Medo

Francisco Martins Rodrigues

3 de Novembro de 1982


Primeira Edição: Em Marcha, 3 de Novembro de 1982

Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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“O 30 de Outubro é o dia da liberdade para os portugueses”. Assim o prof. Freitas lançou a última pazada de terra sobre o Conselho da Revolução, numa desforra exultante de velhas humilhações. Lá diz o ditado: o leão, depois de velho, até do burro leva coices.

Mesmo assim, o leão ainda deu um último rugido. Depois dos discursos e das lágrimas que são da praxe nestas coisas, os conselheiros da Revolução meteram-se em brios e atiraram cá para fora o comunicado mais radical da sua vida. “Ameaças sombrias de reconstituição de um modelo económico ultrapassado”, “crescente recuperação de antigos privilégios”, “perigos de um regime autoritário e antidemocrático”, “manobrismo intriguista, cinismo e hipocrisia”.

Nunca as mãos lhes doam, conselheiros. Mais vale tarde do que nunca. Mas, já agora, porquê só tão tarde?

“Comportámo-nos como cordeiros no meio de lobos”, explicou com simpática franqueza o capitão Marques Júnior. “Sofremos de excesso de modéstia”, adiantou do lado um colega. “Tivemos um grande desapego ao poder”, confessou outro.

Assim, os homens que assumiram a chefia de uma Revolução (com maiúsculas) deixam-se pôr na rua aos empurrões por aqueles a quem deviam meter na ordem e explicam o facto insólito passando a si próprios um atestado de pobres diabos. Há que concordar que, mesmo no brando Portugal, é maravilha demasiada. A coisa tem que ser outra.

A coisa é que os conselheiros tiveram medo. Não medo pessoal de se bater com a direita, entendamo-nos. Mas medo de que uma radicalização da luta contra a direita fizesse saltar a arraia miúda dos carris da ordem e das instituições. Medo da revolução que teoricamente deveriam fazer.

Por isso, fizeram o golpe de 25 de Novembro contra a esquerda. Por isso, conciliaram e pactuaram a favor da direita. Por isso, terminam os seus dias ainda alarmados com a “descrença perigosa no funcionamento das instituições democráticas”. Porque sabem que dessa descrença tanto se faz apoio passivo a um regime de direita como decisão activa de lutar por um regime de esquerda.

Este conselho de opereta da Revolução que não houve é o retrato em corpo inteiro da nossa burguesia liberal, ultrapassada, medrosa, ansiosa por um equilíbrio que o pais não suporta.

Com o seu acesso de radicalismo póstumo, os conselheiros tentaram redimir sete anos de vacilação. Mas o que está feito já não pode ser apagado. A direita está no poder. Chegará o dia em que um verdadeiro conselho de uma verdadeira revolução esmagará a direita. Sem medo.


Observação: Tiro ao Alvo - Coluna de FMR no jornal Em Marcha e no jornal Política Operária

Inclusão 03/02/2019