências impacientes da burguesia portuguesa e internacional, que está farta de dizer que precisa de garantias sérias para um investimento a sério.

Para o capital, os salários em atraso, os contratos a prazo, o trabalho infantil, a pasmaceira sindical, são sem dúvida estímulos interessantes — mas insuficientes enquanto não forem erradicados todos os vestígios da bagunça de 75 e garantida a autoridade do Estado. O que significa uma exigência muito concreta: que se demonstre capacidade repressiva.

Neste aspecto, o processo das FP-25 veio na altura própria. Porque, embora os atentados não envolvessem qualquer ameaça revolucionária, eram uma fonte de sobressalto que punha a ridículo a força do Estado. A partir de agora, Portugal pode orgulhar-se de enfileirar garbosamente ao lado da Alemanha Federal, da Itália, Espanha e França, na política de mão dura contra as veleidades guerrilheiristas de esquerda. Acabaram-se os complexos abrilistas neste ponto, como em tantos outros. Os governantes já vão poder falar de cabeça levantada com os parceiros da CEE e dos EUA. Já não se sentem motivo de chacota internacional. “Portugal começa finalmente a pôr a sua casa em ordem” — eis o que será reconhecido pelos capitalistas de todo o mundo.

E isto significa, uma vez mais, que uma luta real pela revolução socialista não se compadece com precipitações aventureiras, resto das ingénuas euforias de Abril. É uma luta de longo fôlego contra um inimigo determinado e implacável, escorado na burguesia imperialista. Só pode ser conduzida por uma vanguarda igualmente determinada e implacável — e que tenha a coragem política de se lançar a ganhar gradualmente para o seu lado a massa operária e popular, hoje apática, descrente e derrotada.

Dupla Derrota

Avaliando mal a hostilidade de toda a burguesia e a desconfiança da população face ao “Projecto Global” e às FP-25, a maioria dos presos conduziu a sua defesa em tribunal numa perspectiva oportunista, que veio somar uma derrota política a derrota organizativa sofrida com as prisões. Importa dizê-lo sem sentimentalismos para que essa dupla derrota não se agrave ainda mais na fase de recurso em que o processo entrou.

Desmantelada pela polícia a sua actividade, arrastados perante o tribunal como vulgares bandoleiros, incumbia aos presos o dever de todo o revolucionário face ao inimigo — usar a tribuna do julgamento para expor directamente, por cima das cabeças dos juízes, os argumentos da sua revolta fazer declarações politicas que pusessem em causa o próprio regime. Em vez disso, a grande maioria dos presos tentou refugiar-se na denuncia das ilegalidades do processo, cingindo-se a tarefa que competia aos advogados. Para se furtar às suas responsabilidades políticas e fazer-se passar por vitimas gratuitas duma perseguição maquiavélica, centraram o debate nas acusações forjadas com a cumplicidade dos arrependidos”, omitiram os seus objectivos revolucionários, enredaram-se em explicações humilhantes e agravaram o seu descrédito político sem qualquer contrapartida

Pior ainda as declarações políticas feitas durante o julgamento limitaram-se a assegurar que o único objectivo do “Projecto Global” era bater-se em defesa do regime no caso dum golpe fascista. Na situação que se vive há vários anos em Portugal, isto torna-se ridículo porque toda a gente sabe que o regime não e ameaçado pela extrema direita, a que tem vindo a ligar-se por uma teia apertada de cumplicidades.

Os presos perderam assim em todas as frentes junto dos trabalhadores de vanguarda, que só poderiam ser ganhos por uma denúncia frontal do próprio regime; junto da massa da população, que se manteve céptica quanto à sua inocência; junto dos juízes e do poder, que obviamente não quiseram saber de legalismos e foram implacáveis na aplicação das sentenças já programadas; e junto da oposição democrática, insensível a apelos antifascistas e preocupada em demonstrar a sua respeitabilidade.

Otelo sobretudo deu com este julgamento um espectáculo lamentável de abdicação e vacilação, que comprometeu mais ainda a sua imagem já tão abalada de líder popular de esquerda. É sua a principal responsabilidade na tónica conciliatória e legalista que assumiu o julgamento. Deixou-se julgar e condenar quando deveria ser ele a julgar e condenar o regime.

Por isso, esta foi talvez a mais grave das muitas oscilações políticas de Otelo. Dizemo-lo sem perder de vista o apreço por tudo o que de corajoso e positivo tem tido a sua carreira de militante.

A Agonia do “Abrilismo”

A posição dúbia e frouxa assumida em Monsanto pela maioria dos réus não resultou de uma vacilação táctica momentânea, que até seria compreensível, embora criticável. Espelha as contradições da sua própria linha política. E é isto que interessa discutir, porque ela é um condensado de todas as fraquezas crónicas da nossa esquerda radical.

Os activistas do caso FUP/FP-25 não entenderam a situação política, antes e depois da sua prisão, porque, embora falem muito na revolução socialista, têm dela a mesma visão deformada que herdaram do PRP e do Verão de 75. É a descrença de que uma força política possa algum dia chegar a unir as massas na insurreição e no assalto ao poder. É o sentimento de inferioridade perante a capacidade dos reformistas para manter as massas sob seu controlo. É a impaciência perante o trabalho árduo de educação política da classe operária através da sua própria experiência. É uma secreta esperança de que tudo poderia ser abreviado se a vanguarda se lançasse em acções ousadas que pusessem as massas em ebulição e, por interméio delas, precipitassem uma sublevação dos sectores esquerdistas das forças armadas.

E esta esperança no papel decisivo dos quartéis de esquerda é o traço mais típico do revolucionarismo pequeno-burguês em Portugal. Revolucionarismo por vezes exacerbado, mas sempre impotente porque privado de estratégia própria.

Passar da audácia vanguardista suicida à timidez e ao abatimento; dos apelos insurreccionais irreflectidos à busca precipitada de compromissos; da denúncia “irrevogável” do regime à invocação das leis do regime — tudo isto são atitudes típicas desse revolucionarismo pequeno-burguês, que tiveram a sua máxima expressão no desgraçado Outono de 75 e que sobreviveram até hoje agrupados em torno de Otelo.

De qualquer modo, agora é tarde. Esse revolucionarismo fanfarrão só assustou a burguesia e empolgou o proletariado enquanto um e outro não descobriram a sua incapacidade interna para chegar a batalhas decisivas.

O processo do caso FUP/FP-25 foi o processo desse revolucionarismo, que teimou em sobreviver ao seu próprio fracasso histórico. Que esse projecto pequeno-burguês tenha sido assumido convictamente por tantos operários com fibra de lutadores, eis o que nos dá a medida do atraso da revolução. Esperemos que possam dar o balanço da sua experiência e encetar vias novas de mais efectivo combate a burguesia.

Contra a Repressão

A luta pela libertação de todos os presos políticos (e não apenas de Otelo) coloca-se como um dever de todas as organizações e pessoas de esquerda. Todos os que iludirem essa responsabilidade com desculpas ideológicas estarão a apoiar de facto a reconstituição da capacidade repressiva do Estado burguês.

Pela nossa parte, temos claro que as críticas políticas que fazemos a Otelo e aos seus companheiros não podem ser pretexto para nos furtarmos ao dever de solidariedade para com revolucionários vítimas da repressão. Daremos todo o apoio que estiver ao nosso alcance para que se alargue o âmbito do comité “Solidariedade Contra a Repressão” e de outros, já existentes, ou que venham a formar-se. Esforçar-nos-emos por que a sua acção tome cada vez mais o carácter de uma campanha de agitação de massas e não de simples mobilização de personalidades.

Sabemos pela experiência do tempo do fascismo que esta frente de luta pode contribuir poderosamente para acordar a consciência operária e popular, revelando-lhe as mentiras em que assenta a legalidade da burguesia.


Inclusão 05/07/2018