Calamidades

Francisco Martins Rodrigues

23 de Fevereiro de 1981


Primeira Edição: Em Marcha, 23 de Fevereiro de 1981

Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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A seca veio mesmo a calhar para os homens do governo e do capital. A Natureza passou a ser a responsável pelos nossos males.

Os pequenos agricultores que se arruinavam peia carestia dos adubos e do gasóleo, pela ganância dos intermediários, pela falta de créditos, agora passam a vítimas da seca. O governo gostaria de fazer chover se pudesse, mas não pode. Façam preces pela chuva, que remédio!

Enquanto lamentam compungidos o desastre, os homens de negócios esfregam as mãos, deitando contas à vida. No ambiente de calamidade nacional, passa mais despercebido o galope dos preços: sobe o açucar, o azeite, o vinho, as taxas da televisão, impõem-se novas taxas sobre o consumo da electricidade.

Para quem tem capital, oportunidades não faltam: os desgraçados do campo largam ao desbarato a fruta, a batata, o milho, para não perder tudo. Muitos largam a terra de vez por tuta e meia. É aproveitar!

Os patrões da CIP, de dente afiado, já oferecem os seus préstimos para poupar energia: horários alternativos, antecipação compulsiva das férias, laboração aos sábados, domingos e feriados, diminuição das horas de laboração com a devida redução dos salários. É preciso que todos se sacrifiquem, não é verdade?

E os créditos prometidos pelo governo para acudir aos sinistrados fazem crescer a água na boca aos espertos, que sabem como canalizar essas ajudas para os bolsos. Foi assim que a campanha de socorro ao povo mártir dos Açores deu ao fim de um ano centenas de famílias a viver em barracões e algumas boas fortunas.

A seca é boa também para passar à sorrelfa para segundo plano coisas escabrosas.

Gonelha, o pai da UGT, senta-se nas reuniões da Trilateral de Rockfeller com Vasco de Melo e Lucas Pires — mas a seca, isso sim, é que é terrível! Temos em chefe do Estado Maior o general Melo Egídio, que se celebrizou em 1975 como comandante do AM1, que dinamitou a Rádio Renascença — mas o que é isso ao pé da seca? E se temos a triste glória de enfileirar entre os maiores exportadores europeus de prostitutas, talvez isso, no fim de contas, não seja assim tão mau, uma vez que traz divisas ao país e ajuda a compensar os prejuízos da seca...

Na Assembleia, o ambiente é de tréguas, como convém a um momento de desastre nacional. A controvérsia agora é sobre os malefícios do tabaco e do álcool e sobre o civismo nos campos desportivos. A seca já quase produziu a Unidade Nacional.

A seca tem as costas largas. Mas a grande calamidade nacional, a verdadeira, não é essa. Sabem qual é?


Observação: Tiro ao Alvo - Coluna de FMR no jornal Em Marcha e no jornal Política Operária

Inclusão 03/02/2019