O Nascimento da Anarquia: A Morte da Propriedade

Pierre-Joseph Proudhon

1840


Fonte: Qu’est-ce que la Propriéré?, 1840, traduzido para o inglês por Benjamin Tucker, 1876. http://malleusmalleficarum.blogspot.com/2008/11/o-nascimento-da-anarquia-morte-da.html

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Qual deverá ser a forma de governo do futuro? Alguns de nossos leitores mais jovens respondem: ‘Como você pode perguntar isto? Você é republicano’" — "Sim, mas a palavra não especifica nada. Res publica, isto é, a coisa pública. Agora, quem se interessa pelas coisas públicas pode autodenominar-se de republicano. Até os reis são republicanos. — "Bem, você é democrata? — Não!" — "Você é monarquista? — Não" — ‘‘Um constitucionalista? — Não" — ‘‘Um aristocrata? — De jeito nenhum" — "Quer um governo misto? — Isto muito menos". — "Então, o que você é? — Eu sou um anarquista." 

O homem que busca o mais rapidamente possível a satisfação mais profunda de suas necessidades, procura a regra. No início, esta regra lhe é viva, tangível, visível. E o seu pai, seu mestre, seu rei. Quanto mais ignorante for o homem, mais obediente ele é, sua confiança é mais absoluta no seu guia. 

Mas por ser da natureza do homem fazer as regras, isto é, descobri-las por seu próprio poder de reflexão e raciocínio, o homem raciocina sobre as ordens de seus chefes. Tal raciocínio é um protesto contra a autoridade, um início de desobediência. No momento em que o homem pondera sobre os motivos que governam a vontade de sua soberania, neste momento é que ele se revolta. Se ele não obedece mais porque o rei ordena, mas porque o rei demonstra sabedoria nas suas ordens, pode-se dizer que dai por diante ele não reconhecerá a autoridade, e tornar-se-á seu próprio rei. Infeliz daquele que tentar comandá-lo, e oferecer-lhe como autoridade apenas o voto da maioria. Mais cedo ou mais tarde, a minoria se torna a maioria, e este déspota imprudente será derrubado e suas leis destruídas. Na proporção em que a sociedade se torna esclarecida, diminui a autoridade real. A história testemunha este fato. Ao surgirem as nações, os homens refletem e raciocinam em vão. Sem métodos, sem princípios, sem saber usar sua razão, não podem julgar suas conclusões. Quando a autoridade dos reis é enorme, não há conhecimento adquirido que possa contradizê-lo. Mas aos poucos, a experiência produz hábitos, que se desenvolveram em costumes. Então os costumes são formulados em conceitos, enunciados em princípios, em suma, transformados em leis que o próprio rei, a lei viva, terá de obedecer. Vem o tempo em que os costumes e as leis são tão numerosos que a vontade do príncipe, por assim dizer, é submetida à vontade pública. E ao tomar a coroa, o príncipe é obrigado a jurar que governará conforme os costumes e os usos estabelecidos; que ele é o poder executivo de uma sociedade onde as leis são feitas independentemente dele. 

Neste ponto, tudo é feito instintivamente, e, por isto, inconscientemente; mas veja onde este movimento deve acabar. 

Através da autodidática e da aquisição de idéias, o homem finalmente adquire a idéia da ciência, isto é, de um sistema de conhecimentos em harmonia com a realidade das coisas e inferida da observação. Ele procura a ciência, isto é, o sistema dos corpos inanimados, o sistema dos corpos orgânicos, o sistema da mente humana. o sistema do universo; por que ele não deveria buscar o sistema da sociedade? Mas neste ponto ele compreende que a verdade política, ou a ciência política, existe independentemente da vontade dos soberanos, da opinião das maiorias, das crenças populares. Vê que os reis, os ministros, os magistrados e as nações, assim como a vontade, não têm conexão com a ciência, e não devem ser considerados. Ele compreende, ao mesmo tempo, que se o homem é um ser social, a autoridade de seu pai cessa, quando com sua personalidade formada e terminada a sua educação, ele se torna sócio do pai. Seu chefe e seu rei são a verdade demonstrada. A política é uma ciência, não uma estratégia, e a função do legislador se reduz, em última análise, à procura metódica da verdade. 

Portanto, numa sociedade, a autoridade do homem sobre o homem é inversamente proporcional ao estágio de desenvolvimento intelectual que aquela sociedade atingiu. A provável duração daquela autoridade pode ser calculada pelo desejo mais ou menos forte de um governo verdadeiro, isto é, um governo científico. A justiça, como direito da força e o direito do artifício, recua diante do avanço estável da justiça e, ao final, deve ser extinta pela igualdade; assim como a soberania da vontade sobre a soberania da razão, e deve ser abolida no socialismo cientifico. A propriedade e a realeza têm-se quebrado em pedaços desde que o mundo começou. Assim como o homem busca justiça na igualdade, a sociedade busca ordem na anarquia. 

Anarquia — a ausência de um mestre, de um governante, é a forma de governo a que estamos nos aproximando dia a dia. Nosso hábito de tornar o homem como nossa regra, e sua vontade como lei, nos leva a considerá-lo com a máxima desordem e a expressão do caos. 

Então, nenhum governo, nenhuma economia pública, nenhuma administração é possível se for baseada na sociedade. 

O comunismo busca a igualdade e a lei. A propriedade, nascida da soberania da razão, do senso de mérito pessoal, quer acima de tudo, independência e proporcionalidade. Mas o comunismo, confundindo uniformidade com lei e nivelamento com igualdade, se torna tirânico e injusto. 

A propriedade, por seu despotismo e usurpação, logo se mostra apassiva e anti-social. Os objetivos do comunismo e da propriedade são bons. Mas os resultados são ruins. Por quê? Porque ambos são excludentes e cada um despreza dois elementos da sociedade. O comunismo rejeita a independência e a proporcionalidade; a propriedade não satisfaz a igualdade e a lei. 

Se imaginarmos uma sociedade baseada nestes 4 princípios — igualdade, lei, independência e proporcionalidade —, encontraremos: 

  1. A igualdade, se consistir apenas na igualdade de condições, isto é, dos meios, e não na igualdade de conforto (tarefa que os trabalhadores devem atingir por si mesmos, quando providos de meios iguais), de nenhuma forma viola a justiça e a équré. 
  2. A lei, resultado do conhecimento dos fatos e, conseqüentemente, baseada na própria necessidade, nunca entra em conflito com a independência. 
  3. A independência individual ou a autonomia da razão individual, originada da diferença de aptidões e capacidades, pode existir sem perigo dentro dos limites da lei. 
  4. A proporcionalidade, admitida apenas na esfera da inteligência e dos sentimentos e não dos elementos materiais, pode ser observada sem violação da justiça e da igualdade social. 

A esta terceira forma da sociedade, a síntese do comunismo e da propriedade, chamamos de liberdade. 

Ao determinar a natureza da liberdade, não unimos o comunismo à propriedade indiscriminadamente. Tal processo seria de um elitismo absurdo. Buscamos a análise daqueles elementos que são verdadeiros, e estão em harmonia com as leis da natureza e da sociedade, sem considerar o resto. O resultado mostra uma expressão adequada da forma natural da sociedade humana, isto é, a liberdade. 

Liberdade é igualdade, porque não admite o controle da vontade, mas apenas o governo da lei, isto é, da necessidade. 

Liberdade é a variedade infinita, porque respeita todos os desejos dentro dos limites da lei. 

Liberdade é proporcionalidade, porque permite a expansão máxima à ambição do mérito, e a emulação da glória. 

Hoje podemos dizer, nas palavras de M. Consin: "Nosso princípio é verdadeiro, é bom, é social. Não devemos ter medo de fazê-lo chegar à sua meta.

E da natureza social do homem justiça através da reflexão, équiré através da classificação da capacidade. Ter a liberdade por norma é a verdadeira base da moralidade, o princípio regulador de todas as nossas ações. Este é o motor universal que a filosofia busca, que a religião reforça, que a vaidade suplanta, e que a razão pura não pode preencher. O dever e o direito nasceram da necessidade que, se considerada em relação aos outros, é um direito, e em relação a nós, um dever.

Necessitamos comer e dormir. E nosso direito buscar aquelas coisas que são necessárias ao descanso e à alimentação. E nosso dever usá-los quando a natureza exige. Necessitamos trabalhar para viver. Fazê-lo é tanto nosso direito como nosso dever. 

Necessitamos amar nossa mulher e nossos filhos. E nosso dever sustentá-los e protegê-los. E nosso direito sermos amados em preferência a outros. A fidelidade conjugal é justiça. O adultério é uma alta traição contra a sociedade. 

Necessitamos trocar nossos produtos por outros produtos. E nosso direito que esta troca seja feita por um equivalente, já que consumimos antes de produzir, seria nosso dever equilibrar as quantidades, ver se nosso último produto consumido é seguido de nossa produção respectiva, O suicídio é falência fraudulenta. 

Necessitamos viver nossas vidas de acordo com o que dita nossa razão. E nosso direito manter nossa liberdade. E nosso dever respeitar a todos os outros. 

Necessitamos ser estimados por nossos companheiros. E nosso dever merecer seu elogio. E nosso direito sermos julgados pelo nosso trabalho. 

A liberdade não se opõe aos direitos de sucessão e de herança. Se contenta em prevenir violações da igualdade. ‘‘Escolha’’, diz ela ‘‘entre duas heranças, mas não tome as duas’’. Toda a nossa legislação sobre transmissão, vinculação. adoção e, se podemos usar tal termo, assistência precisa ser reformulada. 

A liberdade estimula a concorrência, em vez de destruí-la. Na igualdade a concorrência consiste em trabalhar em boas condições, e em sua própria recompensa. Ninguém sofre com a vitória. 

A liberdade aplaude o auto-sacrifício e o honra com seu voto, mas pode renunciar a ele. Somente a justiça é suficiente para manter o equilíbrio social. O auto-sacrifício é um aro de exigência da sociedade. Feliz, entretanto, o homem que puder dizer: "Eu me sacrifico". 

A liberdade é essencialmente uma força de organização. Para assegurar a igualdade entre os homens e a paz entre as nações, agricultura e indústria, entre centros de educação, comercialização e armazenamento, a liberdade deve ser distribuída de acordo com o clima, a posição geográfica do país, a natureza dos produtos, o caráter e as aptidões naturais dos habitantes, etc., em proporções tão justas, tão sábias, tão harmoniosas de modo a nunca haver excesso ou falta de população, consumo ou produtos. Aí começa a ciência do direito público e privado, a verdadeira economia política. ~ tarefa dos autores de jurisprudência,livres do falso princípio de propriedade, escrever as novas leis, e trazer paz à terra. Não lhes faltam conhecimento e inteligência. As bases já estão lançadas para eles. 

Cumpri minha tarefa, a propriedade foi dominada para nunca mais renascer. Onde este livro for lido e discutido, estará depositado o germe da morte da propriedade. Ai mais cedo ou mais tarde, o privilégio e a escravidão desaparecerão, e o despotismo da vontade dará lugar ao reino da razão. Que sofismas, que preconceitos, mesmo obstinados, poderão manter-se diante da simplicidade das seguintes proposições? 

1. A possessão individual é condição da vida social. Cinco mil anos de propriedade demonstram isto. A propriedade é o suicídio da sociedade. A possessão é um direito, a propriedade é contra o direito. Ao suprimir a propriedade mantendo a possessão, por esta simples modificação de princípio, revolucionaremos a lei, o governo, a economia e as instituições, eliminaremos o mal da face da terra. 

2. Quando todos têm direitos iguais de ocupação, a possessão varia com o número de possessores; a propriedade não pode se estabelecer por si própria. 

3 Pelo efeito do trabalho ser igual para todos, a propriedade é perdida na prosperidade comum. 

4. Por todo o trabalho humano ser o resultado da força coletiva, toda propriedade se torna, conseqüentemente, coletiva e unitária. Para falar com mais exatidão, o trabalho destrói a propriedade. 

5. Sendo toda a capacidade para trabalhar, como todo o instrumento de trabalho, um capital acumulado e uma propriedade coletiva, a diferença de salários e oportunidades (em termos de diferença de capacidade) é, portanto, uma injustiça e um roubo. 

6. As condições necessárias de comércio são a liberdade das partes contratantes e a equivalência dos produtos trocados. Por ser o valor expresso em quantidade de tempo e custo que cada produto requer, e a liberdade ser inviolável, os salários dos trabalhadores, como seus direitos e deveres, devem ser iguais. 

7. Os produtos são comprados apenas por produtos. Sendo a condição de toda troca a equivalência de produtos, o lucro é impossível e injusto. Seguindo este princípio elementar de economia, a pobreza, o luxo, a opressão, o vicio e o crime desaparecerão. 

8. Os homens se associam pela lei física e matemática da produção, antes de associarem voluntariamente. Portanto, a igualdade de condições é exigida pela justiça, isto é, por estritas leis sociais: afeição, amizade, gratidão, admiração estão sob o domínio da lei: eqüitativa ou proporcional. 

9. Livre associação, liberdade — cujas funções fundamentais são manter a igualdade em termos de produção e de equivalência de trocas —é a única forma social possível, justa e verdadeira. 

10. A política é a ciência da liberdade. O governo do homem sobre o homem, disfarçado sob qualquer nome, é opressão. A sociedade atinge a perfeição na união da ordem com a anarquia. 

A velha civilização está terminada; um novo sol nasce e logo renovará a face da Terra. Deixemos a velha geração perecer, deixemos os velhos evasivos morrerem no deserto! A terra santa não cobrirá seus ossos. Jovem  — exasperado pela corrupção dos tempos e absorvido em seu zelo pela justiça — se você ama seu país, e se tem na realidade os interesses da humanidade, tenha a coragem de juntar-se à causa da liberdade! Abandone seu velho egoísmo e mergulhe na crescente onda de igualdade popular. Sua alma regenerada ganhará nova dia e vigor; seu espírito receberá uma energia invencível, e seu coração, talvez já fraco, será rejuvenescido. 

Tudo será diferente diante de sua visão esclarecida; novos sentimentos engendrarão novas idéias. Religião, moralidade, poesia, arte, linguagem lhe aparecerão em formas mais nobres e justas. Daí por diante, seguro de sua fé e entusiasmo, você saudará a aurora da regeneração universal. E vocês pobres vítimas de uma lei odiosa! Vocês, a quem este mundo zombeteiro rouba e ultraja! Vocês, cujo trabalho tem sido sempre infrutífero, e cujo descanso não tem expectativa, tenham coragem! Suas lágrimas estão contadas! Os pais semearam na aflição, as crianças colherão na alegria.


Inclusão 25/07/2019