Marx & Engels
Curso de Marxismo da Academia de Moscou

David Riazanov


Quinta Conferência
A revolução alemã de 1848. Marx e Engels na Renânia. Fundação da Nova Gazeta Renana. Gottschalk e Willich. A União Operária de Koln. Política e tática da Nova Gazeta Renana. Stephan Born. Mudança na tática de Marx. Derrota da revolução e pontos de vista divergentes na Liga dos Comunistas na divisão.


capa

Estamos na Revolução de Fevereiro. Demonstrei anteriormente que o Manifesto Comunista foi impresso alguns dias antes desta revolução. A organização da Liga dos Comunistas somente foi concluída em novembro de 1847. Esta organização englobava os círculos estrangeiros de Paris, Bruxelas e Londres e se relacionava com alguns pequenos grupos alemães. De forma que as forças organizadas com as quais podiam contar a seção alemã da Liga dos Comunistas eram poucas. A revolução eclodiu em Paris no dia 24 de fevereiro de 1848 e se estendeu rapidamente para a Alemanha. Em 3 de março aconteceu em Koln, principal cidade da Renânia, uma tentativa de levante popular. Os administradores da cidade foram obrigados a dirigir uma petição ao rei da Prússia para pedir uma intervenção diante da efervescência popular e que fossem feitas algumas concessões. Esta efervescência, ou se preferir, levantamento de 3 de março em Koln, estava dirigida por dois homens, Gottschalk, médico muito popular entre os operários e a população pobre da cidade, e Willich, um ex-oficial. Somente dez dias depois a revolução eclodiu em Viena, capital da Áustria; em 18 de março se estendeu a Berlim, capital da Prússia.

Neste momento, Marx estava em Bruxelas. O governo belga, para evitar ter o mesmo destino da monarquia francesa, investiu contra os emigrados residentes em Bruxelas, deteve Marx e o expulsou da Bélgica. Marx foi para Paris, para onde acabara de ser convidado. Um dos membros do governo provisório, Ferdinand Flocon, redator de um jornal que tinha Engels como colaborador, enviou imediatamente uma carta a Marx, na qual declarava que na livre terra francesa todos os decretos do velho governo estavam revogados.

O comitê regional de Bruxelas, a qual o de Londres havia transmitido plenos poderes desde que a revolução eclodira no continente, os enviou, por sua vez, a Marx. Entre os operários alemães reunidos então em grande número em Paris, surgiram desentendimentos e se organizaram distintos grupos. A um desses grupos aderiu o nosso compatriota Bakunin, que, como o poeta alemão Herweg, manteve seu projeto. Este organizou uma legião revolucionária, se colocou como líder e se dirigiu à fronteira, onde foi derrotado. Marx e outros camaradas conseguiram chegar a Alemanha e se radicaram em diferentes locais. Marx e Engels se estabeleceram na Renânia.

O fato da seção alemã da Liga dos Comunistas não possuir nenhuma organização, deve ter sido levado em conta por Marx e Engels. Existiam somente simpatizantes isolados. O que deveriam fazer Marx, Engels e os camaradas mais próximos? Quarenta anos mais tarde, Engels se esforçou para explicar a tática que Marx e ele aplicaram na Alemanha de 1848, e ofereceu uma resposta clara a uma pergunta, feitas por alguns jovens camaradas. Perguntavam porque, ao invés de ir a Berlim, Marx e ele ficaram em Koln, cidade da Renânia. Escolhemos a Renânia — dizia Engels — porque esta era a província de maior desenvolvimento industrial; porque nesta o código de Napoleão, herança da Revolução Francesa, ainda estava em vigência, o que os permitia dispor de maior liberdade de ação e de agitação. Ademais, na Renânia também havia um proletariado numeroso. Mas a verdade é que Koln não era então a cidade mais desenvolvida do ponto de vista comercial, mas a sede do poder administrativo e o centro da Renânia. Por sua população, Koln estava entre as mais importantes cidades renanas, ainda que somente tivesse 80 mil habitantes. Possuía um contingente operário bastante numeroso, ainda que a proporção de operários empregados na grande indústria fosse ínfima. As refinarias eram as principais fábricas. Neste tempo, Koln era muito conhecida pela água de colônia, mas não existiam grandes indústrias mecânicas. O desenvolvimento da indústria têxtil era menor do que em Elberfeld e Bremen. Em todo caso, Marx e Engels tinham razões plausíveis para escolher Koln como local de residência. Queriam realizar um trabalho de agitação em toda a Alemanha, fundar um grande jornal que pudesse ser uma tribuna para suas ideias em todos os países e, para isso, Koln era, em seu juízo, o lugar mais propício. Na Renânia, em 1842, havia sido editado o primeiro grande órgão político da burguesia alemã. Na época, se preparava o lançamento de um jornal, a qual conseguiram se apoderar em seguida.

Contudo, esse jornal era tido como órgão da democracia. Aqui Engels se esforçou para explicar porque escolheram a denominação "órgão da democracia". Argumentou que naquele momento não existia nenhuma organização proletária e que por isso eram somente possíveis duas ações: ou empreender desde o primeiro dia a organização de um partido comunista, ou então utilizar as organizações democráticas existentes, agrupá-las em um organismo único, realizar neste a propaganda necessária e atrair a ele as diferentes sociedades operárias então existentes. Marx e Engels optaram pelo segundo caminho: renunciaram a constituir organizações proletárias especiais na Renânia e entraram para a Sociedade Democrática de Koln. Por isso desde o começo, se encontraram em uma posição um tanto quanto falsa a respeito da União Operária de Koln, fundada imediatamente após o 3 de março por Gottschalk e Willich.

Como vimos, Gottschalk era um médico bastante popular entre as classes necessitadas de Koln. Por suas teorias, não era comunista. Antes da fundação da Liga dos Comunistas se aproximara de Weitling e seus partidários. Era um bom revolucionário, porém deixava-se facilmente influenciar por correntes contrárias. Pessoalmente irrepreensível, carecia de um programa firme, ainda que compreendesse bem o caráter da democracia, pois em sua primeira intervenção no conselho municipal declarou: "não é em nome do povo que tomo a palavra, pois os demais conselheiros municipais também pertencem ao povo; me dirijo a vocês unicamente em nome da classe operária". Deste modo, distinguia a classe operária e os trabalhadores, frente a nação em geral. Advogava pela ação revolucionária, porém, republicano, ao mesmo tempo reclamava uma federação de repúblicas alemães. Isso foi, como veremos adiante, um dos pontos essenciais de sua divergência com Marx. A sociedade por ele fundada, União Operária de Koln, havia reunido rapidamente quase todos os elementos proletários da cidade. Contava com 7 mil membros, o que é bastante para uma cidade de 80 mil habitantes.

A União Operária de Koln, entrou, em seguida, em conflito com a organização a qual pertenciam Marx e Engels. No seio da União Operária haviam elementos que não compartilhavam do critério de Gottschalk. Moll, que havia sido enviado pelo comitê comunista de Londres para o de Bruxelas para preparar a organização do congresso, que era um dos principais membros da União Operária e, evidentemente, unido estreitamente a Marx e Engels. A esta mesma união também pertencia Schapper, que atuava do movimento operário desde 1830. De tal sorte, não tardou o surgimento de frações na União Operária, frente a qual funcionava a sociedade democrática.

Isso foi resultado do plano que Engels expôs posteriormente em um artigo publicado na Nova Gazeta Renana. Marx e Engels esperavam tornar seu jornal, que começou a ser publicado em Koln em 19 de julho de 1848, o centro que aglutinaria, no curso da luta revolucionária, todas as futuras organizações comunistas. Seria errôneo acreditar que Marx e Engels entraram no "órgão da democracia" na qualidade de democratas. Ingressaram ali como comunistas, considerando-se a extrema esquerda da democracia. Nunca deixaram de criticar do modo mais violento, não apenas os erros do partido liberal alemão, mas também os da democracia, tanto que nos primeiros meses perderam todos os acionistas. Em seu primeiro artigo publicado na Nova Gazeta Renana, Marx criticou duramente a democracia. Quando se soube que o proletariado parisiense havia sido esmagado durante as jornadas de julho, que Cavaignac, apoiado por todos os partidos burgueses, havia massacrado milhares de proletariados, a Nova Gazeta Renana, órgão da democracia, publicou um apaixonado artigo, no qual atacava os verdugos burgueses e os satélites da democracia. Eis aqui uma curta passagem do dito artigo:

"Os operários parisienses foram esmagados por um inimigo superior em força, mas não aniquilados. Foram derrotados, porém seus inimigos estão vencidos. O triunfo efêmero da força brutal desvaneceu todas as ilusões da Revolução de Fevereiro, demonstrou a desintegração do antigo partido republicano, a divisão da nação francesa em duas partes: a dos possuidores e a dos proletários. Daqui por diante, a república tricolor terá somente uma cor, a cor dos vencidos, a cor do sangue. Se transformou na república vermelha. A Revolução de Fevereiro foi uma revolução magnífica, a revolução que contou com a simpatia geral porque as contradições que surgiram nela mais tarde estavam ainda em estado latente, e a luta social, que era sua base, era unicamente verbal. A Revolução de Junho, pelo contrário, foi uma revolução repugnante, porque a ação substituiu a frase, porque a mesma república descobriu a cabeça do monstro arrancando a coroa que o mascarava. O profundo abismo que se abriu perante nossos olhos vão desencorajar a nós, democratas, e nos fazer acreditar que as lutas pelas formas de governo são ilusórias e a nada conduzem? Apenas os espíritos débeis, acomodados, podem responder assim. Há que lutar para vencer os conflitos que nascem das próprias contradições da sociedade burguesa e que não podem ser derrotadas a partir de sonhos quiméricos. A melhor forma de Estado é aquela na qual os antagonismos sociais não são apagados e nem suprimidos pela força, ou seja, artificial e superficialmente. A melhor forma de governo é aquela na qual tais antagonismos se chocam livremente na luta e por essa mesma encontram sua solução. Contudo, nos dirão, não teremos uma lágrima, um suspiro, uma palavra, para as vítimas do furor popular, para a guarda nacional, a guarda móvel, a guarda republicana, as tropas? O Estado se ocupará das viúvas e dos órfãos, decretos os elevarão as nuvens, receberão grandes funerais solenes, serão proclamados como imortais pela imprensa oficial, de leste a oeste a reação europeia glorificará seus nomes. Porém, os plebeus torturados pela fome, ridicularizados pela imprensa, abandonados pelos médicos, chamados de ladrões, incendiários e criminosos por nossos cidadãos "honrados"; suas mulheres e seus filhos serão jogados na mais absoluta miséria; seus representantes sobreviventes do massacre, desterrados para além dos mares... é o privilégio e o direito da imprensa democrática de ter em sua fronte uma coroa de louros".

Este artigo foi escrito em 28 de junho de 1848. Não pode pertencer a pluma de um democrata: somente um comunista poderia ser seu autor e, por sua tática, Marx e Engels não enganavam ninguém. Assim o jornal deixou de receber qualquer subsídio da burguesia democrática e se transformou no verdadeiro órgão dos operários de Koln, do proletariado alemão.

Durante esse tempo, outros membros da Liga dos Comunistas esparsos por toda a Alemanha prosseguiam seu trabalho. Considero necessário mencionar especialmente a um: Stephan Born, tipógrafo. Engels o julgou de forma desfavorável em um prefácio de um livro de Marx.

Born seguia uma tática distinta. Em sua chegada a Alemanha, radicou-se em Berlim, centro operário de importância, e se entregou à tarefa de criar uma grande organização operária. Com a ajuda de alguns camaradas fundou um pequeno órgão, Fraternidade Operária, e realizou uma metódica agitação entre as distintas categorias de trabalhadores. Não se limitou, como haviam feito anteriormente Gottschalk e Willich em Koln, a organização de uma sociedade operária puramente política. Empreendeu a organização de diferentes sociedades destinadas a defesa dos interesses operários, e dedicou tanta energia à obra que logo sua organização se estendeu a algumas cidades vizinhas e a outras regiões da Alemanha. Todavia, esta organização apresentava uma lacuna. Era puramente operária e, tal qual mais tarde o "economicismo" russo também defenderia, insistia demasiadamente sobre as tarefas exclusivamente econômicas da classe trabalhadora. Assim, enquanto alguns membros da Liga dos Comunistas, como Born, homem de talento, criavam essas organizações puramente operárias, outros no sul da Alemanha, como Marx, empregavam toda sua força na transformação do partido democrático em objeto no qual a classe operária fosse o núcleo fundamental, e para torná-lo o mais democrático possível. Nesta direção seguia o trabalho de Marx. A Nova Gazeta Renana, tratava de todas as questões de importância, e desta forma pode-se considerá-la um modelo de jornal revolucionário. Nenhum outro jornal russo ou europeu chegou à altura da Nova Gazeta Renana. Ainda que em breve completem 75 anos, os artigos não perderam nada de sua atualidade, do seu ardor revolucionário, de sua aguda análise dos acontecimentos. Ao lê-los, sobretudo os de Marx, podemos assistir a história da Revolução Alemã, da Revolução Francesa, contada por elas mesmas, tão vivo é o estilo e tão profundo o sentido.

Qual era o ponto central da política interior e exterior da Nova Gazeta Renana? Antes de passar a esta questão, devemos destacar que Marx e Engels não possuíam outra experiência revolucionária além da grande Revolução Francesa. Marx havia estudado atentamente sua história e procurado extrair princípios táticos para empregá-los na ocasião da futura revolução, que ele, ao contrário de Proudhon, previa com justeza. Logo, o que nos tem a ensinar a Revolução Francesa? Esta revolução, eclodida em 1789, representava um largo processo que durou dez anos, de 1789 a 1799, ou seja, até o ano em que Bonaparte dá o golpe de Estado. A experiência da Revolução Inglesa do século XVII ensinava igualmente que a revolução futura seria provavelmente de longa duração. A revolução começou em meio à alegria e ao entusiasmo geral; a burguesia liderou o povo oprimido, derrubou o absolutismo, e somente depois do seu triunfo se desenvolveu a luta, e no curso desta, desta revolução mais radical, o poder passou cada vez mais aos partidos extremos. Esta luta se deu durante três anos e se encerrou com a tomada do poder pelos jacobinos. Parecia a Marx, que havia estudado atentamente a organização do partido político jacobino, que no curso do prolongado desenvolvimento da revolução pode-se organizar uma força que constituía progressivamente a fortaleza da ação. Esta premissa teórica explica seu erro. Conservou por algum tempo essa opinião, até que uma série de acontecimentos o obrigaram a desfazê-la. O fracasso de junho do proletariado parisiense foi o primeiro golpe assestado à revolução no ocidente e imediatamente permitiu à reação se levantar na Prússia e na Áustria. Ademais, por detrás da Prússia e da Áustria estava a Rússia com Nicolau I, que desde o início havia oferecido ajuda ao rei prussiano. Desde o primeiro instante, este declinou a oferta no que concerne à força militar, mas aceitou o dinheiro. Nicolau I possuía então as reservas de ouro mais significativas da Europa. O dinheiro foi usado em proveito do governo prussiano. Nicolau I ofereceu batalhões russos ao governo austríaco, contra o qual se havia sublevado a Hungria, e a proposta foi aceita.

Apoiando-se novamente na experiência da Revolução Francesa, a Nova Gazeta Renana traçou a seguinte tática. A guerra contra a Rússia era o único meio favorável para a revolução na Europa ocidental amordaçada por causa da derrota do proletariado parisiense. A história da Revolução Francesa ensinou que a ofensiva da coalizão contra a França deu novo impulso ao movimento revolucionário. Os partidos moderados foram jogados ao mar. A direção do movimento foi tomada pelos partidos que mais energicamente rechaçaram a agressão estrangeira. O ataque da coalizão contra a França, conduziu, em agosto de 1792, a proclamação da República. Marx e Engels deduziam que a guerra reacionária contra a nova revolução teria as mesmas consequências. Por isso a Nova Gazeta Renana criticava violentamente a Rússia. Apresentava esta como uma força sempre disposta a sustentar a reação austríaca e alemã. Em cada artigo demonstravam que a guerra contra a Rússia era o único meio para salvar a revolução e se esforçavam para preparar a democracia para esta guerra contra os russos, como a única solução racional. Marx e Engels, repito, se dedicaram a provar que a guerra contra a Rússia daria um novo impulso a revolução e reforçaria as aspirações revolucionárias do povo alemão. Por isso, defendiam em seu jornal todos os movimentos de oposição contra o regime existente; foram os defensores mais ardentes da revolução húngara e apoiaram os poloneses, que pouco antes executaram uma tentativa de insurreição. Eles reivindicavam a restauração da Polônia independente e que a Alemanha e a Áustria reintegrassem as províncias que lhe haviam tomado, e que a mesma coisa fosse feita pela Rússia. Partidários da união da Alemanha em uma república única, reclamavam à Dinamarca a restituição de algumas regiões alemãs, com exceção das regiões dominadas pelo elemento dinamarquês. Em uma palavra, eram fiéis a tese fundamental do Manifesto Comunista e apoiavam todo movimento revolucionário dirigido contra a ordem vigente. Mas, não se pode ocultar (e isso se advertirá quando da oportunidade de ler os artigos publicados por Marx e Engels na Nova Gazeta Renana) que nestes brilhantes artigos preponderava o aspecto político; sempre se critica neles os atos políticos da burguesia e da burocracia. A Nova Gazeta Renana dedicava relativamente um espaço diminuto à questão operária. Sob este aspecto, é interessante comparar o jornal de Marx com o de Born. O do segundo parecia um periódico especial das cooperativas: dedicava à questão operária uma maior atenção. O mesmo não era feito pela Nova Gazeta Renana, que raramente tocava nessa questão. Criticava de forma violenta a declaração dos direitos fundamentais do povo alemão e arremetia contra a legislação impregnada do espírito do liberalismo nacional. Tomava a defesa vigorosa dos camponeses, demonstrando à burguesia a necessidade de sua emancipação. Porém, até fins de 1848 são escassos os artigos dedicados às reivindicações da classe operária. Tais reivindicações não figuravam em nenhuma parte da Nova Gazeta Renana, quase inteiramente absorvida pelas tarefas políticas fundamentais, que consistia em acender as paixões políticas e preconizar a criação de forças revolucionárias democráticas capazes de varrer em um só golpe todas as sobrevivências do regime feudal na Alemanha.

No fim de 1848 a situação se modificou. A reação, que começou a se reforçar depois da derrota do proletariado parisiense, ampliou este processo em outubro de 1848. O esmagamento do proletariado húngaro com a ajuda russa, contribuíram com o fracasso do movimento de Berlim. O governo prussiano demonstrou coragem e, em dezembro de 1848, dissolveu a Assembleia Nacional e impôs ao país uma constituição elaborada por ele mesmo. Nesse momento, a burguesia prussiana, procurava firmar um acordo com o povo.

Marx, pelo contrário, demonstrava que o poder real sofreu uma derrota em março de 1848 e não é questão de se propor um acordo com ele. O próprio povo deve elaborar uma constituição sem preocupar-se com o poder real e proclamar na Alemanha uma república única e indivisível. Porém, a Assembleia Nacional, onde a burguesia liberal democrática tinha hegemonia, temia o resultado de uma ruptura definitiva com a monarquia. Seguiu sua política de conciliação até o momento da dissolução da assembleia.

Então, pareceu bem claro para Marx a impossibilidade de contar com apoio da ala mais radical da burguesia alemã. A fração democrática da burguesia, da qual se podia esperar a obtenção das liberdades políticas que permitiriam o desenvolvimento da classe operária, se mostrou incapaz de cumprir essa tarefa. Eis a caracterização desta burguesia feita por Marx em dezembro de 1848, após a triste experiência de Berlim e Frankfurt:

"Enquanto as revoluções de 1648 e de 1789 podem se orgulhar de ter realizado uma obra de criação, as de Berlim de 1848 puseram sua honra em ser um anacronismo. Sua luz se parece com a das estrelas que chega aos habitantes da terra dez mil anos depois de se extinguirem no astro que a emitiu. A revolução prussiana de março é para a Europa um pequeno astro deste gênero. Sua luz é a de um cadáver social há muito tempo em decomposição. A burguesia alemã se desenvolveu tão suave, indolente e lentamente, que no momento em que se alçou na luta contra o feudalismo e contra o absolutismo, se fez hostil ao proletariado e a todas as camadas de população urbana cujos interesses e ideias se assemelham. Viu que toda a Europa estava a sua frente. Contrariamente a burguesia francesa de 1789, a burguesia alemã não foi a classe que defenderia toda a sociedade contemporânea contra os representantes da velha ordem. Desceu ao nível de uma categoria social oposta à monarquia e ao povo, indecisa diante cada um dos seus aniversários, pois a teve sempre, tanto adiante como atrás dela. Desde o começo inclinou-se à traição do povo e à conciliação com os "coroados" da velha sociedade, a qual ela mesmo ainda pertencia; não representava os interesses da nova sociedade contra a velha, porém tinha interesses renovados no seio de uma sociedade envelhecida; não exerceu a direção do processo revolucionário porque o povo estava atrás dela, mas porque o povo a pôs diante dele; não liderou porque representava a iniciação de uma nova época social; foi uma camada do velho Estado, camada social que não traçou sua própria rota, porém que pela força do cataclismo foi posta à cabeça do novo Estado. Sem confiança em si mesma, sem fé no povo, resmungando contra os grandes, tremulando perante os pequenos, egoísta a respeito de uns ou outros e, com consciência do seu egoísmo, revolucionária diante dos conservadores e conservadora diante dos revolucionários; sem confiança em suas próprias palavras de ordem, com frases ao invés de ideias, assustada pela tempestade mundial e explorando esta tormenta. Sem energia e recorrendo ao plágio em todos os aspectos, original apenas em sua baixeza; transigente com seus próprios desejos, sem iniciativa, sem confiança em si mesma, sem fé no povo, sem vocação histórica mundial; velha decrépita, amaldiçoada por todos e condenada em sua caducidade a dirigir as aspirações juvenis de um povo e a desviá-las; velha cega, surda e desdentada: tal era a burguesia prussiana quando, depois da revolução de março, se viu na direção no Estado".

Esta caracterização demonstra de maneira justa a burguesia alemã de 1848. Como se vê, também se pode aplicar integralmente à burguesia russa.

Marx havia visto a burguesia em ação. As esperanças que concebeu, ainda que com muitas reservas, no Manifesto Comunista, sobre a burguesia progressista, não se realizaram. Por isso, desde o outono de 1848, Marx e Engels modificaram a tática usada em Koln e na Nova Gazeta Renana. Sem recusar o apoio da democracia burguesa, sem romper organicamente com o partido democrata, Marx mudou o centro de gravidade do seu trabalho para os meios proletários. Com Moll e Schapper reforçou a propaganda no seio da sociedade operária de Koln, que tinha também seu representante no Comitê Regional das Sociedades Democráticas. Após a prisão de Gottschalk, Moll foi eleito presidente da sociedade operária, o que evidencia a ampliação da força dos comunistas. A corrente federalista, que tinha em Gottschalk a principal figura, se converteu em minoria. Quando Moll necessitou fugir temporariamente de Koln, Marx foi eleito, apesar de suas reiteradas negativas, para ocupar seu lugar. Em fevereiro, data das eleições ao novo parlamento, as divergências surgiram. Marx e seu grupo insistiam que onde não fosse possível eleger os próprios candidatos: os operários votassem nos democratas, contra o que a minoria protestou.

Na sequência, em março e em abril, as divergências entre os operários e os democratas reunidos no Comitê Regional das Sociedades Democráticas se revestiram de tamanha agudização, que a cisão foi inevitável. Marx e seus camaradas saíram do Comitê. A sociedade operária retirou seu representante e procurou relacionar-se com as sociedades operárias organizadas por Born na Alemanha oriental. A sociedade operária foi reorganizada e transformada em clube central com nove seções ou clubes operários. Marx e Schapper publicaram no final de abril uma chamada, na qual convidavam todas as sociedades operárias da Renânia e da Westphalia para um congresso regional, para organizar e eleger delegados de um congresso operário a ser realizado em junho em Leipzig.

Contudo, no momento em que Marx e seus camaradas se dedicavam a organização do partido da classe operária, foi desferido um novo golpe contra a revolução. O governo da Prússia, que acabara de dissolver a Assembleia Nacional prussiana, resolveu fazer o mesmo com a Assembleia Nacional alemã. Então foi iniciada no sul da Alemanha o que se chama de luta pela constituição do Império.

Em razão desta situação, Marx devia agir em Koln com maior prudência. Certo é que não estava reduzido à ação clandestina, mas podia ser expulso de Koln mediante uma simples ordem dada pelo governo. Com efeito, exposto as contínuas perseguições do governo prussiano, expulso de Paris por causa deste último e temendo sê-lo na Bélgica, Marx decidiu, no final das contas, renunciar à nacionalidade prussiana, sem adotar nenhuma outra. De forma que quando voltou a Koln, as autoridades o reconheceram como cidadão da Renânia, porém exigiram a sanção das autoridades prussianas de Berlim, que decidiram que Marx havia perdido os direitos inerentes a sua condição de cidadão da Prússia. Por isso Marx, que realizava reiteradas tentativas de reintegração dos seus direitos de cidadão prussiano, foi obrigado, durante o segundo semestre de 1848, a renunciar a toda ação pública. Quando a onda revolucionária se elevava e a situação se tonava mais favorável, intervia publicamente na luta, porém desde que a reação ganhou terreno e a repressão se fez mais rigorosa em Koln, reduziu sua atividade jornalística, ou seja, a direção da Nova Gazeta Renana. Por isso aceitou, contra sua vontade, assumir a presidência da sociedade operária de Koln.

A modificação da tática introduziu mudanças na Nova Gazeta Renana. Somente depois de tal modificação aparecem os primeiros artigos sobre "O Trabalho assalariado e o Capital". Marx precedeu estes artigos com uma larga introdução, na qual explica o porquê de a Nova Gazeta Renana não ter ainda tocado na questão do antagonismo entre o capital e o trabalho. Esta introdução tem uma grande importância pois marcou uma mudança de tática, porém esta alteração foi produzida demasiadamente tarde. Isto foi em fevereiro, e em maio a revolução alemã já havia sido completamente esmagada. O governo prussiano enviou suas tropas ao sudoeste da Alemanha. A Nova Gazeta Renana foi a primeira, em 19 de maio, a ser empastelada. Tivemos em nossas mãos o último número deste jornal, o 301, o célebre número vermelho, que começa com uma poesia de Freiligrath, seguida de uma convocação de Marx para pôr em guarda os operários e para adverti-los que não devem se deixar cair em provocações. Marx, em seguida, foi embora da Renânia. Agora na condição de estrangeiro, foi obrigado a abandonar a Alemanha; enquanto que os demais redatores, se dispersaram para estabelecer-se em diferentes lugares, Engels, Moll e Willich foram com os sublevados do sul.

Após algumas semanas de resistência heroica, mas mal organizada, as tropas prussianas obrigaram os rebeldes a se refugiar na Suíça. Os velhos membros da redação da Nova Gazeta Renana e da sociedade operária de Koln se instalaram em Paris, mas depois da abortada manifestação de 31 de junho de 1849 foram perseguidos e obrigados a se retirar da França. No princípio de 1850 quase toda a velha guarda da Liga dos Comunistas se encontrava novamente reunida em Londres. Moll faleceu no sul da Alemanha no curso da insurreição. Estavam em Londres, Marx, Engels, Schapper, Willich e Wolf.

No começo, como pode ser constatado em seus artigos, Marx e Engels não haviam perdido as esperanças; acreditavam que uma detenção temporal do movimento seria seguida de um novo empurrão revolucionário. Para não ser pegos de surpresa, trataram de reforçar sua organização e de pô-la em estreito contato com a Alemanha. A velha Liga dos Comunistas se reorganizou, agrupou os membros que já havia pertencido a ela e a novos elementos recrutados na Silésia, em Breslau e na Renânia.

Porém, depois de alguns meses surgiram divergências na Liga entre os comunistas de esquerda e os de direita. Eis o motivo da discussão. No início de 1850, Marx e Engels acreditaram que não demoraria muito para surgir um novo avanço revolucionário. Nesta época, a Liga dos Comunistas lançou suas duas famosas circulares, escritas principalmente por Marx. Lenin as conhecia de cabeça, por assim dizer, e as citava com frequência.

Para orientar-se bem, é preciso relembrar os erros cometidos por Marx e Engels durante a Revolução de 1848. As circulares demonstram que é necessário criticar implacavelmente não somente o liberalismo burguês como também a democracia; que há de concentrar todos os esforços para opor à organização democrática uma organização operária; que antes de tudo há que se criar um partido operário. A luta contra os democratas não deve cessar; a cada uma de suas reivindicações há de responder com uma mais radical. Se os democratas reclamam a jornada operária de nove horas, nós reivindicaremos a de oito; se pedem a expropriação das grandes propriedades de terra com indenização, nós pediremos a confiscação pura e simples. É necessário recorrer a todos os meios para fazer avançar a revolução, para fazê-la contínua, para pô-la constantemente na ordem do dia. Não se deve dormir sob os louros, satisfeitos com algum êxito alcançado. Cada conquista deve ser um passo para chegar a conquista seguinte. Declarar a revolução encerrada é traí-la. Há que operar de tal modo que o regime social e político, minado por todas as partes, desmorone gradativamente até que o livremos de todas as sobrevivências dos antagonismos de classes.

Sobre a análise da "situação social" começaram as divergências. Contrariamente a seus adversários, dirigidos por Schapper e Willich, Marx, fiel ao seu método, partia do fato de que toda revolução política é a consequência de determinadas condições econômicas, de uma certa revolução econômica. A Revolução de 1848 foi precedida pela crise de 1844, que alcançou quase toda a Europa, salvo as regiões extremas do oriente. Logo, analisando desde Londres a nova situação econômica, o estado do mercado mundial, Marx se convenceu de que a situação não era naquele momento favorável para uma explosão revolucionária, e que a ausência dessa pujança de lutas que esperava com seus camaradas, não se explica unicamente pela falta de iniciativa ou de energia por parte dos revolucionários. Ao fim de 1850, a análise detalhada da situação o levou a conclusão de que, considerado o estado de prosperidade econômica, toda tentativa de eclodir a revolução entre o povo, para organizar uma insurreição armada terminaria em um fracasso tão inevitável quanto inútil. O capital na Europa se encontrava nesse momento em condições de desenvolvimento extremamente favoráveis. Acabara-se de descobrir minas de ouro de uma riqueza imensa na Califórnia e na Austrália, para onde fluíam em massa, parte dos operários. Uma onda de emigração europeia, iniciada no segundo semestre de 1848, se ampliou notavelmente em 1850.

De modo que a análise das condições fez Marx compreender que a revolução havia perdido terreno, que era necessário esperar uma nova crise econômica que então criaria condições favoráveis para uma renovação do movimento revolucionário. Todavia, tal ponto de vista não era compartilhado por todos os elementos presentes na Liga dos Comunistas. Era confrontado, particularmente, por aqueles que não possuíam a formação científica, a ciência econômica de Marx, e que atribuíam uma importância exagerada as iniciativas de algumas personalidades determinadas. Willich, que com Gottschalk incitou a insurreição de 3 de março em Koln e desempenhou um grande papel no sul da Alemanha, assim como Schapper e vários outros membros da Liga dos Comunistas afiliados a União Operária de Koln e velhos partidários de Weitling, se uniram e preconizaram a organização de uma nova insurreição. Segundo eles, bastava conseguir a quantidade de dinheiro necessária e reunir alguns homens resolutos para provocar um foco insurrecional na Alemanha. Em busca de dinheiro, tentaram um empréstimo na América, para levantar a revolução alemã. Marx, Engels e alguns dos seus camaradas se negaram a participar de tal campanha. Assim se produziu uma cisão; a Liga dos Comunistas se dividiu em duas frações: a de Marx e Engels e a de Willich e Schapper.

Neste momento, a seção alemã da Liga dos Comunistas sofreu um infortúnio. Já em 1850, Marx e Engels, ao mesmo tempo em que se efetuava uma reorganização da Liga dos Comunistas em Londres, haviam tentado reorganizar e consolidar a mesma na Alemanha. Enviaram a este país muitos agentes para entrevistar os comunistas alemães. Um deles foi preso e com ele foram encontrados documentos que permitiram à polícia prussiana, dirigida pelo famoso Stieber, derrubar alguns camaradas. Um grande número de comunistas foi encarcerado. Para demonstrar à burguesia prussiana que não era necessário sentir falta de algumas das liberdades que lhe foram retiradas em 1850, o governo prussiano promoveu em Koln um grande processo contra os comunistas. Numerosos camaradas, entre eles Lessner e Becker, foram condenados a longos anos de prisão. O processo revelou a participação de certo número de agentes provocadores no movimento e permitiu a comprovação de que Stieber, havia recorrido à falsificação de processos verbais e a toda sorte de falsos testemunhos.

Por resolução do grupo de comunistas que ficaram com ele, Marx escreveu um folheto a propósito do processo contra a Liga dos Comunistas, na qual revela todas as maquinações da polícia prussiana. Porém os condenados não tiraram grande proveito disso. Encerrado o processo, Marx, Engels e seus camaradas chegaram à conclusão de que, visto que havia terminado todas relações com a Alemanha, a Liga dos Comunistas não podia fazer mais nada, que era necessário aguardar um momento mais favorável e, no fim de 1852, decretaram sua dissolução. Outra parte da Liga, a fração de Willich e Schapper, vegetou ao redor dos seus membros; Schapper compreendeu que havia cometido um erro em 1852 e se reconciliou com Marx e Engels. Em seguida, veremos o que fizeram Marx e Engels durante todo o tempo no qual não havia possibilidade de desenvolver uma ação revolucionária direta.


Inclusão: 15/11/2019