O Resto é Paisagem

Francisco Martins Rodrigues

29 de Setembro de 1982


Primeira Edição: Em Marcha, 29 de Setembro de 1982

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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Será que o súbito ardor do prof. Freitas pela sua carreira de catedrático encobre uma rasteira para estatelar Balsemão na sarjeta? Será que Eanes tenciona demitir o Governo se o resultado das autárquicas for desfavorável à AD? Será que o partido eanista vai arrancar antes do fim do ano? Será que o congresso do PSD vai aprovar uma sociedade “central” com o PS?

Se os leitores esperam encontrar aqui palpites subtis sobre estas e outras parangonas da grande política, desenganem-se. Confesso a minha incapacidade para competir com os analistas da nossa praça. Não estou por dentro dos segredos da política adulta.

Para dizer a verdade, nem acho que isso faça muita falta. O sumo real da política, espremo-o de assuntos mais modestos. Oiçam por exemplo esta opinião de um industrial, na almoçarada com Luís Morales, ministro do Trabalho (mais valia chamarem-lhe logo ministro dos Patrões): “A nossa democracia está errada porque dá mais direitos aos trabalhadores do que aos empresários”. Não acham soberbo? Ou esta outra, do mesmo almoço: “O que nos preocupa não é o aumento dos desempregados mas a maneira de fazer trabalhar mais os que estão empregados”. Isto sim, é que é política!

Oiçam esta reflexão do ministro Basílio Horta, numa das suas digressões: “Porque é que se pode ter, por exemplo, dez supermercados e não se pode ter propriedades com mais de 70 mil pontos?” Porquê, de facto? Porque podem uns encher-se à tripa forra e outros estão obrigados a limites? Liberdade para todos, não é verdade?

Leiam o projecto de lei da AD sobre a suspensão do contrato de trabalho. As empresas poderão mandar para casa o pessoal que não lhes interesse de momento, por períodos de três meses renováveis, desde que apresentem para tal “razões conjunturais de mercado”, “motivos económicos ou tecnológicos”, ou mesmo só “casos fortuitos ou de força maior”. Estão a ver como se defende o direito democrático dos empresários à sua taxa de lucro?

Quando olhamos a política real por detrás do cenário de papelão pintado da Democracia, logo perdem relevo as guerras de opereta entre os Balsemões, Soares, Freitas e Eanes, logo se agiganta o verdadeiro conflito que move os bonecos: a guerra da burguesia para manter o proletariado submisso e chupar-lhe todo o sangue que puder.

Por isso, a nossa função não é jogar o jogo mas subvertê-lo. Trata-se de puxar o tapete debaixo dos pés dos jogadores. Trata-se de amotinar os operários contra o capital. O resto é paisagem.


Inclusão 22/08/2019