“Caminho do 25 de Abril do Povo” — O Germe do Oportunismo

Francisco Martins Rodrigues

4 de Outubro de 1982


Primeira Edição: Tribuna do Congresso nº 5, 4 de Outubro de 1982

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Lê-se no informe político do CC:

“O PC(R), tal como assinalaram o 2° e 3º Congressos, mantêm viva a possibilidade de, no decurso de uma nova ofensiva de massas, se criarem as condições para a imposição de um governo de características populares, antifascistas, patrióticas e revolucionárias. Tal governo de unidade popular poderá ser um degrau transitório no processo revolucionário em desenvolvimento, rumo à democracia popular e ao socialismo”.

Está aqui resumido aquilo a que o 2° Congresso chamou o “caminho do 25 de Abril do povo” e que ocupa de facto o centro da política e da táctica do nosso Partido. Saber se o Partido se deve manter ou não neste caminho é a questão-chave de todo o debate para o 4° Congresso.

Na carta que enviei em Abril ao CC, afirmo que o caminho do 25 de Abril do povo deve ser criticado e abandonado. Porquê? Porque é um caminho que não existe na vida real e que foi imaginado na esperança de atrair a pequena burguesia à custa da independência operária. Como o CC reçusa levar a minha carta ao conhecimento do Partido (nem a minha actual célula foi até agora autorizada a lê-la!), sou forçado a resumir aqui os principais argumentos sobre esta questão.

O que significa esta ideia do Governo de Unidade Popular como um “degrau transitório”? Significa, como todos sabem, que este governo não será o órgão de uma insurreição popular, não se apoiará num exército revolucionário, em milícias populares, em tribunais revolucionários, etc. O governo de unidade popular assentará numa democratização do Estado burguês sob a pressão do movimento de massas, como está bem apresso nas bases do seu programa: a livre iniciativa dos órgãos de vontade popular, o controle operário, as comissões de soldados, imporão a democracia nas Forças Armadas, a depuração das polícias, o saneamento dos reaccionários. O Governo de Unidade Popular é um governo de transição numa situação intermédia em que coexistem embriões de poder operário e popular com o Estado burguês.

Surge desde logo a pergunta: quando o ascenso do movimento operário e popular tentar impor esse governo, não é de prever que o poder novembrista responda com a repressão armada? Não é de prever que os partidos burgueses (PCP incluído) vão entrincheirar-se na “legalidade” burguesa contra as exigências e iniciativas revolucionárias dos operários, camponeses e soldados? Não é obrigatório prever, como condição para este Governo de Unidade Popular existir a insurreição popular, a conquista pela força do poder político, a destruição do aparelho de Estado burguês?

A esta pergunta responderam o 2º e 3º Congressos com o argumento de que existe em Portugal uma situação original que não pode ser esquematicamente comparada à dos regimes de democracia burguesa (3° Congresso, pág. 15). A originalidade da situação nacional estaria nas conquistas de Abril, que não poderiam ser pacificamente destruídas pelo regime. Apoiado na Reforma Agrária, nas nacionalizações, nos OVP [órgãos de vontade popular], na Constituição, etc., o movimento popular estaria em condições de fazer evoluir uma nova crise revolucionária para uma nova crise de poder semelhante à de 1975: o Exército e a polícia ficariam paralisados e incapacitados para sufocar o avanço dos trabalhadores. Haveria naturalmente certos choques violentos mas o Governo de Unidade Popular poderia subir ao poder sem necessidade de um confronto armado em que a revolução esmagasse a contra-revoluçào.

Em 1977, quando do 2° Congresso, ainda podíamos acreditar na viabilidade deste caminho. A vida tem vindo contudo a demonstrar que ele não tem fundamento. As conquistas de Abril estão a ser asfixiadas e gradualmente destruídas pelo regime novembrista. O aparelho de Estado e as forças repressivas recompõem-se. A luta operária e popular poderá abrir uma nova crise revolucionária num prazo não muito distante. Mas nada indica que essa crise possa desembocar numa nova crise de poder sem luta insurreccional. Nada indica a possibilidade de um governo de transição.

A isto poderá contestar-se que em 1974-75 o movimento popular pacífico teve força para produzir uma crise de poder — quem nos diz que uma situação semelhante não se repetirá amanhã? Este argumento esquece que a crise de poder de 1975 foi fruto não apenas das movimentações populares mas da luta insurreccional dos povos das antigas colónias, que conduziram o Estado e os altos comandos ao descalabro. A crise de poder de 1975 não foi uma excepção pacífica.

Mas — dir-se-á ainda — se, apesar de tudo, em condições imprevisíveis, viesse a repetir-se pacificamente essa crise de poder, iríamos desperdiçar a possibilidade de instaurar um governo de transição? Com esta pergunta, chegamos ao fundo da questão.

Efectivamente, se amanhã viéssemos a encontrar-nos numa situação semelhante à do Verão de 75, não deveríamos hesitar em lançar a palavra de ordem de um Governo de Unidade Popular como forma de explorar a paralisia do aparelho de Estado e impor novos avanços do movimento revolucionário. Mas seria uma palavra de ordem que só faria sentido na própria altura. O que vem essa palavra de ordem fazer agora na táctica geral do Partido? Então o Partido não prevê nem explica, nem prepara aquilo que é certo, a conquista revolucionária do poder, mas desde já prevê, anuncia, divulga uma eventualidade excepcional que ninguém sabe se surgirá? Então a táctica toda do Partido é edificada na esperança de um milagre?

Porque inventou o 2º Congresso este cenário de uma crise de poder sem luta insurreccional? Pelo mesmo motivo que o levou a tirar brandas lições democráticas da crise de 1974-75: pelo desejo de traçar um quadro da luta de classes aceitável para a pequena burguesia e para as ilusões pequeno-burguesas espalhadas nas massas Pelo receio de enfrentar a resposta brutal que a vida aponta: sem a classe operária se libertar da tutela pequeno-burguesa, sem se dispor a tomar os destinos do país nas suas mãos, sem se lançar numa luta revolucionária encarniçada, não haverá em Portugal nem socialismo, nem democracia popular, nem governo de transição, nem conquistas, nem aliados.

Ao tentar descobrir para a situação nacional uma saída mais acessível, menos assustadora, o 2o Congresso instalou no Partido o germe vivo do oportunismo, a tendência para substituir a ideia da revolução pela ideia “salva­dora” dos degraus transitórios. Ricardo e Melro levaram até às últimas consequências o espírito de transição que inspira a táctica geral do Partido: se o segredo da “táctica de milhões” é saber encontrar degraus, porque não procurar pequenos degraus, ainda mais acessíveis? Aqui se encerra a luta política em que nos vimos debatendo há já cinco anos.

Diz o informe que a perspectiva do Governo de Unidade Popular ajuda as massas a “visualizarem uma saída política”. A verdade é que ela “ajuda” as massas a embalarem-se em ilusões infundadas. Não nos arma para a conquista de um governo de transição nem de um governo insurreccional, mas apenas para sofrer uma grande derrota.

O 4º Congresso deverá proclamar que o regime novembrista, instaurado pela força, só pela força será derrubado. Deverá voltar todos os esforços do Partido para a preparação política da classe operária, de modo a, numa nova crise revolucionária que amadurece, ser capaz de se lançar ao derrube violento do poder burguês. Se iludirmos mais uma vez esta questão-chave, afundaremos a política e a táctica do Partido no oportunismo.


Inclusão 26/08/2018