Pregação no Deserto

Francisco Martins Rodrigues

Abril de 1987


Primeira Edição: Política Operária nº 9, Mar-Abr 1987

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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AFRIQUE—ASIE. Destaque no n.° 394 (23 Fevereiro a 8 Março) para uma entrevista com Samir Amin que expõe a tese da sua última obra, La Déconnexion, a “desconexão”, termo algo arrevezado com que designa a sua proposta de uma nova estratégia para os países do Terceiro Mundo.

Em resumo, Amin regista a morte sem apelo da era de Bandung, que durante vinte anos (1955-1975) permitiu aos movimentos de libertação aproveitar a prosperidade e expansão do capitalismo para regatear condições mais vantajosas na exportação de matérias primas, poupando os custos de uma ruptura com o imperialismo e com a sua própria burguesia intermediária.

Hoje, essa conjuntura favorável é só uma recordação. O reforço da hegemonia americana, apoiada no garrote do FMI, a ofensiva ocidental sem precedentes, a inconsistência do apoio soviético, que há 30 anos se julgava ilimitado, deixaram esses países à mercê do neocolonialismo. Outrora, as burguesias nacionais batiam-se pelo controlo das matérias primas, pela nacionalização das minas, pela soberania sobre os seus recursos nacionais; hoje, vêem-se forçadas a suplicar aos países ocidentais que lhes comprem essas mesmas matérias primas “a preços de saldo”.

Que fazer? A desconexão consistiria na “submissão das relações externas, não apenas económicas mas também políticas, culturais, militares, aos imperativos de um desenvolvimento nacional e popular”. O que seria possível pela aliança de interesses sociais diversos, que se exprimem nas tendências socialista, capitalista nacional e estatizante. Aliança formada em torno de uma plataforma comum nacional e popular, nem socialista (o que Amin considera ainda fora do horizonte) nem capitalista dependente. Em sua opinião, a Nicarágua e a Etiópia constituem dois exemplos possíveis desta via.

A “desconexão” tornar-se-ia possível em África se se convencesse a fracção revolucionária da intelectualidade a distanciar-se da ideologia já ultrapassada da libertação nacional e a deixar de contemporizar com a burguesia “compradora”. Assim poderia ganhar o apoio popular indispensável para levar a cabo uma série de reformas.

O que torna utópica a estratégia proposta por Samir Amin é a suposição de que as burguesias nacionais do Terceiro Mundo possam liderar uma combinação de forças apontada contra o imperialismo. Há exemplos de sobra a mostrar que uma viragem “progressista” de certas fracções da burguesia só surge quando elas são empurradas para cima pela luta das massas assalariadas. E estas, para desempenharem um papel activo, precisam de muito mais do que uma estratégia de compromisso “nacional e popular ”.

Samir Amin, como tantos outros marxistas transviados dos nossos dias, erra o alvo das suas preocupações. O seu trabalho pedagógico junto das burguesias nacionalistas é pregação no deserto. Que vai deixando oculta a grande omissão — a emancipação revolucionária das massas proletárias. Em África como em todo o mundo.


Inclusão 06/09/2018