O Homem Unidimensional na Sociedade de Classes

Paul Mattick

1972


Primeira Edição: ....

Fonte: Velha Toupeira - https://comunism0.wordpress.com/

Transcrição: Antonio Oliveira

HTML: Fernando Araújo.


«Um marxista não deveria deixar-se enganar por nenhuma espécie de mistificação ou ilusão.»
Herbert Marcuse

I

Por ocasião de um colóquio, reunido em Korcula, na Jugoslávia, Herbert Marcuse perguntava-se se «a revolução é concebível desde o momento em que não corresponda a uma necessidade vital». E precisava que esta necessidade «não tem estritamente nada a ver com as necessidades vitais, tais como melhores condições de trabalho, salários mais elevados, uma maior liberdade, etc, reivindicações estas que a actual sociedade está em estado de satisfazer. Porque é que, portanto, pessoas que vestem bem, que têm um frigorífico bem guarnecido, um aparelho de televisão, um automóvel, uma casa e tudo o mais, ou que esperam vir a possuir tudo isso, haveriam de pensar em destruir a ordem estabelecida?»(1).

Marx, afirma Marcuse, contava com uma revolução operária porque, a seus olhos, as massas trabalhadoras representavam a negação absoluta da ordem burguesa. A acumulação do capital votava os trabalhadores a uma miséria social e material cada vez maior e estes eram portanto levados a voltarem-se contra a sociedade capitalista com o fim de a transformarem. Mas, segundo Marcuse, se o proletariado já não representa a negação do capitalismo, ele deixa simultaneamente de «se diferenciar qualitativamente das outras classes e, consequentemnte, de ser capaz de criar uma sociedade qualitativamente diferente».(2)

Marcuse de modo algum ignora que os países capitalistas avançados sofrem de um mal-estar social, enquanto muitos países sub-desenvolvidos atravessam ou têm fortes possibilidades de virem a atravessar uma situação revolucionária. No entanto, os movimentos subversivos dos países desenvolvidos apenas anseiam a obtenção dos «direitos burgueses» — é o caso da luta dos Negros americanos — enquanto os movimentos dos países sub-desenvolvidos não são de natureza proletária, mas indiscutivelmente nacionalista: o seu objectivo é a libertação do domínio estrangeiro e a eliminação do atraso que é característico dessas nações. O conceito marxiano de revolução já não está de acordo com as condições reais, sustenta Marcuse, visto que o sistema capitalista conseguiu, apesar das suas persistentes contradições, «canalizar os antagonismos de modo a poder manipulá-los. Tanto no plano material como no ideológico, as próprias classes que incarnavam antigamente a negação do capitalismo vêm a integrar-se nele cada vez mais»(3).

E o significado e a amplitude desta «integração que Marcuse expõe detalhadamente na sua obra O Homem Unidimensional(4). A sociedade onde vive o homem integrado é uma sociedade sem oposição, fi claro que a burguesia e o proletariado são as duas grandes classes fundamentais, mas as respectivas estruturas e funções modificaram-se a tal ponto que actualmente «já não parecem ser agentes de transformação social»(5). Não deixando de acentuar que a sociedade industrial avançada está «à altura de impedir uma transformação qualitativa da sociedade num futuro previsível», Marcuse não deixa no entanto de admitir a existência de «forças e tendências capazes de outras vias e até de fazerem explodir a sociedade»(6). Parece-lhe, todavia, evidente ser a primeira tendência a dominante e, quaisquer que sejam as condições propícias a uma viragem da situação, «elas são utilizadas no sentido de a evitar»(7). Esta situação poderá, sem dúvida, vir a ser modificada por um motivo fortuito, mas «se o homem não modifica o seu comportamento ao tomar consciência do que se tornou e do que lhe é proibido, não será uma catástrofe que lhe ocasionará uma mudança qualitativa»(8).

Eis suprimidos num ápice, enquanto agentes de transformação histórica, não só a classe trabalhadora mas também o seu antagonista burguês. Tudo se passa como se uma sociedade «sem classes» nascesse no seio da sociedade classista «visto que um poderoso interesse une os antigos adversários para manter e reforçar as instituições»(9). As causas disto, segundo Marcuse, residem no facto de o progresso tecnológico — que transcende o modo de produção capitalista — tender a criar um aparelho de produção totalitário que determina não só os empregados, as qualificações e as atitudes socialmente necessárias, mas também as necessidades e as aspirações dos indivíduos. Assim, «já não existe oposição entre vida privada e vida pública, entre necessidades individuais e necessidades sociais. A tecnologia permite instituir formas de controle e coesão sociais simultaneamente novas, mais eficazes e mais agradáveis(10). Por seu intermédio, diz Marcuse, a cultura, a política e a economia amalgamam-se num sistema omnipresente que devora ou repele todas as alternativas. Este sistema tem uma produtividade e um potencial crescente que estabilizam a sociedade e enquadram o progresso técnico no esquema da dominação»(11).

Sem dúvida que o nosso autor admite que uma parte do globo escapa ainda hoje à tendência do poder e coesão social de tipo totalitário, o que no entanto não poderá durar muito tempo, dado que esta tendência está em vias de ganhar «as regiões do mundo menos desenvolvidas e mesmo pré-industriais e criar similitudes entre o desenvolvimento do comunismo e o do capitalismo»(12). Na verdade, «a transformação política não pode por si só tornar-se uma transformação social e qualitativa senão na medida em que pode vir a desenvolver uma nova tecnologia»(13).

Seguramente, Marcuse não se preocupa com uma descrição realista das condições existentes; prefere tentar descobrir as tendências que se manifestam no seio deBtas condições, fi devido às virtualidades do actual sistema tomarem forma sem encontrarem oposição que parece deverem conduzir a uma sociedade totalitária completamente integrada. Para opôr resistência a este movimento seria necessário que as classes oprimidas «se libertassem simultaneamente delas próprias e dos seus senhores»(14). Transcender condições estabelecidas, eis o que pressupõe uma transcendência no seio destas condições: esforço que a sociedade unidimensional proibe ao homem unidimensional. E Marcuse conclui nestes termos: «A teoria crítica da sociedade não possui conceitos que permitam ultrapassar o desnível entre o presente e o futuro; nada conseguiu e nada promete; conservou-se negativa»(15). Por outras palavras, a teoria crítica — ou marxismo — não merece mais do que um tirar de chapéu à sua passagem.

II

Pela recusa que opõe às condições, aparentemente pouco susceptíveis de mudarem, desta nova «barbárie», arrogante ao ponto de se apresentar como a flor da civilização, Marcuse transforma o seu negativismo numa crítica social eficaz, que permaneceria válida mesmo se as tendências que dela deriva nfio se realizassem, ou se se realizassem de modo diferente do que ele prevê. Ainda que o seu pessimismo acerca do «futuro previsível» pareça excessivo, é contudo forçoso reconhecer que este pessimismo não deixa de se justificar nas condições existentes. Actualmente, como no passado, deixa-se de contar com uma revolução operária desde que se espere ver os problemas sociais resolvidos por meios reformistas no contexto do capitalismo. Na verdade, ao acreditar nisto, a revolução não só parece altamente improvável mas também totalmente desprovida de sentido. Este desenvolvimento da sociedade unidimensional, este nascimento do homem unidimensional, não são factos a deplorar; pelo contrário, são celebrados como a obra última do trabalho e do capital, com vista ao maior bem-estar de todos. Marcuse distingue-se de semelhantes «críticos» do marxismo e da revolução proletária ao tomar posição contra os resultados «finais» dos esforços reformistas. Assim, é de opinião que o mundo está num estado desesperado e miserável, precisamente porque não houve revolução proletária (e tudo leva a «rer que a não haverá), não se tendo o marxismo mostrado à altura de um capitalismo de elasticidade comprovada, e susceptível não só de superar as virtualidades revolucionárias da classe operária, mas ainda de as utilizar em seu proveito.

Dada a presente situação dos países capitalistas avançados, a história parece dar mais razão ao revisionismo «marxista» do que ao marxismo revolucionário. Este último foi o produto de um período de desenvolvimento em que a acumulação do capital significava, na verdade, a crescente miséria para a população trabalhadora. No entanto, nos inícios deste século, pode-se perceber claramente que havia divergência entre o prognóstico marxiano, quanto aos seus aspectos fundamentais, e o curso real do desenvolvimento; o capitalismo de modo algum implicava a pauperização contínua dos operários, e os próprios trabalhadores, em vez de atingirem um grau mais elevado de consciência de classe, viriam a sentir-se cada dia mais satisfeitos com a melhoria regular da sua situação. A guerra de 1914 revelou que a classe operária deixara de ser uma força revolucionária.

As misérias da guerra e da depressão prolongada a que deu origem despertaram, por pouco que fosse, a vontade de oposição da classe operária; o espectro da revolução social voltou a assustar o mundo. Ora, o capitalismo mostrou-se capaz, uma vez mais, de canalizar as energias assim colocadas em movimento e de as monopolizar para fins que só a ele diziam respeito. A segunda guerra mundial e as suas repercussões a todos os níveis provocaram, quer no plano da acção prática, quer no da ideologia, um eclipse quase total do socialismo proletário. De nada serviria contestar um facto tão evidente. Mas é também evidente que o sistema capitalista é obrigado a melhorar constantemente a condição da classe trabalhadora; doutro modo, não deixará de surgir uma oposição eficaz. E caso não o consiga de um modo contínuo, a sua actual «coesão» poderia esfumar-se de novo. O que aliás já aconteceu aquando de certas crises prolongadas.

Para justificar o seu pessimismo, Marcuse afirma que o capitalismo recuperou a faculdade de resolver os problemaseconómicos por meios políticos. Segundo ele, o regime do «laissez-faire», com o seu cortejo de crises cíclicas, cedeu o lugar a «uma economia de lucro dirigida pelo Estado e pelos grandes monopólios, a um capitalismo organizado»(16). Igualmente considera como coisa estabelecida que o sistema assegura o crescimento regular da produção e da produtividade, graças especialmente à automatização, e pode, por isso, continuar a garantir um nível de vida elevado àqueles a quem dá trabalho. No imediato, como no mediato, existe — pensa Marcuse — uma «abundância» que, tendo como origem uma «concentração a nível sem precedentes dos poderes cultural, político e económico», satisfaz suficientemente as necessidades materiais dos homens para apagar neles a sede de mudança social e provocar o aparecimento de um «mundo da Identificação».

Inúmeros teóricos sociais evocaram, fosse isso motivo de satisfação ou de lamento, a eventualidade de um «capitalismo organizado». Esta ideia encontra-se, por exemplo, na base do cartel geral que Hilferding(17) professava, em que a produção era totalmente integrada, só a distribuição conservando um carácter antagónico. Mas, se um sistema deste género é talvez concebível à escala nacional, de modo algum o é à escala mundial e é esta a razão, aliás, por que apenas seria realizável de uma maneira parcial no interior de um só país. Na medida em que foi posta em prática, a forma organizada do capitalismo revelou-se antes de mais uma reacção às pressões da concorrência internacional. E quanto mais esta «planificação» se tornava realidade e transformava os mecanismos do mercado, mais o sistema capitalista se afundava no caos e na destruição. As relações de propriedade capitalista barram o caminho a uma verdadeira organização social da produção; foi só onde estas relações foram destruídas, na Rússia por exemplo, que se mostrou ser possível organizar centralmente a produção, pelo menos até um certo ponto, mantendo-se antagónico o sistema de distribuição. No entanto, ainda neste caso, o carácter da economia mantém-se igualmente determinado pela concorrência internacional e, nesta medida, este tipo de «organização» contribui para perpetuar a anarquia geral da produção de capital.

Segundo Marcuse, esta situação conduz à «coexistência do capitalismo e do comunismo», pela qual ele explica simultaneamente as «metamorfoses do capitalismo e a desfiguração que a ideia original do socialismo sofreu na prática»(18). Não só a coexistência impede a completa realização do socialismo, como ainda aparece como a «força motriz» do crescimento geral da produtividade e da produção. Ela acelera, diz Marcuse, «a estabilização do capitalismo e, por isso, a integração social no interior da sociedade capitalista; dá-se uma suspensão das antíteses e das contradições no seio desta sociedade»(19).

Ninguém pensa em contestar que a produtividade se desenvolveu, quer nos países ditos «comunistas» quer nos países capitalistas, no sentido clássico do termo, e que continuará a progredir ao ritmo dos progressos da tecnologia. Mas isto, longe de conduzir forçosamente a uma estabilização maior e a uma integração social mais vasta, pode ter — e segundo a nossa opinião deverá ter — resultados absolutamente contrários.

III

Além de a acumulação do capital, provocada pela concorrência, engendrar uma «força motriz» capaz, por sl só, mesmo na falta de qualquer «coexistência», de elevar a produtividade do trabalho, um outro aspecto deve ficar bem claro, a saber: a dinâmica da produção do capital não se identifica com o progresso tecnológico. Na verdade, não são a produtividade e a produção como tais que fazem avançar o capitalismo, mas a produção de lucros, enquanto condição prévia para a acumulação do capital. Assim, a baixa de produção em tempo de crise provém não de uma incapacidade material para a produzir, mas de uma incapacidade para produzir lucro. É a superabundância de mercadorias que torna manifesta a diferença entre produção tout court e produção capitalista. O que determina o estado da economia capitalista não é portanto a aptidão técnica para criar «abundância»; é, antes de mais e fundamentalmente, a capacidade ou a incapacidade para produzir uma abundância de lucro. A tecnologia da «abundância» — real ou virtual — de modo algum implica uma abundância efectiva, adequada à cobertura das necessidades sociais de hoje.


É inegável que na época moderna os salários reais aumentaram, mas apenas no contexto da expansão do capital, que supõe que a relação entre os salários e os lucros se mantém em geral constante. A produtividade do trabalho deveria então elevar-se com rapidez suficiente a fim de permitir simultaneamente a acumulação de capital e o aumento do nível de vida operário. Mas durante as fases de depressão havia mudanças passageiras nesta tendência. Quando a acumulação sofria um tempo de pausa, os níveis de vida ou baixavam ou mantinham-se idênticos aos anteriores à emergência do capitalismo. Segundo Marx (e presume-se aqui que o leitor conhece a sua teoria do desenvolvimento do capitalismo), a acumulação conduz necessariamente a uma baixa do lucro em relação à massa cada vez maior do capital e, assim, a crises suficientemente profundas para desencadear convulsões sociais, ou mesmo a subversão do sistema no seu conjunto. Mas a «lei geral da acumulação capitalista», tal como Marx a elaborou a partir de considerações totalmente abstractas sobre a estrutura e dinâmica do sistema, não fixa precisamente nenhum dia, tarde ou cedo — e mais provavelmente mesmo: muito tarde — para que as contradições inerentes à acumulação do capital atinjam um limiar crítico.

Concretamente, para atenuar os obstáculos encontrados pela valorização do capital, são postos em prática todos os meios susceptíveis de restabelecer a rentabilidade indispensável. Se produzem efeito, estes meios vêm a prolongar a existência do capitalismo. No entanto, um simples aumento da produção não é um índice seguro da expansão; além disso, é necessário que o aumento assegure a formação do capital e o faça a um ritmo acelerado. Em tempo de guerra é fácil verem-se enormes aumentos de produção mas que são acompanhados por uma taxa de formação de capital excessivamente baixa. O sobretrabalho, em vez de ser transformado em capital sob a forma de meios de produção adicionais e geradores de lucro, é delapidado na produção de guerra e serve para destruir o capital já acumulado.

Do mesmo modo, em tempo de «paz», a produção pode aumentar apesar de uma taxa de formação do capital em estagnação, ou mesmo em baixa, graças aos efeitos compensadores da produção induzida pelo Estado {government-induced production). O desenvolvimento do sistema de «economia mista» é a prova de que o capitalismo se encontraria em depressão, não fosse a expansão do sector sob controle estatal. Marx previu, é sabido, o declínio e o fim do capitalismo liberal. Manifestamente, a evolução real do sistema não desmentiu ainda esta previsão. E Marcuse, também ele, diz e rediz que «a economia apenas funciona graças à intervenção directa ou indirecta do Estado nos vários sectores vitais»(20). Mas que consequências acarreta esta intervenção para a economia do sector privado? É questão assente que esta intervenção estimula a produção e, com isso, origina um crescimento do aparelho de produção, superior ao que ocorreria na sua ausência. Na medida em que a acumulação do capital se prossegue, é o Estado que a causa. Este põe em acção meios produtivos que não lhe pertencem propriamente, comprando certos produtos às empresas privadas. Se estas transacções têm como objectivo a estabilização da economia de mercado, é necessário que a produção provocada pelo Estado não seja concorrencial. Pois se este comprasse artigos de consumo ou bens duráveis para oferecer, reduziria outro tanto a procura privada das mercadorias em questão. Se fabricasse uns e outros em empresas que lhe fossem próprias e os pusesse à venda, o Estado agravaria simultaneamente as dificuldades dos seus concorrentes privados que veriam diminuir a sua fracção de mercado, no qual a procura não é infinita. As compras de ordem governamental, e a produção que provocam, devem ocorrer fora do sistema do mercado e vir acrescentar-se à produção destinada a este. Dizem portanto respeito a bens e serviços qua não cabem na economia de mercado, a saber: os trabalhos públicos e todas as espécies de outras despesas estatais.

Esta divisão entre produções pública e privada nada tem de absoluto. Necessidades políticas podem levar o governo a intervir na esfera da produção privada, subvencionando, por exemplo, o fabrico de certas mercadorias, ou através da compra dos excedentes com vista a distribuí-los a título de ajuda ao estrangeiro ou aos próprios nacionais.

Há por vezes interpenetração de empresas públicas e privadas em certos sectores da economia, quer ao nível da produção quer do seu escoamento e financiamento. Mas não deixa de ser adequado falar, em termos gerais, de uma divisão da economia em sector privado, alimentado pelo lucro, e sector público, mais restrito e escapando aos imperativos da rentabilidade. O primeiro é obrigado a realizar lucros no mercado; o segundo, apesar de não ter essa preocupação, não deixa contudo de afectar, com o simples facto da sua existência e actividade, as relações de mercado no seio do sector privado.

O Estado desenvolve a «procura efectiva» comprando à indústria privada e financia as suas compras pelo imposto ou por empréstimos emitidos sobre o mercado dos capitais. No primeiro caso ele não faz mais do que transferir para o sector público dinheiro ganho no sector privado, o que pode modificar em alguns aspectos a orientação da produção, mas sem que necessariamente a aumente. No segundo caso, estas compras podem ter o mesmo efeito, mas ao aumento de produção corresponde um aumento da divida pública, consecutivo ao «financiamento através do déficit orçamental».

O capital existe sob duas formas: «líquida» e temos o dinheiro, ou «fixa», e consta então de meios de produção e de matérias-primas. O dinheiro emprestado ao Estado põe em acção recursos produtivos. Estes recursos são propriedade privada; para funcionarem como capital devem ser reproduzidos e alargados. A amortização das instalações e os lucros retirados da produção ligada a contratos passados pelo Estado — e que não é realizável sobre o mercado — são «realizados» graças ao dinheiro emprestado a este último. Este dinheiro permanece propriedade privada e é emprestado a uma certa taxa de juro. Assim, a dívida pública sobrecarrega-se regularmente com os custos da produção induzida pelo Estado.

A fim de pagar as suas dívidas, capital e juros, o Estado é obrigado a recorrer ao imposto ou ao lançamento de um novo empréstimo. O custo da produção ligada às encomendas estatais fica portanto a cargo do capital privado, ainda que esta despesa se encontre repartida pelo conjunto da sociedade e a um longo prazo. Ou seja: os produtos que o Estado «compra» não são verdadeiramente comprados mas fornecidos gratuitamente, na medida em que este nada possui para dar em troca, salvo a sua garantia que, por sua vez, não tem outra base além dos impostos que compete ao Estado aplicar e à inflação monetária que ele pode permitir. Inútil entrar aqui em detalhes complexos deste processo. Na verdade, seja qual for o modo pelo qual o volume do crédito se eleva, independentemente do método utilizado para aumentar a produção induzida pelo Estado, uma coisa é clara: o único meio de o Estado cumprir os prazos da Dívida e dos seus juros é através da restrição do rendimento actual e futuro segregado pelo sector privado.

Se não é causada pela guerra, a intervenção do Estado encontra a sua razão de ser no defeituoso funcionamento da produção privada. Esta última não produz suficiente lucro para financiar a sua própria expansão, condição no entanto fundamental para o pleno emprego dos seus recursos produtivos. Apenas uma produção não rentável pode desenvolver a rentabilidade global; se o capital produzir sem preocupação de rentabilidade, não funciona como capital. Ainda que as suas capacidades produtivas sejam postas em prática graças a contratos passados pelo Estado, os «lucros» desse modo realizados e o «capital acumulado» neste processo não passam de dados contabilísticos referentes à dívida pública, e não meios de produção efectivos e geradores de lucro. E isto mesmo quando o aumento do aparelho material de produção acompanha o aumento da produção. Quando a produção induzida peio Estado aumenta relativamente mais depressa que o conjunto da produção social, há uma baixa proporcional da formação de capital privado, baixa que dissimula o crescimento da produção efectuada por conta do Estado, e portanto os «lucros» tomam a forma de créditos sobre este.

Na medida em que a produção estatal é em si mesma um índice da baixa da taxa de formação do capital (no sentido tradicional), está excluída a hipótese de poder servir de veículo a uma expansão do capital privado suficientemente ampla para garantir o pleno emprego e a prosperidade geral. Em vez disso, ela trava a expansão, dado que as exigências do governo em matéria económica, do mesmo modo que o serviço da dívida pública, desviam do caminho da capitalização a título privado uma parte crescente dos lucros que acabam de ser realizados.

É claro que se o governo resolvesse repudiar as suas dívidas, os «lucros» realizados sob a sua acção revelar-se-iam o que na realidade são: lucros imaginários. Embora esta medida se venha a tornar um dia inevitável, os governos tudo farão para a retardarem tanto mais quanto o repúdio da Dívida não poderá, por si só, accionar a acumulação privada do capital. Entretanto, assistimos, é evidente, a uma depressão lenta mas regular dos rendimentos e títulos de empréstimos por causa da inflação — consequência obrigatória do desenvolvimento da produção induzida pelo Estado através de um financiamento baseado no déficit orçamental.

Apesar da prosperidade bastante relativa que os países industriais avançados conhecem há já um longo período, nada permite afirmar que a produção de capital conseguiu ultrapassar, graças às intervenções do Estado na economia, as contradições que lhe são inerentes. Estas intervenções denotam a persistência de uma crise da produção e a expansão do sector sob controle estatal constitui um índice seguro do declínio da economia de empresa privada. Para pôr um termo a este declínio, necessário seria não só travar a enorme expansão da produção provocada pelo Estado, mas também restaurar a faculdade de desenvolvimento espontâneo que durante algum tempo caracterizou a produção de capital; a curto prazo isso significaria inverter totalmente a tendência geral do desenvolvimento capitalista do séc. XX. E como isto é deveras improvável, o Estado ver-se-á constrangido a invadir cada vez mais o sector privado e fazer-se assim o agente da liquidação da economia de mercado. Mas, em todos os casos em que o Estado represente o capital privado, ele não desempenhará essa tarefa sem dificuldade e terá que afrontar a oposição cada vez mais aguerrida do capital privado. Estas tergiversações inevitáveis correm o grande risco de provocarem uma passagem brutal da prosperidade aparente à crise económica.

É claro que Marcuse não contesta a existência de «um conflito entre sector público e sector privado». Porém, está longe de pensar que «esse conflito seja explosivo ao ponto de vir a provocar a queda do capitalismo», especialmente, afirma, porque tais conflitos «não são coisas novas na história do sistema»(21)

É evidente que sempre existiu uma oposição à dominação do Estado. A ideologia do «laissez-faire» é um exemplo disso. No entanto, o actual conflito objectivo entre o Estado e os interesses privados reveste um carácter totalmente diferente, devido ao crescimento relativamente mais rápido que a produção sob controle estatal conhece no quadro da expansão geral do capital. Esta modificação quantitativa anuncia uma transformação qualitativa, pouco desejada sem dúvida, mas inelutável. O capital privado é obrigado a opor-se-lhe com a mesma resolução com que se decide a lutar contra o socialismo na medida em que, a partir do momento em que o Estado gerir a economia como senhor absoluto, a empresa privada terá os dias contados. Eis a razão porque o capitalismo «liberal» combate os sistemas capitalistas de Estado com tanta intensidade como se se tratasse de regimes socialistas. Segundo o seu ponto de vista, o dos interesses práticos, uns não valem mais do que os outros, independentemente mesmo da distância que separa o sistema capitalista de Estado (ou socialismo de Estado) organizado à escala nacional da «ideia original do socialismo».

A oposição objectiva entre a produção privada e a que se encontra sob a protecção do Estado é ainda difusa; ela aparece como cooperação subjectiva entre as instâncias privadas e públicas no seio de uma economia regida em princípio pelo mercado. E se, no entanto, esta «cooperação» subsiste, é unicamente devido ao facto de o Estado estar submetido às necessidades específicas do grande capital. Mas estas necessidades particulares estão em contradição com as necessidades gerais da sociedade e os conflitos sociais que aí se originarem não deixarão de se transformar em conflitos que põem em causa o papel económico do Estado, ou seja, em lutas políticas pela direcção do Estado e visando reduzir, ou pelo contrário alargar, as intervenções deste na economia. Esta luta transcende as condições estabelecidas — quer com o objectivo de as fazer regressar a um nível anterior, quer para as fazer avançar — e isto no próprio seio destas condições.

IV

O capitalismo não se transformará só por si em socialismo. Mas também não se poderá manter indefinidamente no estádio de «economia mista», no qual o Estado resolve os problemas da produção por meios políticos. A própria intervenção do Estado tem por barreira os limites da produção de capital: a organização de uma produção social pressupõe a expropriação do capital privado. No entanto, tão difícil será fazer uma revolução capitalista de Estado como uma revolução socialista. Além disso, e a menos que os recursos produtivos sejam nacionalizados, todas as intervenções de ordem estatal na economia de mercado (que terão talvez por efeito o aumento proporcional da produção) se virão a juntar num futuro previsível às dificuldades que atingem a formação do capital ligado à concorrência.

Segundo Marx, a relações sociais (ou relações de produção) determinadas correspondem forças produtivas sociais específicas. As primeiras estão na origem das segundas, inerentes à existência daquelas. A relação capital-trabalho condiciona o progresso tecnológico considerado enquanto acumulação de capital. E unicamente no contexto da formação de capital que a ciência e a técnica contribuem para o desenvolvimento da capacidade de produção social graças à elevação da produtividade do trabalho. Enquanto as relações capitalistas de produção reinarem, as possibilidades que a produção socialista oferece não poderão ser convenientemente exploradas, significando a sua realização precisamente a destruição dessas relações. Alcançado um certo estádio do seu desenvolvimento, o capitalismo trava o desenvolvimento das forças produtivas e, do ponto de vista da produção, este sistema social, ainda ontem progressivo, torna-se antes regressivo.

O próprio Marcuse acentua que, segundo a teoria de Marx, «é o modo social de produção e não a técnica que é o factor histórico fundamental»(22). No entanto, desvia-se desta posição ao afirmar que «a sociedade defende a sua estrutura hierárquica, explorando cada vez mais eficazmente os recursos naturais e intelectuais e distribuindo numa escala sempre mais vasta os benefícios dessa exploração»(23). Ou seja, Marcuse acredita que o capitalismo pode simultaneamente continuar a engendrar forças sociais de produção e salvaguardar a sua estrutura de classe. O que significa dizer que não é o carácter de classe do capitalismo que bloqueia os progressos da tecnologia mas, pelo contrário, é esta última que assegura a sobrevivência do sistema.

«O progresso técnico, a própria tecnologia, afirma o nosso autor, transformaram-se num novo sistema de domínio e exploração»(24), que já não encontra oposição e goza da adesão activa, ou passiva, de todas as classes sociais. Mas sobre este ponto Marcuse não sabe muito bem onde se encontra. E chega a afirmar: «Eu não disse ser a técnica o factor determinante da situação»(25) e a expllcar-se nestes termos:

«O progresso técnico e a tecnologia estão organizados de um modo específico e é este mesmo modo de organização da técnica que, em grande medida, assegura a coesão do sistema existente nos países altamente desenvolvidos»(26)

Segundo a opinião de Marcuse, a actual tecnologia é específica do capitalismo, sem que no entanto venha em nada impedir o seu progresso. Pelo contrário, torna-se uma saída para a ordem estabelecida e é portanto o obstáculo mais importante para a sua abolição. Igualmente para Marx, ciência e tecnologia estão ligadas ao capitalismo, mas apenas no sentido em que a sua orientação e desenvolvimento são determinados e limitados pelas relações de produção capitalistas. Se estas relações forem eliminadas, a ciência e a tecnologia seguirão um rumo diferente e desenvolver-se-ão sem obstáculos, em função das decisões conscientes e racionais do homem integralmente socializado. Para Marx, nem a ciência nem a tecnologia constituem um sistema de dominação; é o domínio do capital sobre o trabalho que faz da ciência e da tecnologia — como de tudo aliás — um instrumento ao serviço da exploração e do poder de classe. Para Marcuse, pelo contrário, já não é o capitalismo que determina o estado e a natureza da tecnologia, mas antes a tecnologia que determina o estado e a natureza do capitalismo.

«Marx, crê poder afirmar Marcuse, não previu a sociedade tecnológica desenvolvida. Ele não previu tudo o que o capitalismo (...) pôde realizar explorando simplesmente os progressos da técnica»(27). E, no entanto, o próprio Marcuse o reconhece, tudo quanto o capitalismo poderá vir a realizar neste plano é subsistir, mantendo o progresso tecnológico nos limites da dominação de classe. Mas pelo facto de esta tecnologia gozar do apoio, grosso modo, de todas as camadas do corpo social, a quem serve para satisfazer necessidades materiais, pode assim assegurar o seu domínio sobre a sociedade de classe e o seu crescimento no seio desta.

Afirmar que «Marx não previu a sociedade tecnológica desenvolvida» não é de modo algum justificável quando se sabe que Marx pensava na «abolição do trabalho» graças ao desenvolvimento das forças sociais de produção, que englobam a ciência e a tecnologia. O que é verdade é que Marx não pensava que se pudesse ir tão longe nesta via dentro dum contexto capitalista, o que é mais uma razão para exigir a sua destruição.

A utópica «abolição do trabalho» supõe a abolição do capitalismo ou de toda a forma de exploração que lhe possa suceder. Este objectivo, que não é de esperar para hoje, só tem a utilidade de apontar o sentido geral que o desenvolvimento social deve seguir para que o tempo de trabalho necessário diminua e ceda lugar ao tempo livre(28).

A «abolição do trabalho» é não só um objectivo inacessível mas além disso inumano, na medida em que foi o próprio trabalho que diferenciou o homem do animal e criou o género humano. Falar de «abolição do trabalho» não tem sentido salvo se com isso se quiser exprimir o fim do trabalho necessário, do trabalho forçado. O tempo livre pode igualmente ser um «tempo de trabalho», mas de um trabalho que se escolheu com vista a obter toda a espécie de fins sejam eles de ordem social ou individual. O que, no entanto, tem por condição imprescindível a redução do tempo de trabalho necessário para reproduzir a vida social e portanto a elevação da produtividade do trabalho, a partir das aplicações da ciência e da tecnologia.

Na época de Marx concebia-se o socialismo como o fim da exploração. Uma vez as forças sociais de produção libertas dos pesados obstáculos capitalistas, um tempo máximo livre seria assegurado. Era o próprio socialismo que pressupunha a revolução socialista. Porém, Marcuse julga oportuno pôr em questão a validade do conceito (marxiano) segundo o qual «o reino do trabalho deve permanecer o reino da necessidade, enquanto o reino da liberdade só se pode desenvolver acima e para lá do primeiro». Porque, afirma, «o fim do trabalho necessário está à vista, não como uma utopia mas sim como uma possibilidade muito real»(29).

É claro que Marcuse tem o cuidado de proferir os seus prognósticos sob forma de interrogações. Por isso pergunta: «Que acontecerá quando na sociedade tecnológica de massa o tempo de trabalho — o tempo de trabalho socialmente necessário — se reduzir a um mínimo e o "tempo livre" não esteja longe de ocupar todo o tempo?»(30). Simples pergunta, sem dúvida, mas que colocada pressupõe já a possibilidade de se vir a assistir à realização de um tal estado de coisas. No entanto, quando analisadas no contexto do capitalismo, todas estas questões aparecem nitidamente erradas. A revolução técnica necessária para eliminar o tempo de trabalho em favor do tempo «livre» é incompatível com o sistema capitalista.

O capital não passa de sobretrabalho cristalizado sob a forma de mais-valia. E do trabalho vivo que se alimenta e é graças a este que se realiza. Na medida em que o desenvolvimento tecnológico é função da valorização do capital, o capital acumulado é a materialização do trabalho não pago. Reduzir o tempo de trabalho (sem mesmo falar em o abolir) é portanto reduzir também o tempo de trabalho não pago e, consequentemente, a formação de capital. E claro que o tempo de trabalho não pago pode aumentar à custa do trabalho pago, mesmo no caso de diminuição do tempo de trabalho total, graças à elevação da produtividade do trabalho no contexto da expansão do capital. Como é preciso uma menor soma do tempo de trabalho para obter o equivalente em mercadorias do rendimento do trabalhador, uma maior parte do tempo de trabalho pode tomar a forma de produtos açambarcados pelos capitalistas.

Mas a contínua redução do tempo de trabalho pode também provocar finalmente a redução do trabalho não pago; cessando a partir de então o processo de crescimento do capital devido ao desenvolvimento da produtividade do trabalho. Sem trabalho não há sobretrabalho e consequentemente capital.

Por mais elevado que seja o nível da automatização e o equipamento em computadores, jamais os meios de produção trabalharão sozinhos e tão pouco se reproduzirão. Mesmo na hipótese, das mais ousadas, de os próprios proprietários e capitalistas se comprometerem na produção, imediatamente deixariam de ser capitalistas, isto é, de comprarem força de trabalho com vista à sua exploração. Supondo, o que é mais provável, que continuamente se conseguiria reduzir o número de trabalhadores produtivos, o tempo de trabalho não pago seria reduzido em relação à massa do capital acumulado. Neste caso, o desenvolvimento do processo de formação do capital tornar-se-ia cada vez mais difícil, na medida em que este não passa de tempo de trabalho não pago, transformado em meios de produção adicionais e geradores de lucro.

As relações capital-trabalho são relações de valor. O que significa que os meios de produção não são apenas meios de produção mas igualmente valores-capital e que a força de trabalho não só é força de trabalho mas também a origem do valor e da mais-valia. Para se realizar, o processo de produção capitalista exige a existência de uma relação bem determinada entre a mais-valia e o valor do capital; a grandeza do capital tem que ser tal que permita a reprodução alargada da mais-valia. Como as relações de valor apenas são relações de tempos de trabalho, deveria ser evidente (aos olhos de um marxista, pelo menos) que uma redução do tempo de trabalho, susceptível de perturbar a relação necessária entre a mais-valia e o capital, não è compatível com o capitalismo e terá como consequência interromper o processo, ou mesmo pôr-lhe um termo.

V

Este tipo de raciocínio é sem dúvida de um nível de abstracção elevado. Mas só assim é possível tornar claras as relações sociais fundamentais, dissimuladas pelas categorias económicas capitalistas. Estas redações, embora fixem os limites da produção do capital, não afectam o comportamento dos capitalistas. E, consequentemente, se a redução do tempo de trabalho-social acaba por prejudicar a produção de capital, a dos custos salariais permanece um imperativo ao qual nenhuma empresa individual ou monopolista poderá deixar de se submeter. Na verdade, a rentabilidade de uma empresa aumenta na medida em que conseguir a contracção dos seus custos salariais. Eis a razão por que, no contexto do processo de formação do capital, é impossível pôr termo à substituição do trabalho pelo capital, mesmo que ela sabote as próprias bases da sociedade capitalista.

O fundamento do progresso social é produzir o máximo com um mínimo de trabalho, regra de que o capitalismo não é excepção. A tecnologia substitui-se cada vez mais ao trabalho humano; ou seja, a produção aumenta graças ao crescimento da produtividade. Mas no caso de uma elevada taxa de formação do capital, pode ver-se um aumento do número absoluto de trabalhadores acompanhar uma diminuição desse mesmo número em relação à massa acrescida do capital. Só em caso de estagnação relativa do capital é que o progresso tecnológico conduz a uma diminuição em termos absolutos do número de trabalhadores.

A elevação da produtividade não tem apenas como consequência o facto de o número de trabalhadores se reduzir em relação à massa do capital, em expansão, mas ainda de o tempo de trabalho diminuir do mesmo modo. Na verdade, os progressos realizados em matéria de técnicas do trabalho e rendimento das máquinas permitem actualmente produzir mais em menor tempo. A redução do período de trabalho não passa de uma expressão para designar a alta dos salários reais, imposta aos capitalistas quer pela luta operária quer pela racionalidade característica dos métodos de produção modernos.

Continuando a alimentar-se de trabalho e a transformar a maioria da população em trabalhadores asssalariados, o capitalismo apresenta como efeito a constante diminuição do número de trabalhadores e do seu tempo de trabalho, em relação à massa de produtos que estão aptos a produzir. Por um lado o capitalismo aspira a um máximo de mais-valia, por outro é-lhe necessário produzir um máximo de mercadorias com um mínimo de trabalho. O «ideal» seria, é claro, a extracção de um máximo de sobretrabalho do maior número possível de operários. Porém, este «ideal» está em contrdição com as realidades da produção de capital e do processo de circulação a que dá origem.

As unidades de capital particulares que produzem para o mercado realizam os seus lucros pela venda de mercadorias. Submetidas à pressão da concorrência, pretendem constantemente reduzir os seus custos de produção, o que para cada uma delas significa principalmente os custos salariais. Apenas as inovações tecnológicas, que permitem a uma soma de trabalho idêntica ou mesmo menor a produção de uma maior quantidade de mercadorias, actuam em sentido contrário àquela pressão. O processo reflecte-se numa alteração da relação capital-trabalho, dado que um número relativamente menor de trabalhadores põe em movimento uma maior quantidade de capital, sob a forma de meios de produção.

Se concebermos este fenómeno em termos de valores abstractos verifica-se que o capital investido nos meios de produção aumenta mais rapidamente que o investido na força de trabalho: há baixa da taxa de lucro medida em relação ao capital total. Mas os capitalistas não sentem a necessidade de se preocuparem com isso (e na verdade não se preocupam) visto que, se chegarem a vender a produção acrescida a preços competitivos, realizam por esse meios os lucros que habitualmente retiram do capital. Graças ao progresso tecnológico, a maior produção do trabalho posto em movimento faz mais do que compensar a relativa diminuição da soma de trabalho e o processo de acumulação pode prosseguir.

No entanto, nada permite supor que um aumento da produção possa alargar automaticamente o mercado, nem que a elevação da produtividade atenue mecanicamente os efeitos da baixa tendencial da rentabilidade. Pode acontecer que as diversas etapas do processo não cheguem a engrenar de molde a originarem uma expansão contínua e, portanto, a elevação da produtividade não será suficiente para neutralizar a tendência da taxa de lucro para a baixa, em consequência de transformações estruturais do capitalismo. Os lucros realizados no plano da produção podem não o ser no do mercado; uma multidão de outros obstáculos pode vir a atrasar ou interromper o processo de formação do capital. Desde sempre, o desenvolvimento do capitalismo tem sido marcado por depressões de uma gravidade e duração crescentes.

Segundo os capitalistas, as dificuldades de ordem económica estão ligadas a problemas de mercado, a uma ausência de procura efectiva que provoca uma redução da produção e do emprego. Contudo, nada como estas dificuldades conduzem tão depressa à expansão. A estagnação, ou a depressão, dando o golpe de misericórdia a muitas empresas, melhora a rentabilidade das que sobrevivem, devido ao facto de disporem então de mercados mais vastos. Mais concentrado, o capital vê a partir daí abrir-se-lhe uma esfera de actividades mais ampla. Ele irá defender e consolidar esta conquista através da compressão dos custos salariais, em razão dos investimentos na tecnologia de vanguarda. Todas as empresas são obrigadas, pior ou melhor, a agirem desta forma e uma nova vaga de investimentos, modificando a relação lucro-salário, lança de novo a produção. Os problemas do capitalismo, postos em evidência pelo mercado, encontram uma primeira solução na esfera da produção, mesmo quando é preciso esperar, para se chegar a uma solução completa, que as relações de mercado sejam por sua vez afectadas.

Esta breve explicação não tem em conta a complexidade do ciclo industrial. No caso presente basta-nos indicar que se trata fundamentalmente de criar lucro. O desenvolvimento que se segue a cada fase depressiva aumnta a produção em proporções bastante superiores às anteriormente existentes.

No início da depressão, o desaparecimento dos factores expansionistas provocava a depressão da conjuntura até um ponto que provoca a saturação do mercado, a ausênsia do poder de compra ou da procura efectiva. Desde que uma transformação nas condições de produção, de molde a aumentar a rentabilidade do capital, vem pôr em funcionamento o processo de expansão daquele, é o próprio aumento de produção que cria o poder de compra através do dito processo. Na verdade, as condições que em geral se estimam necessárias à prosperidade são as da expansão contínua do capital. Se estas condições não forem reunidas advém então a depressão. No passado, a depressão era a primeira condição para a prosperidade, levando invariavelmente esta a uma nova quebra. Deste modo, o próprio capital «reorganizava-se» por intermédio das flutuações de mercado — provocando alterações ao nível das condições de produção — sem intervenção consciente nos mecanismos do mercado. Mas qualquer transformação nas condições de produção — ou seja, nas relações capital-trabalho — torna sempre mais difíceis as mudanças deste género. Para que a baixa tendencial da taxa de lucro, inerente ao capital, seja contrabalançada pelas mudanças estruturais que a acumulação daquele não deixa de provocar, é preciso, na verdade, que o aumento da massa do capital corresponda daqui em diante a uma elevação cada vez mais rápida da produtividade do trabalho. Ora, o capitalismo do «laissez-faire» deu lugar ao «capitalismo organizado», como lhe chama Marcuse, e pode bem acontecer que a dinâmica do capitalismo de «velho estilo», dando ocasião a crises cada vez mais devastadoras, tenha perdido a sua eficácia na era do capitalismo «novo estilo», caracterizado por traços monopolistas e intervenções massivas do Estado no seio da economia. Estas últimas já foram aqui tratadas. Quanto ao capital monopolista ele apenas intervém como «organizador» em função dos interesses particulares que lhe são próprios no contexto da concorrência; produto inevitável do desenvolvimento capitalista, ele revela-se, apesar disso, um factor de desagregação, e não de integração, deste processo.

O monopólio não existe sem a concorrência. Não é mesmo senão uma forma de concorrência. Entre o sistema monopolista, ou seja, o sistema dos preços administrados, dos preços de monopólio, e a situação global do mercado, existem liames bem estreitos. Quanto maior for o preço de monopólio, menor será a procura para os produtos oferecidosàquele preço, na medida em que a procura do mercado se encontra limitada pelo rendimento social total. E, o que é mais importante, a parte «sobre-paga», que o preço de monopólio compreende, não pode ser usada em mercadorias sujeitas à concorrência. Na verdade, num mundo regido por esta, a procura virá a diminuir proporcionalmente. Sendo a grandeza da procura global determinada pela do rendimento social total, os preços de monopólio fazem descer os outros preços abaixo do nível que teriam em condições de mais perfeita concorrência. Assiste-se assim a uma «transferência» de receitas, dirigindo-se dos sectores económicos onde a concorrência é mais viva para aqueles onde o é menos, mas sem que no entanto se realize qualquer integração da organização social da produção.

Além disso, as «transferências» em questão não afectam forçosamente a grandeza absoluta dos rendimentos que os particulares extraem dos seus negócios, pelo menos enquanto o rendimento social estiver em expansão, ao ritmo do mercado. Si apenas com a estagnação do capital que a monopolização, que em parte é em si mesma uma manifestação de estagnação, resultará de uma progressiva eliminação das empresas regidas pela concorrência. Este processo terá por conclusão «lógica» a monopolização completa da economia, que significará simultaneamente o fim da economia capitalista de mercado.

VI

A estabilização, a organização e a integração do capitalismo de que fala Marcuse são de um tipo particular. Em 1964, por ocasião de uma conferência na «Sociedade Alemã de Sociologia», Marcuse tentou descrever «como, na eficiência da sua razão, o capitalismo, ao alcançar a maturidade, transforma a exterminação planificada de milhões de seres humanos e a apropriação planificada do seu trabalho em fonte de uma prosperidade cada vez maior e de uma vida cada vez mais fácil; a pura loucura torna-se a base não só da continuação da vida, mas também de uma existência mais agradável (...). Quando ainda persiste uma miséria inaudita e uma crueldade sistemática, a "sociedade de abundância" esbanja um potencial extraordinário de capacidades técnicas, materiais e intelectuais e dissipa-o numa mobilização permanente»(31). Mas seria inconcebível que as vítimas deste processo pudessem compartilhar o entusiasmo dos que dele se aproveitam. É a própria situação que provoca uma divisão no seio da sociedade e a existência de forças de oposição enfraquece o conceito marcusiano de «sociedade unidimensional» sem oposição.

E certo, no entanto, que a oposição em causa tem por expressão não uma luta de classes entre o proletariado e a burguesia mas a concorrência capitalista, as rivalidades imperialistas e a guerra fria entre dois sistemas sociais diferentes. Esta é, de há meio século para cá, a situação dominante. Se estes conflitos têm um significado é bem o de demonstrarem a inépcia absoluta do capitalismo para organizar e estabilizar um mundo capitalista integrado, em estado de dominar num futuro previsível.

O capitalismo sempre foi um sistema social simultaneamente produtivo e destruidor, e isto não só através da concorrência do dia-a-dia mas também — a um ritmo acelerado e sob uma forma concentrada — em razão das suas crises. Os conflitos imperialistas, originando-se directamente em rivalidades de ordem económica, conduziram a devastadoras guerras mundiais. Mas, além disso, a destruição de valores-capital, pela concorrência pacífica ou pela guerra, tem como consequência provocar um salto da produção e alargar os mercados. Este carácter destruidor — específico do capitalismo «maduro», segundo Marcuse — na verdade sempre foi comum ao sistema. A única diferença é que anteriormente ele dava origem a consequências sociais bem menos devastadoras e bárbaras; as capacidades de produção, então mais restritas que hoje, limitavam na mesma proporção as capacidades de destruição. Mas esta diferença não é apenas quantitativa; ela eleva-se ao qualitativo, pois o capitalismo possui neste momento a possibilidade técnica de destruir a maior parte do globo e da sua população, ao mesmo tempo que é incapaz de utilizar a guerra para estimular a acumulação do capital.

Os factores destrutivos só podem servir para acumular capitais com a condição de subsistir uma determinada relação entre a produção capitalista e a sua capacidade produtiva.

A destruição de valores-capital, no contexto de uma depressão, afecta apenas uma pequena parte do capital sob a sua forma material. Mas o aparelho de produção mantém-se intacto quanto ao essencial. Simplesmente os valores-capital, depois de haverem sofrido uma desvalorização, encontram-se concentrados num menor número de mãos que anteriormente. Em contrapartida, a guerra destrói o capital quer sob a sua forma material quer sob a sua forma de valor. E se a destruição do capital material é levada demasiado longe, a parte deste capital que sobrevive ao cataclismo regride a uma fase na qual as técnicas de produção avançadas se vêm a tornar anacrónicas. E mais, como o lucro é função da grandeza do rendimento social total, a redução deste reduzirá outro tanto a capacidade de lucro das unidades de capital sobreviventes. Ou seja, estas não terão já possibilidade de escoar a sua produção devido à ausência de compradores, exigindo no entanto a produção e produtividade privadas uma maior produção e produtividade gerais. Para que o processo de conjunto da acumulação possa reiniciar-se, é necessário que as desproporções, devidas às destruições e à desorganização que a guerra causou, sejam primeiro suprimidas.

Duas guerras mundiais não puderam restabelecer as condições de uma produção de capital privado tal como a que, sob uma forma progressiva, existiu no século passado. A última grande crise económica, que conduziu à segunda guerra mundial, durou demasiado tempo e afectou demasiado gravemente o edifício social para que a sua repetição possa ser tolerada como um mal necessário, o preço a pagar pelo regresso à prosperidade e seus benefícios. Crises de uma tal amplitude parecem actualmente inaceitáveis ao nível da sociedade global e é por isso que os governantes são obrigados a tomar medidas para afastar tal ameaça. Perderam a função que anteriormente tinham no contexto da expansão do capital. Quanto ao papel da guerra como meio de acelerar a acumulação, parece evidente que uma terceira guerra mundial entre potências capitalistas desencadearia tais forças destrutivas que seria o fim não só do sistema capitalista mas igualmente do género humano.

De agora em diante nem a guerra nem a crise poderão permitir ao capitalismo subsistir. No entanto, não existe outra via para proceder às enormes transformações estruturais que a contínua expansão da economia exige. Para salvaguardar a estrutura existente, tanto à escala internacional como à de cada país tomado separadamente, ou seja, para manter o pleno emprego dos recursos produtivos, é necessário, daqui para o futuro, que o sector não rentável da produção se desenvolva cada vez mais, é preciso, como diz Marcuse, dissipar «numa mobilização permanente o potencial das capacidades técnicas, materiais e intelectuais». O único modo de continuar neste sentido, sem que a «abundância» desapareça, é a elevação contínua da produtividade do trabalho, na ausência da qual o sector económico em relativo retrocesso, que origina o lucro, perderá a sua indispensável rentabilidade.

Segundo Marcuse, isto é precisamente o que a moderna tecnologia está em vias de alcançar: permitir simultaneamente um esbanjamento sem precedentes da produção e uma «abundância» que, integrando no sistema todas as classes à excepção de uma minoria de mutilados sociais, virá a provocar o nascimento do homem unidimensional. Simultaneamente, assegura Marcuse, os homens trocam a perspectiva de um futuro verdadeiramente à sua medida, em que poderiam eles mesmos forjar o próprio destino, pelo prato de lentilhas dos altos níveis de vida actuais. Como a sua existência seria bem mais sensata — e o seu nível de vida mais elevado — se o desperdício fosse integralmente banido e a produção social orientada racionalmente, em função das necessidades reais da sociedade!

Ora, a «sociedade de abundância» deve precisamente a sua «abundância» à produção para o desperdício (waste-production) a qual, no entanto, não tem como consequência indirecta o aumento da rentabilidade e da taxa de acumulação do capital. Apenas uma produção desenvolvida — graças à substituição do trabalho pelo capital ou às inovações tecnológicas que permitem poupar capital — será capaz de assegurar a manutenção da rentabilidade a um nível necessário. Quanto mais a «abundância» aumentar devido ao desperdício, mais o capitalismo procurará reduzir a parte do trabalho vivo na produção, com vista a evitar a baixa de rentabilidade a que, na sua ausência, o aumento da produção inevitavelmente dará origem.

O constante desenvolvimento da produtividade e da produção, que a experimentação de sistemas que reduzem a parte de trabalho humano engendra, tem duas consequências essenciais: primeira, aumentar a rentabilidade do capital; em seguida, reproduzir a necessidade duma nova e considerável elevação da produtividade, quando a base da formação do capital se começa a restringir sem cessar. Mesmo quando as invenções que permitem poupar capital permitirem preencher o crescente desnível entre o capital investido nos meiosde produção e o que é empregue na força de trabalho, tal factor apenas conseguirá atenuar provisoriamente o processo. Na verdade, é impossível substituir indefinidamente o trabalho pelo capital, o que apenas conduziria, em última instância, à total extinção do lucro. Mas o capitalismo não pode passar sem reduzir a parte de trabalho vivo na produção, dado que aparentemente não dispõe de nenhum outro meio para fazer face à situação criada pelo desenvolvimento do sector não rentável no seio da economia baseada no lucro. Se a redução dos custos salariais oferece uma saída ao capitalismo, esta mesma via conduz a um impasse. O próprio factor que, segundo Marcuse, permite ao capitalismo ultrapassar as suas dificuldades no contexto do sistema — a nova tecnologia — na verdade, apenas incarna a intransponível contradição inerente, hoje como sempre, à produção capitalista fundada nas relações de propriedade características de uma economia de mercado.

VII

Ninguém sabe se o futuro dará razão ao pessimismo de Marcuse, no que respeita às fracas possibilidades de uma revolução proletária. Em contrapartida, tudo leva a crer que o «optimismo» que experimenta face ao capitalismo e às suas probabilidades de salvação — através de meios de ordem tecnológica e política — será desmentido pelos factos. Actualmente, sem dúvida que a tais afirmações só é possível opôr outras afirmações. Desde o fim da última guerra mundial que o curso real das coisas parece indicar que o capitalismo conseguiu escapar não só aos perigos ligados à sua estrutura de classe, mas também transformar-se em sociedade sem oposição eficaz. Aliás, a este respeito, é preciso repetir que Marcuse de modo algum fica orgulhoso por ter que se mostrar «optimista»; ele apenas o faz em defesa própria, para se libertar de qualquer ilusão.

Não há estado particular do capitalismo que não seja transitório. E apenas considerando as leis gerais do desenvolvimento capitalista que se torna possível perceber que todas as situações históricas por que passou tiveram um carácter transitório. O futuro do capitalismo baseia-se na sua capacidade sempre renovada de extrair da produção social lucros suficientes para a cobertura das necessidades da sua reprodução alargada. Porém, a continua baixa da taxa de expansão do capital mostra, e de um modo cada vez mais nítido, que ele perdeu esta faculdade, apesar do crescimento geral da produção devido às constantes intervenções do Estado. No entanto, enquanto este crescimento ligado à produtividade continuamente desenvolvida do trabalho se puder conciliar com a perda de ritmo na formação de capital privado, a «economia mista» terá todas as possibilidades de se fazer passar não por um estado provisório mas por uma transformação real, capaz de solucionar as contradições da produção capitalista, o que, na verdade, não passa duma ilusão.

Portanto, a questão é: poderá o capitalismo transformar-se noutra coisa diferente daquilo que é? Poderão as leis gerais do desenvolvimento capitalista ser destruídas pelas inovações tecnológicas e pelas medidas políticas, respondendo simultaneamente às exigências de lucro do capital privado e à prosperidade geral, através do simples meio da «produção para o desperdício»? Assim tem acontecido, é incontestável. Mas acreditar que assim será sempre sob o efeito de um processo social em constante expansão, é o mesmo que dizer que o capitalismo poderá transformar-se num sistema diferente, no quadro do qual (para retomar a terminologia de Marx) não será já o valor de troca que predominará mas antes o valor de uso. Semelhante metamorfose supõe uma mudança nas relações de propriedade, actualmente baseadas na produção e distribuição de valores de troca. Ou seja: para isso, seria necessária uma revolução social.

No entanto, Marcuse é de outra opinião. A sociedade industrial avançada, afirma ele, «apesar do seu dinamismo é uma sociedade estática, uma sociedade que, apesar de uma expansão contínua, uma produção que ascende em flecha, um crescimento vertiginoso, produz sempre a mesma coisa, sem a menor mudança, sem a mais Ínfima esperança de transformação qualitativa»(32). No entanto, Marcuse fala também de uma «metamorfose» do capitalismo, como reacção ao fenómeno da guerra fria e cujo primeiro efeito terá sido o de fornecer ao capitalismo um «impulso» para se «organizar» e desenvolver a produção. Além disso, esta «metamorfose», segundo Marcuse, não parece acompanhar-se de uma transformação qualitativa, mas quantitativa, de «uma maré sempre crescente de mercadorias, de um nível cada vez maiselevado, ao qual se aspira cada vez mais», oferecendo às massas «todas as razões para se integrarem no sistema»(33).

Segundo o nosso autor, «mesmo o capitalismo melhor organizado serve-se das necessidades sociais para regularizar a economia, com vista a uma apropriação privada e a uma distribuição privada do lucro»(34). É por esta razão, aliás, que Marcuse recusa a tese professada por muitos, segundo a qual «o conflito que actualmente existe entre capitalismo e comunismo é um conflito opondo duas formas ou modos de uma única sociedade industrial»(35). A seus olhos, há uma diferença fundamental entre a economia estatizada e a economia fundada na empresa privada, ainda que os dois sistemas utilizem uma tecnologia idêntica e vigiem de igual modo o seu funcionamento, com o objectivo de não lhe permitirem tomar direcções que poderiam vir a destruir as bases do seu domínio de classe. O capitalismo «organizado» de Marcuse não se confunde nunca com o sistema de economia dirigida pelo Estado, tal como existe na Rússia, visto que, repitamo-lo, ele se «serve das necessidades sociais como reguladoras da economia, com vista a uma apropriação privada e a uma distribuição igualmente privada do lucro».

Se assim é, o «capitalismo organizado» mantém-se no contexto das relações de valor capitalistas. Ao mesmo tempo, Marcuse tem necessidade de demonstrar que estas relações não entram em contradição com a contínua expansão da produção através de inovações tecnológicas e de medidas políticas. Neste ponto Marcuse apoia-se em Marx, cujo pensamento resume: «A máquina não cria valor, mas apenas transmite o seu próprio valor ao produto enquanto a mais-valia é sempre o resultado da exploração do trabalho vivo. A máquina incorpora a força de trabalho humano e, graças a ela, o trabalho passado (morto) mantém-se, determinando o trabalho vivo»(36). E acrescenta imediatamente: «Actualmente, com a automatização, as relações entre trabalho morto e trabalho vivo parecem mudar qualitativamente. Tende-se para uma situação em que a produtividade é determinada pelas máquinas e não pelo rendimento individual»(37). Marx, que também o notara, tinha observado que a riqueza social, longe de ser unicamente uma solução de valor, assume de preferência a forma de um aparelho de produção que converte a produtividade do trabalho em produtividade do capital. Se bem que os meios de produção representem uma soma de valores determinada, e que, sob a sua forma real, material, e no contexto do seu desenvolvimento contínuo, eles não são produtivos do ponto de vista capitalista senão devido ao aumento da soma citada, é a quantidade e a qualidade dos meios de produção, e não o tempo de trabalho, que servem de expressão aos poderes produtivos aumentados do trabalho social. Segundo Marx, «desde que o trabalho, sob a sua forma imediata, deixou de ser a principal fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser a sua medida, deixando também o valor de troca de ser a medida do valor de uso»(38).

Todavia, para Marx, a abolição das relações de valor coincide com a abolição do próprio capitalismo. Não fossem as relações de produção capitalistas, e o crescimento da riqueza social teria por consequência a contínua redução do tempo de trabalho imediato, passando a riqueza da sociedade a medir-se não em tempo de trabalho mas em tempo livre. Em contrapartida, enquanto a produção tiver como objectivo a criação de valores de troca, será o volume de tempo de trabalho dispendido para esse fim a fonte e a medida da riqueza capitalista, pois o capital, enquanto valor, não é mais que tempo de trabalho incorporado. Embora «o desenvolvimento do capital fixo, escreve Marx, indique até que ponto o conjunto dos conhecimentos sociais, o knowledge, se tornou uma força produtiva imediata e, por isso, até que ponto as condições de vida social estão, elas próprias, submetidas ao controle do general intelect e são transformadas em função deste»(39), a contribuição particular do capitalismo para este estado de coisas reside unicamente no facto de «aumentar o tempo de sobretrabalho das massas, por todos os meios da arte e da ciência, porque a sua riqueza é função directa da apropriação do tempo de sobretrabalho» excedente(40).

A diminuição do tempo de trabalho como fonte e medida de valor acontece já nas condições capitalistas. Segundo o estado destas condições de facto e da estrutura do capital, o efeito sobre o processo de acumulação pode ser positivo ou negativo. E quando Marcuse afirma que «mesmo o capitalismo mais bem organizado se serve das necessidades sociais como reguladores da economia, com vista a uma distribuição e apropriação privadas do lucro» tudo o que diz é que no presente caso as relações de valor inerentes à produção de capital são mantidas e regulam a economia. Ou seja: a economia é «regulada» pela sua capacidade de produzir mais-valia e não de produzir tout court. A partir daí o lucro provém da mais-valia, ou do sobretrabalho, mesmo que a relação entre trabalho «morto» e trabalho «vivo» haja sido invertida. A partir daí também, a diminuição do tempo de trabalho relativamente à massa acrescida do capital implica uma redução da mais-valia, salvo se a produtividade do trabalho aumentar a um ritmo mais rápido daquele a que a quantidade de trabalho diminui.

É a produtividade do trabalho e não a «produtividade do capital» que explica o lucro capitalista. E claro que o lucro pressupõe a existência do capital e quanto mais este, sob a sua forma material, se revelar «produtivo» tanto mais elevados serão os lucros. Tão pouco é menos evidente que os lucros sejam a diferença entre o trabalho pago e o não pago. Se, por qualquer misterioso meio, os lucros proviessem da «produtividade do capital», independentemente do trabalho que ele movimenta, deixaria de haver lucro no sentido capitalista do termo, ou seja, como resultado da exploração do trabalho. Neste caso, o capital continuaria a representar sobretrabalho acumulado, mas não determinaria o trabalho «vivo». Na realidade, o capital pressupõe o trabalho assalariado, do mesmo modo que o segundo pressupõe o primeiro. Ambos constituem os dois aspectos das relações de produção capitalistas necessárias à criação de mais-valia. Se o capital não participar na produção, não há sociedade capitalista. A partir do momento em que ele não depende do trabalho asssalariado, o sistema capitalista deixa de o ser.

O próprio Marcuse o acentua: «Se a automatização se tornasse o processo da produção material, ela revolucionaria toda a sociedade»(41). É devido a este facto, acrescenta, que as economias estatizadas ou baseadas na empresa privada se vêem constrangidas a contrabalançar o progresso tecnológico e a «travar o desenvolvimento material e intelectual a um nível em que o domínio racional e lucrativo ainda seja possível»(42). Segundo a opinião de Marcuse, no entanto, este nível ainda está muito longe de ser atingido e, enquanto o não alcança, o capitalismo responde ao «desafio do comunismo desenvolvendo todaõ as forças produtivas de um modo espectacular, após haver travado os interesses privados que, para manter os respectivos lucros, tentam bloquear este mesmo desenvolvimento»(43).

E o que é mais importante, segundo o nosso autor, é que «o desafio do comunismo» não é o único a provocar esta transformação; existe igualmente «o progresso tecnológico e a produção de massa que destroem as formas individualistas sob as quais o progresso se realizava na época do liberalismo»(44). Além de ter sido nos países tecnologicamente atrasados, que ignoravam a produção de massa, que estas «formas individualistas» foram destruídas pela primeira vez, não é possível afirmar que a «apropriação privada e a distribuição privada» continuam a ser «os reguladores da economia» e ao mesmo tempo dizer que «os interesses privados» tiveram que dar prioridade à necessidade social de um «desenvolvimento espectacular das forças produtivas».

Destas duas hipóteses só uma é aceitável. Ou bem que a economia se governa a si própria através da relação valor-preço, no quadro de um mercado concorrencial no qual os produtores intervêm cada um por seu lado, ou bem que ela é dirigida com mais ou menos eficiência pelas decisões de ordem governamental, em função da economia global e com base nas suas estruturas institucionais. O mercado e o plano apenas podem subsistir na presença um do outro. Longe de conduzir a uma economia «mista», esta combinação tem como resultado a eliminação de um dos seus elementos constitutivos em proveito do outro, salvo se um deles puder ser reduzido permanentemente a um papel secundário. Mas então a sua eficácia ver-se-á igualmente diminuída.

VIII

Resumamos. A economia só pode conservar um carácter capitalista se a produção induzida pelo Estado não concorrer com o capital privado. Caso contrário, a primeira acabaria por superar o segundo. E sendo assim, a expansão do sector sob orientação estatal tem como consequência a imposição de limites ao capital privado, visto que é este que, em última instância, lhe deve cobrir as despesas. Deste modo, o prosseguimento da produção de capital privado coloca determinadas fronteiras ao alargamento da produção estatal, na medida em que a função de assegurar o desenvolvimento contínuo da produção compete ao sector privado. Ora este último está sujeito às relações de valor, tais como elas se exprimem através das leis do mercado: o sector privado encontra os seus limites na sua própria expansão. Portanto, no seio das relações de produção capitalista, existem limites impostos quer à produção privada quer à estatal e os limites desta constituem os limites da própria economia capitalista.

A estrutura do capitalismo actual só é «mista» na aparência. Esta impressão tem como origem o facto de a produção induzida pelo Estado estimular o conjunto da economia. E evidente que os trabalhos públicos e a «produção para o desperdício» mobilizam máquinas, materiais e trabalho. O dinheiro que é investido sob esta forma é gasto no sector privado e, nesta medida, aumenta a procura no mercado privado. Mas — e ainda para resumirmos — este dinheiro provém do sector privado, por intermédio do que o processo de conjunto dá origem a uma expansão do crédito. E claro que o capital privado poderia fazer face às suas exigências e em certa medida fá-lo. No entanto, isto passa-se a um nível insuficiente, visto que a expansão da produção não é manifestamente rentável, dadas as condições de mercado. Enquanto o capital privado se mantiver na expectativa, o Estado assegurará o desenvolvimento do crédito canalizando-o para o sector não concorrencial.

Assim, e apesar de tudo, a produção acaba por aumentar à medida que a iniciativa governamental cria mercados adicionais que todos os capitais participantes no fabrico de bens de produção destinados ao sector sob controle estatal dividem entre si, incluídos nestes os dos bens de consumo destinados aos trabalhadores do próprio sector. O produto final da produção induzida pelo Estado, ao qual conduz uma longa série de estádios intermediários, não se apresenta no entanto como uma mercadoria susceptível de ser vendida com lucro no mercado. Em razão da ausência de compradores para os trabalhos públicos e para a «produção destinada ao desperdício» é, com efeito, impossível cobrir, no quadro de um preço de venda qualquer, a soma do que foi gasto para as fabricar, ou seja, os seus custos de produção.

A economia, composta por dois sectores, tem toda a aparência de uma economia «mista», vantajosa não só para o capital privado mas também para a grande massa da população. E exaltada — ou caluniada — como um capitalismo dum novo género, ou mesmo como um sistema «post-capita-lista» — como alguns gostam de lhe chamar. No entanto, trata-se ainda e sempre de capitalismo, mas dum capitalismo que deve a sua coesão às intervenções do Estado, que, no entanto, não deixam de ser um paliativo provisório, dada a própria natureza do sistema. Apesar de resolver certos problemas imediatos, estas intervenções não deixarão de suscitar, num futuro próximo, novos problemas e ainda mais graves.

Quando tentam analisar a situação, os economistas, em geral, não distinguem entre produção induzida pelo Estado e produção do capital privado. Ainda que cada uma delas siga uma via que lhe é peculiar, por uma ser rentável e outra não, elas vêm a encontrar-se indissoluvelmente ligadas no quadro da produção efectiva e dos processos de mercado. Por todos estes motivos práticos, a economia é portanto «mista» mesmo se a produção induzida pelo Estado não aumenta o lucro global retirado da produção social total, mas, pelo contrário, a diminui. O que não impede que uma grande maioria encare a produção induzida pelo Estado como um meio de formação de capital, o que é tomar o adiamento de um problema pela sua resolução.

Quando um enorme aumento da produtividade vem permitir um simultâneo crescimento das produções privada e pública, a prosperidade que deste processo resulta é enganadora, na medida em que é fundada, por intermédio do crédito, em lucros que não sf sabe se algum dia se concretizarão. Por outro lado, à semelhança da própria prosperidade, a continuação desta exige uma constante e acelerada elevação da produtividade. Daí a necessidade de substituição dos meios de produção menos produtivos por outros que o sejam mais e, coro isso, a necessidade de transformar uma parte dos lucros realizáveis em capital adicional. É assim que o prolongamento da prosperidade resulta de uma necessidade de lucro cada vez maior.

Todavia, se por um lado a «produtividade do capital» se eleva graças à sua modernização, que permite uma melhor produtividade do trabalho, por outro lado, esta «produtividade do trabalho» baixa devido ao maior rendimento do capital. O que é menos paradoxal do que à primeira vista pode parecer. No seio do capitalismo a produtividade é sempre medida em relação à grandeza do lucro. Uma «produtividade do capital» ascendente supõe que se associou capital novo ao já existente. Os capitais, antigo e novo, formam uma certa entidade, uma determinada soma de valores expressa em dinheiro. Para evitar o desinvestimento, o capital global tem que ser reproduzido e alargado. O aumento, a modernização do capital, transformam as condições de investimento; actualmente, uma grande quantidade de capital é empregue nos meios de produção e uma quantidade relativamente mais pequena na força de trabalho. Mas esta modernização põe um menor número de trabalhadores em condições de produzir mais, o que aumenta a taxa de lucro apesar da diminução da força de trabalho empregue. Finalmente, um reduzido número de trabalhadores põe em movimento um capital aumentado e o processo que conduziu a este resultado é obrigado a repetir-se sem cessar.

E inútil aprofundar os detalhes técnicos, as razões secundárias devido às quais não é possível neutralizar ou sobre-compensar os efeitos resultantes da diminuição do número de trabalhadores, e a consecutiva redução do lucro motivada pela elevação da sua produtividade, e que fazem com que a tendência da taxa de lucro para baixar venha a transformar-se, num certo estádio da expansão capitalista, numa baixa efectiva. Perante a ameaça da automatização se tornar total, apercebemo-nos agora de uma maneira quase geral, se bem que ainda muito vagamente, que a separação crescente entre o trabalho e o capital atingirá forçosamente um ponto a partir do qual uma nova e progressiva expansão deste último, por intermédio da exploração do trabalho, será totalmente impossível.

Esta convicção crescente é acompanhada por uma aceitação consciente da teoria da acumulação, descoberta por Marx, se bem que não enunciada em termos marxistas. Em vez de deduzirem a partir da produtividade do trabalho, — este outro modo de designar a acumulação — a queda eventual do capitalismo, os «marxistas» deduzem-na, pelo contrário, da «produtividade do capital» e da tendência deste para se substituir ao trabalho. No entanto, quer num caso quer noutro, o sistema da produção capitalista fundado na exploração do trabalho é considerado como próximo do fim. Visto que a crescente produtividade do trabalho supõe a produtividade crescente do capital e vice-versa, o fim do capitalismo como consequência da automatização é sinónimo de fim do capitalismo por ausência de mais-valia.

Contudo, qualquer que seja a teoria, este fim parece muito longínquo na medida em que ainda existe criação de mais-valia em proporções que chegam para assegurar a rentabilidade do capital, mesmo se a taxa de expansão está decrescendo. Quanto à automatização, considerada à escala do capitalismo mundial, ela apenas significa uma excepção no contexto de uma tecnologia estacionária sob muitos aspectos.

Lembremos que a teoria marxista da acumulação do capital é formulada a um nível de abstracção elevado e que dá conta dos aspectos fundamentais das relações de produção capitalista através de uma reconstrução mental, ou modelo, que de modo algum pretende reproduzir a realidade em toda a sua complexidade. Na verdade, as tendências evolutivas, inerentes a estas relações de base, encontram-se permanentemente aceleradas ou travadas por fenómenos intrínsecos ao mundo capitalista real. Na ausência de uma interpretação teórica, as condições concretas apresentam-se ininteligíveis e não oferecem a menor possibilidade de se compreender a evolução efectiva. Mas, quando se pretende analisar o curso real dos acontecimentos, a prioridade deve ser dada a estes e não à teoria que lhes descobre o sentido. O mesmo se passa com qualquer outra teoria e portanto também com a que faz da tecnologia o fundamento do processo de desenvolvimento social no seu conjunto. Por consequência, a questão não está em saber o que a automatização permitirá realizar, mas descobrir o que lhe poderá acontecer em determinadas condições e em quais se poderá desenvolver livremente.

Segundo Marcuse, a automatização, capaz de transformar «o tempo de trabalho em tempo marginal e o tempo liVre em tempo pleno é irrealizável (...) no contexto das instituições económicas, políticas e culturais [actuais]. Ela significaria, na verdade, a catástrofe do sistema capitalista»(45). Ao dizer isto, Marcuse refuta, pelo menos em certa medida, uma outra tese que simultaneamente sustenta: que a tecnologia moderna «transcende» o modo de produção capitalista. Mas o único elemento tecnológico novo consiste apenas na automatização e se esta é inconciliável com o capitalismo, isso significa que este modo de produção «transcende» por seu lado a tecnologia, ou seja, determina-lhe o nível de desenvolvimento. É claro que a diferença que vai da automatização parcial à total é pequena mas, uma vez mais, depende do modo de produção, e dele apenas, que ela seja parcial ou completa. Por «transcender», Marcuse quer dizer «ultrapassar o universo estabelecido do discurso e da acção para alcançar as suas possibilidades históricas reais»(46). A seus olhos, a automatização representa a alternativa ao capitalismo e, por esta razão, é irrealizável no seio do sistema. Ora, na medida em que pelo menos é nele que ela surge, a tecnologia deveria marcar o início do fim e não a «estabilização» e a «integração» do capitalismo. No entanto, Marcuse fica-se por supor que o capitalismo é capaz de pôr em prática as novas tecnologias, e entre elas a automatização parcial, e conseguir com isso salvar a sua própria existência, simplesmente através do aumento dos níveis de vida e aumentando consideravelmente a «produção para o desperdício». Contudo, tarde ou cedo será necessário pôr termo ao desenvolvimento das técnicas automatizadas, visto que chegará o dia em que o número de desempregados excederá em muito o dos trabalhadores activos. Finalmente, uma pequena minoria tomará a seu cargo a grande percentagem da população, o que terá por consequência transformar no seu contrário as condições características da qualquer sociedade classista. Mas quando e onde se concluirá este processo — pois que cada uri dos seus estádios ascendentes aproxima o capitalismo da sua dissolução definitiva?

A tecnologia, por mais que transcenda o sistema de produção capitalista, é e será sempre a sentença de um sistema diferente. Segundo Marx, o desenvolvimento das forças produtivas, efectuando-se na base de relações capitalistas de produção, mantém-se inconciliável com esta base; donde uma contradição que apenas uma transformação da sociedade permite suprimir. Do ponto de vista de Marcuse, que excluí a revolução social, a tecnologia transcende a sociedade por meio de uma adaptação das relações sociais ao progresso técnico. Longe de ser a proclamação de uma alternativa histórica, ela conduz à «servidão progressiva do homem face a um aparelho de produção que perpetua a luta pela existência»(47). Apesar das notórias diferenças entre economias estatais e privadas, Marcuse teme, por exemplo, que a incorporação da tecnologia capitalista no socialismo tenha efeitos tão nefastos como os que teve sobre o capitalismo. Eis a razão porque Marcuse se preocupa com «uma assimilação possível dos dois sistemas»(48). Assim, o principal promotor deste estado de coisas não é o capitalismo mas a ciência e a tecnologia, pelo facto de ambos ameaçarem reduzir a nada (ou até já o fizeram) os resultados da transformação do capitalismo em socialismo.

IX

É bastante estranho ver Marcuse conformar-se com as ideias correntes e qualificar de «socialista» e de «comunista» o tipo de relações sociais estabelecido na Rússia. A exemplo do «comunismo ideológico» e da burguesia propriamente dita, Marcuse faz da estatização «a base socialista da produção». No entanto, segundo a sua opinião, «se não existem iniciativa e controle da parte dos 'produtores imediatos' a estatização não passa de um processo técnico-político com o objectivo de aumentar a produtividade do trabalho, acelerar o desenvolvimento das forças produtivas e controlá-las a partir de cima (planificação centralizada), uma alteração no modo de domínio e a racionalização deste, e nâo uma condição indispensável para a sua abolição»(49). A tese segundo a qual as relações de classe inerentes à sociedade baseada na propriedade privada deixaram de ser o motor de produção, contém, aos olhos de Marcuse, uma meia-verdade que ele completa do seguinte modo: «Todavia, esta mudança quantitativa deverá transformar-se numa mudança qualitativa, o que quer dizer que o Estado, o Partido, o Plano terão que desaparecer enquanto forças independentes e sobrepostas aos indivíduos»(50). E acrescenta imediatamente: «Na medida em que esta transformação não afectar a base material da sociedade (o processo produtivo estatizado), ela ficará limitada a uma revolução política»(51). Ora, a infelicidade, como observa Marcuse, é que «os dirigidos tendem não só a submeter-se aos dirigentes mas também a interiorizarem a sua submissão. Este processo não é específico da sociedade soviética. Os meios de que a sociedade industrial altamente desenvolvida dispõe, e as vantagens que oferece, as atitudes que a sua organização da produção e da repartição exigem, quer no trabalho quer no ócio, conduzem directamente a uma forma de existência que origina uma mudança nos valores fundamentais, vindo a procura de segurança a substituir-se às aspirações de liberdade»(52).

Voltemos a uma questão acima evocada. Se é certo que Marx previu correctamente o curso geral do progresso técnico, não pode no entanto prever que a estatização dos meios de produção iniciaria uma nova forma de valorização do capital e exploração do trabalho. É claro que também ele falava em estatizar os meios de produção mas apenas «mo uma medida a tomar uma vez desencadeado o processo revolucionário e como um prelúdio à instauração do socialismo. A noção marxista de capitalismo deriva directamente do capitalismo ligado à propriedade privada. Quando o primeiro pareceu separar-se do segundo — por exemplo no caso das empresas de Estado ou no das sociedades por acções — Marx, considerando isso como uma abolição parcial do modo de produção capitalista no próprio seio deste, interpretou o acontecimento como um sinal de declínio. Marx nunca pensou no aparecimento de sistemas capitalistas de Estado como os existentes no mundo dito socialista. Aliás, segundo a sua opinião, as primeiras condições para o socialismo só estavam reunidas nos países altamente desenvolvidos e os antagonismos sociais que podiam levar à revolução socialista tinham origem no excesso da acumulação de capital, nunca em qualquer estado de subdesenvolvimento.

Contudo, e abstraindo deste «insucesso» nas previsões de Marx, não é a adopção da tecnologia capitalista pelos regimes pretensamente socialistas que os impedirá de transformar essa «meia-verdade» — o título de estado socialista que se atribuem — em «verdade integral», no sentido de liberdade socialista. É antes o salto do modo de apropriação privada da mais-valia para o seu modo de apropriação estatal que transforma a «meia-verdade» de fachada numa mentira total. A principal causa da lamentável situação que os países classificados como socialistas conhecem reside numa transformação social, não na tecnologia. Somente com uma transformação social esses países se libertarão do estado em que se encontram e não pela criação de «valores» diferentes, dado que é incontestável que a passagem da gestão privada dos meios de produção à gestão estatal não lançou «as bases de uma produção socialista».

Na verdade, trata-se de uma base para a produção capitalista, e portanto para a reprodução do trabalho assalariado que, longe de permitir a escolha entre «a liberdade e a segu-gurança», as exiui a ambas. Não deixa de ser verdade que o capital estatizado é o antípoda do capital privado, mesmo quando — na óptica dos produtores — ambas as formas de produção de capital só prosperam graças à exploração do trabalho. É neste ponto que reside a sua «identidade», enquanto em todos os outros aspectos se conservam profundamente opostos. É este ponto comum que dá esperanças de uma eventual convergência. Mas se os dois sistemas atribuem importância semelhante à acumulação do capital, esta unanimidade cessa quando surge a questão igualmente vital de saber quais as camadas sociais a beneficiar com os frutos dessa acumulação. Enquanto que no sistema soviético a guerra e a revolução resolveram a questão em detrimento do capital privado, este último continua a dominar o capital «ocidental» e a dirigir-se, no interior, contra qualquer socialização, e no exterior contra o mundo «comunista». Na completa ausência de autêntica oposição socialista, a oposição capitalista limita-se a combater a extensão dos poderes do Estado, susceptível de ameaçar o carácter privado da economia ou mesmo de o eliminar totalmente.

A economia estatizada deixou de ser uma economia de mercado, ainda que certas relações típicas de mercado, aliás submetidas à vigilância do Estado, se tenham conservado ou pelo menos hajam sido restauradas no seu seio. O Estado apropriou-se dos meios de planificar, mal ou bem, a produção e a distribuição, embora as opções do plano sejam ditadas do mesmo modo pela situação interior, pelo mercado mundial e pelas exigências variáveis da guerra fria. Assim, está à altura de evitar a exploração estrangeira, se nem sempre nas trocas comerciais, pelo menos no sector dos investimentos. Ao mesmo tempo a economia estatizada põe obstácu.os ao alargamento da produção do capital privado. Pela sua própria existência e expansão no espaço, ela impede o desenvolvimento desta última. Essa a razão por que constitui uma das mais sérias ameaças para o capitalismo privado. Para sobreviver, este vê-se constrangido a contrariar com o máximo de esforço o progresso da economia estatizada e, se possível, a pôr-lhe mesmo um fim.

A economia «mista» e a sua projecção a nível internacional com vista a uma possível coexistência de sistemas sociais divergentes, parece contrariar a existência de uma rigorosa oposição entre gestão privada e gestão estatal dos meios de produção, entre economia de mercado e economia planificada. Na verdade, uma economia capitalista estritamente privada nunca existiu, pois o sector privado sempre tem coexistido com um sector público, cuja importância relativa era função das condições específicas nas quais o desenvolvimento dos países capitalistas se realizava. Entretanto, via-se no sector público não um sector independente mas uma espécie de pseudo-despesas indispensáveis ao bom andamento da economia. E assim acontecia, mesmo quando este sector compreendia — além dos arsenais — os sistemas de transporte, os serviços públicos e outros sectores da indústria. Mas, independentemente da extensão que tenha alcançado, o sector público foi sempre constituído pela parte mais pequena da economia tomada como um todo.

Nos países de «economia mista», o Estado restringe as suas actividades às esferas económicas «improdutivas», ou seja, nSo produtoras de lucro, não rentáveis. Nos Estados Unidos isso acontece especialmente com a tecnologia espacial e nuclear que não possuem nenhuma aplicação directa noutros domínios e não se coadunam com uma exploração comercial. Ou então o Estado participa nas indústrias deficitárias, como a exploração dos carvões em França e Inglaterra, das quais o capital privado não chega a retirar lucro e a assegurar a expansão, e que continuam a funcionar graças aos dinheiros públicos. Na Noruega, por exemplo, o Estado intervém na produção mercantil privada subsidiando indústrias e tornando-as por isso competitivas, para maior benefício do Estado e da empresa privada. Enfim, acontece que indústrias sejam nacionalizadas por razões políticas: foi o que se passou em França após a última guerra, como represália para com algumas sociedades que haviam colaborado com o inimigo.

Independentemente das razões por que o Estado intervém na esfera da produção e das causas por que se decide a fazê-lo, é sempre com vista a sustentar a produção de capital privado e nunca para o abater. E claro que em teoria as coisas podem-se passar diferentemente. Não é de excluir, por exemplo, que numa «democracia» um governo chegue ao poder apoiado num programa de nacionalizações mais ou menos vasto. E este governo, enquanto houver identidade entre capitalismo e propriedade privada dos meios de produção, será um governo revolucionário, anticapitalista. E caso teime na realização do seu programa, terá que substituir o sistema de mercado por um outro que se baseia na planificação real e centralizada da economia, permitindo-lhe repartir os recursos produtivos e organizar a produção e distribuição num contexto não concorrencial. Para os capitalistas, medidas deste género significam a morte e é bastante difícil de conceber que se lhes conformem sem nenhuma espécie de luta. A probabilidade de ver a nacionalização da indústria provocar uma guerra civil é incontestavelmente grande. Portanto, é devido ao receio das consequências sociais que vastas nacionalizações podem implicar que os partidos que se reclamam de um tal programa a nível ideológico, não tentem verdadeiramente realizá-lo na prática. Em Inglaterra, como noutros locais, os governos «socialistas» nunca utilizaram o poder para elevarem as nacionalizações acima de um nível julgado intolerável pelo capital privado.

X

É pouco provável que a economia de mercado possa, sem revolução social, transformar-se por si própria, pouco a pouco, numa economia planificada. Tão pouco uma economia, depois de estatizada, recai nas relações capitalistas de mercado. Neste caso, o restabelecimento do mercado significaria a restauração do capital privado senão de jure pelo menos de facto. Muitas vezes se fala nos países ocidentais de um «capitalismo popular», designando com esse conceito erróneo um sistema onde a propriedade das acções está totalmente fragmentada e onde, por consequência, a separação entre a posse dos meios de produção e a sua gestão é cada vez maior. O que nos interessa é apenas o pretenso divórcio entre direito de propriedade e poder de gestão, que parece transformar os quadros superiores da indústria (managers) em capitalistas de facto. Mas se, sem ser proprietários, eles podem funcionar como capitalistas, a situação de proprietário, com as vantagens que lhe estão ligadas, confunde-se desde então, à excepção de algumas diferenças, com a de director industrial. Ainda que esta eventualidade não tenha qualquer hipótese de realização, não é de todo de excluir a possibilidade de os quadros superiores da indústria russa, agindo de conivência com o governo e apoiados por largas camadas da população, se resolverem a estabelecer uma economia de mercado, fundada na concorrência e na produção com vista ao lucro privado. Bastaria para isso que cada director de empresa se comportasse de modo semelhante a um empresário ou a uma sociedade privada. Como antes, o Estado continuaria a colectar sobre o trabalho pago e sobre o trabalho não pago, os fundos necessários para fazer, através do imposto, face às suas necessidades específicas. Mas, na verdade, sob as aparências de uma «revolução dos directores», tal mudança não passaria de uma contra-revolução e a restauração do capital privado não tardaria a trazer ao de cima, no seio da economia russa, todas as contradições inerentes à produção de capital privado na base da concorrência.

Em contrapartida, uma economia ligada à empresa privada tem a possibilidade de se lançar, sem revolução social, na via de uma pseudo-planificação, enquanto a economia estatizada pode vir a restabelecer, na ausência de contra-revoução social, um certo tipo de pseudo-mercado. Concorrência fictícia ou planificação fictícia, trata-se sempre de remediar os males que afectam a economia de mercado e a economia planificada. O que não deixa de ser um recurso a meios não concordantes com o sistema interessado e que não correspondem à sua natureza específica. E se por este meio é possível fazer face às dificuldades, aliás a título provisório, tarde ou cedo será necessário, para salvaguardar as características fundamentais do sistema, suspender a aplicação dos métodos em questão. Na verdade, o mercado não se acomoda a uma planificação efectiva, e vice-versa, ainda que seja possível, quer num caso quer no outro, proceder a remodelações de ordem puramente técnica, deixando intactas as redações sócio-económicas de base.

Todos os sistemas capitalistas de Estado — ou socialistas de Estado, se se preferir — aproximam-se da economia capitalista de mercado, na medida em que conservam as relações capital-trabalho e adaptam às suas necessidades os métodos clássicos do capitalismo. Em vez de serem propriedade dos capitalistas, os meios de produção passam a ser directamente geridos pelo Estado. Este fixa a um certo nível o valor (monetário) dos recursos produtivos e espera que a esfera da produção lhe renda um valor ainda maior (sempre em dinheiro). Um salário em dinheiro é concedido aos trabalhadores que ficam com o encargo de criar um valor superior ao que os seus salários representam. Quanto ao excedente, repartido de acordo com as directrizes governamentais, serve para cobrir as despesas dos não-trabalradores, da defesa nacional, dos serviços públicos, etc. Uma outra parte é reinvestida sob a forma de capital adicional. Todas as operações económicas são operações de troca, ou assumem esse aspecto. A força de trabalho é vendida à direcção de uma determinada empresa e os salários servem para a compra de mercadorias produzidas por outras empresas. Há um quase-comércio entre uma empresa e outra, à semelhança do que se passa entre os diversos departamentos de uma grande empresa nos países capitalistas e cujo protótipo é a economia de Estado totalmente centralizada. No plano formal, a única diferença que verdadeiramente conta entre a economia privada e a economia estatizada é a gestão centralizada do sobretrabalho, ou seja, da mais-valia.

Como já outrora acontecia, todos os sistemas de gestão estatal são próprios dos países pobres em capitais. O seu objectivo máximo é a formação de capital, condição primeira da independência nacional e da projectada socalização da produção e distribuição. Estes países, que dependem num grau maior ou menor (em função da sua situação particular) da «divisão internacional do trabalho», têm que submeter as suas economias às condições do mercado mundial e tomar parte na concorrência internacional. Simultaneamente não podem escapar à necessidade de fazer do sistema monetário, e da sua expansão, o principal motivo das suas actividades económicas. As exigências da acumulação do capital — e, portanto, da exploração do trabalho — têm prioridade sobre qualquer outra consideração — característica que distingue igualmente a economia capitalista.

Na ocorrência, a «socialização» dos meios de produção apenas significa a estatização do capital enquanto capital; ou seja, apesar da eliminação da propriedade privada dos meios de produção, estes conservam ainda o carácter de capital, dado que são geridos pelo Estado em vez de estarem ao serviço da sociedade no seu conjunto. Embora a acumulação privada do capital seja daí em diante excluída, a exploração do homem pÉo homem continua e toma a forma de uma repartição desigual, tanto dos cargos como dos bens de consumo. O que perpetua o reino da concorrência, a qual assume o aspecto de uma luta pelos empregos mais lucrativos e pelos trabalhos melhor remunerados e transpõe os antagonismos inerentes ao capitalismo para o interior do sistema capitalista de Estado.

Tendo sempre por base a produção de sobretrabalho, o capitalismo de Estado já não é um sistema que tenha por «reguladores» a concorrência no mercado e as crises económicas. O sobreproduto já não tem necessidade de passar pelo estádio de concorrência para ser realizado sob a forma de lucro; o seu carácter material específico e a sua repartição são conscientemente fixados pelos serviços de Plano. Que estas decisões sejam igualmente tomadas em função da concorrência económica e politica à escala internacional, não altera em nada o facto de a ausência de mercado interior tornar indispensável uma instância centralizada, encarregada de tomar directamente todas as decisões respeitantes à repartição da mão-de-obra global e do produto social total.

Desde então, o recurso a relações do tipo das de quase-mercado é, em todo o caso, uma espécie de conveniência, não uma necessidade, mesmo quando imposto por circunstâncias às quais os governantes não conseguiam fazer face. Na URSS, por exemplo, este género de relações oferece às empresas uma quase-autonomia, aos consumidores uma quase-liberdade na escolha do que podem adquirir, aos trabalhadores uma quase-escolha da profissão. Mas todas estas relações se mantêm submetidas à direcção de conjunto exercida pelo Estado.

Este «livre jogo» exclusivo dos factores do mercado pode, é evidente, ser acrescido ou diminuído dentro de certos limites sem que venha a afectar gravemente o sistema de Plano como tal. Presentemente, os controles são atenuados, na esperança de com isso se vir a aumentar o «rendimento» do sistema sem que no entanto a sua eficácia fique prejudicada: o processo de tomada de decisões é um pouco descentralizado, enquanto as empresas individuais ganham direito a uma maior autonomia — não para contrabalançarem a direcção de conjunto da economia global, mas, pelo contrário, para a consolidar. Longe de se pretender mudar o carácter da economia, o esforço é unicamente no sentido de lhe conferir uma rentabilidade mais elevada, através de uma utilização mais vasta de estimulantes capitalistas.

Uma maior liberdade é deixada às empresas quer para remodelarem o processo de produção quer para cumprir e ultrapassar as normas fixas pelo Plano. Espera-se que tendo em melhor conta os desejos dos consumidores, os resultados do Plano saiam aperfeiçoados e o desperdício seja eliminado. A racionalidade económica das decisões será aumentada, pensa-se, agora que um certo juro deve ser atribuído aos capitais emprestados. A direcção das empresas goza de uma maior liberdade em matéria de fixação de salários e pode dispor, para estes últimos, de uma certa parte dos lucros obtidos graças & melhoria da produtividade e a uma melhor gestão. Todas estas «inovações», e muitas outras ainda, visam acentuar o que sempre existiu: a utilização de estimulantes capitalistas no contexto de uma economia capitalista de Estado. Elas não afectam nem o controle dos investimentos pelas instâncias governamentais, nem o controle, com este fim, da produção social total e da sua repartição segundo um plano geral. Sempre que as consequências destas «inovações» prejudicam a realização do Plano, compete ao governo intervir e remediar a situação, quer promulgando um decreto, quer modificando a sua política de preços. Em qualquer momento, o «mercado livre», já restrito, pode ser suprimido, na base da relação real de forças que dissimulam relações de pseudo-mercado.

Em todo o caso uma coisa é certa: numa época em que o próprio sistema de empresa privada não tem a menor possibilidade de sobrevivência sem a ajuda de intervenções massivas do Estado, não existe nenhuma hipótese de retorno à economia privada em qualquer tipo de sistema de capitalismo de Estado. De facto, a única vantagem que esta última forma apresenta é a de permitir exercer uma autoridade total em matéria económica, com o que compensa a ineficácia que lhe é característica, face aos sistemas de capitalismo privado altamente desenvolvidos. O capitalismo de Estado não enferma da contradição entre produção rentável e não rentável de que o capitalismo privado é um exemplo e que só lhe deixa uma alternativa: a estagnação ou o desaparecimento enquanto forma privada. Dado que o capitalismo de Estado já aboliu a propriedade privada dos meios de produção, ele está à altura de produzir quer de modo rentável quer de modo não rentável, sem que isso o condene forçosamente à estagnação.

Na impossibilidade de um maior aprofundamento no contexto deste ensaio, limitar-nos-emos a observar que é tão quimérico acreditar numa possibilidade de coexistência pacífica perpétua dos dois grandes tipos de sistemas económicos, como crer na eternização da «economia mista». Na verdade, é precisamente o facto de o controle do Estado sobre a economia privada aumentar progressivamente que virá a exacerbar o conflito que põe em causa as duas formas de capitalismo. As guerras do passado, que opunham sistemas capitalistas de natureza idêntica, demonstraram que a concorrência capitalista conduz à concorrência imperialista e que devido a isso as guerras não deixariam de se produzir, ainda que só existisse um único país capitalista de Estado. E a última guerra mundial mostrou que nações fazendo parte de sistemas diferentes podiam aliar-se, pelo menos a título provisório, ao mesmo tempo que igualmente demonstrou nitidamente que esses sistemas manter-se-iam fundamentalmente inconciliáveis devido não só ao aparecimento de novos conflitos entre interesses nacionais e imperialistas, mas também em razão dasrespectivas estruturas sociais opostas. Longe de aproximar capitalismo «tradicional» e economias estatizadas, o aparecimento da «economia mista» agrava a distânca que as separa, quanto mais não seja pelo facto de o primeiro, pouco a pouco, procurar impedir qualquer crescimento dos poderes do Estado. No actual contexto político, a «travagem do comunismo» torna-se a condição fundamental da sobrevivência do capitalismo privado.

XI

Marcuse vê na coexistência simultaneamente um factor de desunião e de unificação. Segundo o seu parecer é a concorrência que, conquanto prejudicial aos dois sistemas, lhes é igualmente favorável. E através dela que se explica o rápido desenvolvimento do «comunismo» e o ininterrupto desenvolvimento da produtividade no seio do capitalismo. Mas, ainda segundo Marcuse, ela evidencia também os aspectos sinistros dos dois sistemas. Assim, afirma: «A industrialização estalinista desenvolveu-se numa situação de "coexistência hostil" e isso pode explicar o seu carácter terrorista»(53). Ora, a existência de todos os países capitalistas é feita de coexistência hostil. E, o que é mais importante, o regime de Staline não foi o único a praticar um terrorismo que, no caso em questão, teve por origem mais a transformação da economia camponesa da Rússia numa economia estatizada do que a coexistência hostil. Na medida em que este terrorismo obedece a motivos «racionais», foi a antinomia entre a planificação centralizada e a produção para o mercado que levou o regime a liquidar o embrião de capitalismo privado, eliminando a propriedade fundiária e a pequena indústria.

Isto não significa que se conteste que a industrialização forçada da Rússia foi necessária à sobrevivência do regime bolchevique. Mas não foi a coexistência hostil que engendrou a deformação do «socialismo»; o terrorismo constituiu uma arma para pôr termo à coexistência com o «inimigo do interior», ou seja, às tendências para o capitalismo privado inerentes à produção pequeno-camponesa, que ameaçavam arruinar o carácter capitalista de Estado da revolução bolchevique. A coexistência não dá uma melhor conta da consolidação visível do capitalismo e não autoriza a sustentar, como Marcuse parece inclinado a fazer, que o «comunismo se tornou o médico curador do capitalismo doente». Se não fos3e o comunismo, afirma Marcuse, «seria impossível explicar a unificação econômica e política do mundo capitalista»(54).

Na verdade, a unificação em causa não existe. O próprio Marcuse admite que «se múltiplas contradições subsistem entre as potências imperialistas (...), elas não parecem, no entanto, capazes de vir a provocar uma conflagração mundial num futuro previsível»(55). Que uma guerra entre potências imperialistas seja hoje pouco provável, em si não contribui de modo algum para a unificação económica e política do mundo capitalista. Na verdade, foi à própria guerra que o capitalismo ficou a dever a sua «unificação» sob a única forma em que esta lhe é concebível: uma coligação de países opondo-se a outros. Como já foi dito, a guerra, nas actuais circunstâncias, deixou de ser uma saída para o sistema. Porém, isso não significa que não haja novo recurso a este meio ou que a guerra o não submerja um dia. De facto, as «guerras limitadas» de hoje podem passar, e com razão, por índices anunciadores de uma nova conflagração mundial, os quais revelam até que ponto a unificação em causa está ainda por concluir.

A única «unificação» de que o capitalismo é capaz — não contando o caso de alianças provisórias com vista ao prosseguimento de uma guerra — é a unificação por absorção, consecutiva à concentração nacional e internacional do capital e à sua centralização. O que exige a manutenção à escala mundial de um mercado «livre» e da «livre» acumulação de capitais, ou seja, das condições do séc. XIX na medida em que foram elas que tornaram possível, a uma escala evidentemente restrita, a Integração do capitalismo no plano económico. Mas esta «unidade», adquirida através das relações de mercado, desapareceu irrevogavelmente. A integração económica deve, de agora em diante, realizar-se através de meios políticos, com grande ajuda de medidas governamentais e no contexto de coligações dirigindo um grupo de nações contra outras. Para alcançar uma fusão económica real, o mundo capitalista terá que sacrificar o princípio da rentabilidade ao da repartição nacional dos recursos produtivos em função das necessidades sociais, ou seja, consentir na sua própria abolição. Dado que não é este o caso, bem entendido, a integração nunca irá além da criação de esferas de interesses, de blocos económicos enfrentando outros blocos económicos. A existência de tais blocos exprime apenas, entretanto, a recrudescência da concorrência num mercado em vias de retraimento. E esta «unificação», por mais limitada que seja, é inconcebível fora da prosperidade. Em tempo de crise ela é mais uma vez destruída e cada um dos países capitalistas procura salvar-se à custa dos outros.

Cada país capitalista avançado dotou-se de um aparelho de produção concebido e posto em prática na perspectiva de uma expansão contínua do mercado mundial. Assim, este possui uma produção que excede mais ou menos largamente as capacidades de absorção do seu mercado nacional. E o mesmo acontece a nível internacional para a produção de todos estes países reunidos, salvo se o mercado mundial vier a crescer ao mesmo ritmo daquela. No passado verificou-se que o capitalismo «ocidental» tinha vantagens em restringir o desenvolvimento da indústria no seu próprio território. Mas, depois da conquista e consolidação de uma posição de monopólio foi-lhe impossível renunciar a ela sob pena de perturbar gravemente o bom funcionamento do sistema. E essa a razão por que todos os países capitalistas procuraram impedir o desenvolvimento dos países não industrializados, para poderem continuar a dar saída aos seus produtos manufacturados. Tão pouco hesitaram em recorrer à'força para fazer triunfar a sua vontade nas regiões de estatuto colonial ou de tipo semelhante. Nunca se virá a saber se nessa época os países subdesenvolvidos teriam ou não podido, por si próprios, fazer evoluir os respectivos processos de desenvolvimento. Mas é evidente que, na generalidade, a presença e o domínio das potências colonialistas reduziram o desenvolvimento, subordinando-o, além do mais, às necessidades das metrópoles. A própria natureza, dizia-se, destinara certos países ao fabrico de produtos manufacturados e fizera de outros fornecedores de matérias-primas. Partindo deste «facto natural», a doutrina predominante em economia política sustentava, especialmente com a ajuda da teoria dos custos comparados, que era mais «económico» deixar a cada um a sua função. Deste modo, todos poderiam aproveitar da «divisão internacional do trabalho» entre países industriais e não industriais. Na realidade, as trocas entre uns e outros resumiam-se sempre a lucros enormes para os primeiros, em detrimento dos segundos — o que é lógico.

Ao enriquecimento do mundo capitalista correspondia, consequentemente, o depauperamento dos países não capitalistas. Quando os países sub-desenvolvidos, reduzidos ao estado colonial ou semi-colonial, tentam escapar da sua condição debilitante, fruto da tal «divisão internacional do trabalho» Imposta pelos países industrialmente avançados em busca de novas fontes de mais-valia, são obrigados a uma luta política que, em certos casos, lhes proporcionava uma certa independência. Ao mesmo tempo era-lhes aberta uma via de desenvolvimento muito diferente da clássica «expansão automática» do capital determinada pelo mercado. Na medida em que pudesse ser prosseguida, a transformação destes países em estados capitalistas aparecia como um desenvolvimento de carácter nacional, frequentemente nacionalista e revolucionário. Tratava-se, é claro, de um processo extremamente complexo, que não deixava de dar origem a movimentos sociais e a ideologias nacionalistas e que para ser levado a cabo exigia condições favoráveis, tais como as criadas pela guerra e as crises, além de uma cada vez maior deterioração da economia mundial que a elas se sucedia.

O nacionalismo do século passado contribuiu, tanto quanto pode, para o desenvolvimento do «mercado livre mundial» e da «interdependência das nações», na medida em que esta nfio entrava em contradição com a formação de capital privado — e isso apesar das barreiras proteccionistas levantadas por razões tácticas. O mesmo não se pode dizer do nacionalismo de hoje, ligado a um desejo de luta contra as consequências que a acumulação privada do capital teve sobre o «mercado livre mundial». Na verdade, a industrialização das regiões sub-desenvolvidas faz-se em oposição ao capitalismo monopolista ocidental, não podendo este último industrializar o mundo. Os movimentos de capitais estão submetidos antes de mais a considerações de rentabilidade e, mais recentemente, às de segurança. Por isso, as economias que oferecem maior lucro atraem a maior parte dos capitais mundiais e elevam proporcionalmente a sua produtividade. Eis o que permanentemente reduz a capacidade concorrencial, já bastante precária, dos países menos produtivos, porque pobres em capitais, o que vem a provocar um redobrar da exploração de que são vítimas no contexto das relações internacionais de mercado, tal como actualmente elas se comportam. Pobres entre os pobres, estão destinados a sê-lo ainda mais, sob todos os aspectos, devido ao constante agravamento do desnível de produtividade existente face aos países desenvolvidos.

A maior parte dos países sub-desenvolvidos não dispõem de indústrias aptas a desenvolver-se e a prosperar face à concorrência estrangeira. Estas indústrias, antes de serem protegidas com barreiras alfandegárias e outras medidas semelhantes, têm que ser criadas. Ora, extrair de uma população em grande parte camponesa — e que vive num estado já vizinho ao da fome — o sobretrabalho que a formação de capital exige é uma empresa que, mesmo quando possível, mobiliza a actividade de gerações de homens e suscita horrores em cadeia. No entanto, ela tem sido tentada em condições mais ou menos favoráveis. Mas esta acção exige a eliminação da exploração estrangeira e uma gestão centralizada da economia nacional. Na verdade, só assim o desenvolvimento industrial poderá ganhar prioridade sobre os interesses privados. As novas forças estão portanto em conflito de morte não só com as classes tradicionalmente dominantes mas também com as estruturas do capitalismo mundial, tal como o mercado as modelou.

As tendências para a centralização e concentração, próprias à produção concorrencial, não têm como único efeito retardar a industrialização do mundo, em razão do depauperamento cada vez maior das regiões sub-desenvolvidas ; igualmente causam a redução da esfera de expansão do capital concentrado para os países avançados. Do facto de as regiões sub-desenvolvidas se verem obrigadas a só fornecer matérias-primas e de os lucros dessa actividade serem transferidos para os países industrialmente evoluídos, para os quais as relações de troca são sempre favoráveis, resulta que a capacidade de os primeiros comprarem bens manufacturados vem a diminuir progressivamente. Quanto mais empobrecem, menos mercado oferecem aos produtos dos países avançados. Quanto mais as vendas ao mundo capitalista aumentam, menos estão à altura de formar capital e, consequentemente, de aumentar, com a procura geral, a procura de mercadorias originárias dos países altamente desenvolvidos.

A presente condição das regiões sub-desenvolvidas demonstra que o capitalismo é incapaz de alargar o seu modo de produção às dimensões de um sistema mundial.

Criando o mercado mundial — e, neste plano, a sua obra limitou-se a isso — ele provocou a divisão do mundo em países «ricos» e países «pobres». O amontoamento de capitais por pessoas privadas faz-se sem qualquer respeito pelas necessidades reais da sociedade, tanto a nível nacional como internacional; do mesmo modo, entretanto, a produção capitalista entra em conflito com as aspirações elementares da população mundial. Além disso, o capital destrói assim os seus próprios mercados, numa altura em que, devido à sua produtividade e produção acrescidas, devia alargá-los mais que nunca; mas esta é somente uma manifestação suplementar da total ausência de harmonia que existe a partir daqui entre as relações de mercado e as forças produtivas engendradas pelo capitalismo ou, o que é igual, da transformação das relações de propriedade capitalistas em factor de blocagem que impede qualquer novo desenvolvimento das forças sociais de produção à escala mundial.

Em decréscimo constante devido às mudanças estruturais sobrevindas na relação capital-trabalho, a criação de sobretrabalho, ou lucro, apenas representa uma parte, se bem que a mais importante, das dificuldades encontradas pela expansão do capitalismo. A outra parte consiste na realização do lucro, ou seja, na necessidade que o capitalismo sente de dar saída à produção a preços que garantam ao capital a sua rentabilidade. E preciso que o aumento da produção, em razão de uma produtividade acrescida, se acompanhe de uma extensão de mercados, na falta da qual o capital deixa de oferecer lucros, antes sofre ainda prejuízos.

O capitalista individual, como tal, encontra vantagens em elevar a produtividade das suas empresas, mesmo com o auxílio da automatização, na medida em que isso lhe vem aumentar a sua parte no mercado graças à consecutiva eliminação dos seus rivais menos bem equipados. Assim, o que perde de um lado, devido à diminuição do sobretrabalho, vem a encontrar por um outro, e até em maior quantidade. E claro que a dimnuição do sobretrabalho, e a do lucro que lhe é inerente, passa despercebida aos olhos do capitalista individual que apenas se interessa pelos custos da produção e margens beneficitárias. E só no plano social que a diminuição do sobretrabalho se revela sob a forma de uma baixa da taxa de lucro em relação ao capital total, o que para cada capitalista é apenas uma razão mais para tentar manter o nível dos seus lucros aumentando os seus capitais.

Eis, portanto, como o decréscimo do lucro leva a aumentar a produtividade do trabalho e, a'ém disso, a procurar novos mercados. O processo, que se desenvolve no seio de cada nação, repete-se a uma escala mundial, ou seja, o processo de concentração do capital assume uma dimensão internacional. Do mesmo modo que num país os capitais de rendimento mais elevado conquistam o mercado em detrimento dos de menor rendimento, igualmente os paises mais produtivos se esforçam por aumentar a respectiva quota-parte no mercado à custa dos outros. O que supõe a absorção dos capitais mais fracos, quer no estrangeiro quer no próprio país. Tarefa no entanto bem mais árdua no primeiro caso do que no segundo, na medida em que o Estado está melhor defendido para proteger os bens nacionais dos objectivos das empresas estrangeiras. A partir de então a concorrência reveste um aspecto político, e não simplesmente económico, e nos países capitalistas de Estado é o aspecto político que toma primazia sobre o outro.

Numa época em que a concentração do capital e os progressos rápidos da produtividade têm por efeito baixar a taxa de lucro nos países altamente desenvolvidos, estes põem-se mais avidamente do que nunca à caça de novos mercados, e, com eles, dos lucros necessários para salvaguardar a sua rentabilidade — sem mesmo falar na cobertura das suas necessidades de expansão. No entanto, à medida que as regiões até agora relegadas para a produção de matérias-primas se começarem a industrializar, as economias de mercado «livre» cada vez menos conseguirão valorizar o seu capital e realizar lucro; e à medida que surgiu um «segundo mercado mundial» — dominado e controlado pelos sistemas de capitalismo de Estado em vias de desenvolvimento — o mercado mundial de antigo tipo retrocedeu. Quanto mais o novo sistema se alargar, mais as virtualidades do antigo diminuirão precisamente no momento em que este se deveria desenvolver para assegurar a sua sobrevivência. A partir de então, a política mundial do capitalismo consiste em manter um campo de valorização que se fecha cada vez mais ao capital privado e que irá, se necessário, até à destruição material das nações capitalistas de Estado. A «defesa» do «mundo livre» não significa portanto mais que a defesa de um sistema particular de extracção de lucro, o qual se sente, e com razão, ameaçado pelas consequências da sua própria história.

Nada permite caracterizar a actual situação — quer à escala do mundo inteiro quer à das diversas nações separadamente— pela estabilização, organização e integração, como Marcuse o faz. Pelo contrário, o mundo capitalista está infinitamente mais instável, desorganizado e desintegrado do que alguma vez esteve, por exemplo do que há meio século atrás. A actual combinação da produção livre e da produção dirig'da, de relações de mercado livre e de mercado controlado, longe de contribuir para colocar as coisas em ordem impede ainda quer a Integração «automática» quer a integração «controlada» da economia mundial, como a das diversas economias nacionais. E, o que é mais importante, o nacionalismo sob a forma de imperialismo, e o nacionalismo sob forma oposta ao imperialismo conduzem, quer um quer o outro, a uma ruptura cada vez mais acentuada das relações internacionais, no preciso momento em que a situação real e o processo de produção material exigem a mais estreita integração económica, único modo de fazer face às necessidades elementares da população mundial.

XII

Desde há muito que o capitalismo deixou de ser socialmente progressivo; desde há muito que se tornou num sistema de produção regressivo e destruidor, apesar de aparências à primeira vista contrárias. Sob o seu impacto o mundo dividiu-se em alguns países altamente industrializados e uma multidão de nações incapazes de saírem de uma pobreza em constante agravamento. No entanto, a sorte de todos os países está intimamente ligada, e é a situação global, a situação mundial que, em definitivo, decide do futuro de todas as nações e de cada uma em especial. Examinadas, como devem de ser, à luz das condições planetárias actuais, as perspectivas das sociedades contemporâneas, mesmo as mais prósperas, de modo algum são tranquilizantes. Na imensidade desértica da miséria do homem apenas existem raros oásis de prosperidade.

As grandes potências capitalistas, já incapazes de extrair das suas próprias massas trabalhadoras as quantidades de sobretrabalho que a acumulação privada do capital requer para permanecer rentável, são obrigadas a constatar que as fontes de sobretrabalho estão igualmente em vias de se esgotarem nas regiões sub-desenvolvidas. Excesso de acumulação aqui, ausência de acumulação acolá, uma é em grande parte a causa da outra. Dado que o crescimento do capital nos países industriais avançados, não é já suficiente para permitir um aumento de lucros nas proporções necessárias, este diminui também nas regiões sub-desenvolvidas atingidas pela penúria dos capitais. Continuar a exploração destas zonas significa diminuir lentamente a própria possibilidade de as explorar; mas abster-se de tal teria por efeito baixar ainda mais a rentabilidade já insuficiente do capital nas nações avançadas. Longe, portanto, de atenuar a exploração, aquelas nações tentarão reforçá-la, quer através de uma colaboração com as classes tradicionalmente dominantes, quer, na ausência destas, na base do neo-colonialismo, isto é, por intermédio da colaboração com as novas classes chegadas ao poder no contexto das lutas anti-colonialistas.

Todavia, a dominação económica que as potências ocidentais continuam a exercer indirectamente sobre as populações do mundo sub-desenvolvido não oferece o menor grau de satisfação a estas últimas, assim como não permite a resolução do problema fundamental do capitalismo ocidental: a criação de lucros em quantidade suficiente para o desenvolvimento do processo de acumulação. Assente na repressão bárbara das explosões de cólera suscitadas por uma miséria cada vez maior, esta dominação pode prolongar durante um certo tempo, mas não muito, a viabilidade de uma economia capitalista em via de desintegração à escala mundial. Pode dizer-se, com toda a verdade, que a miséria reinante, pelo menos na zona sub-desenvolvida do planeta, provocará rebeliões em cadeia não só contra as opressões estrangeiras mas também contra os seus colaboradores autóctones.

É claro, como Marcuse observa, que estas rebeliões não têm um carácter proletário no sentido marxiano. E, ainda que vitoriosas, apenas levariam à organização de relações sociais do tipo que caracteriza o mundo capitalista, tanto a leste como a oeste. «Se se considerar o que são as classes trabalhadoras na sociedade industrial avançada, pode-se dizer que o conceito marxiano de "proletariado" é um conceito mitológico; se se considerar o que é actualmente o socialismo, a ideia de Marx não passa de um sonho»(56). Ora em nenhuma parte existe hoje «socialismo» cuja realização demonstre o carácter quimérico do projecto marxiano, o de uma sociedade sem classes, definitivamente emancipada das relações de valor. E, por si só, o facto de as classes trabalhadoras dos países avançados terem visto o seu nível de vida aumentar enquanto a sua consciência de classe se volatizava, tão pouco diminui o conceito marxiano de proletariado. Na verdade, e à semelhança do passado, a sociedade divide-se em proprietários dos meios de produção e em classe operária não proprietária, ou ainda, em donos do capital e assalariados sem poder.

Quando se pretende recusar ao proletariado (e trata-se da imensa maioria da população dos países industrialmente avançados) um papel na história, um papel que apenas pode ser de oposição e consequentemente deve encontrar a sua expressão numa consciência de classe revificada ou renascida, é preciso primeiro pôr a hipótese de que a manutenção do statu quo é algo possível, que todos os problemas sociais possam ser resolvidos no quadro das instituições existentes, que a evolução das condições estabelecidas será travada. Marcuse, é claro, de modo algum contesta que a história esteja em marcha; por si só, afirma, o sector automatizado «revela a possibilidade de uma revolução na sociedade capitalista»(57). Mas, ainda segundo a sua opinião, trata-se de um «longo processo», de modo que a «revolução não é para hoje nem amanhã»(58). Essa a razão, aliás, porque Marcuse nunca deixa de acompanhar os seus sombrios prognósticos da correcção: «no futuro previsível». Ora, o que esconde esta fórmula senão que se descobriu a existência de tendências fundamentais susceptíveis de afectar e modificar o curso das coisas? Desde então, é necessário colocar o acento não sobre a persistência, talvez prolongada, das actuais condições, mas nos elementos que, dentro deste contexto, deixam adivinhar a dissolução dessas mesmas condições.

Marcuse parece crer, e simultaneamente lamentar, que a «abundância» de que a classe operária desde há pouco tempo goza nos países industrialmente avançados durará por um longo período ainda. Segundo a sua opinião, a explicação marxista tradicional do aburguesamento do movimento operário como um fenómeno restrito a uma pequena elite perdeu actualmente toda a validade, dado que «as modificações nas formas de trabalho transformaram a maioria do proletariado organizado nessa camada a que Lenine na sua época se podia ainda referir como uma minoria: a aristocracia operária»(59). O que, continua Marcuse, deu origem a «uma nova espécie de solidariedade de classe: a solidariedade dos operários organizados que possuem um emprego e uma relativa segurança, opondo-se aos operários que não têm emprego nem qualquer possibilidade de o ter num futuro previsível»(60).

Ora, na verdade, não nos encontramos face a uma solidariedade de classe mas, pelo contrário, frente a uma total ausência de solidariedade, visto que mesmo no seio dos sectores organizados da classe operária — que não representam senão uma minoria — a solidariedade não vai além — e nem sempre — do respeito pelo monopólio de contrato que os sindicatos instituíram em proveito próprio. Se os sindicatos operários se tornaram forças reaccionárias foi muito simplesmente porque as relações de mercado que regem a sua actividade possuem actualmente um carácter regressivo. Assim, não se trata de uma «integração social», no quadro da qual os interesses do Capital e do Trabalho coincidem, mas da sobrevivência, no seio de uma economia de mercado, em declínio, de instituições que já tiveram a sua época.

Mas esta sobrevivência de modo algum significa que a sua posição social de hoje seja conservada amanhã. O capital nada pode ganhar à custa de desempregados, tendo pelo contrário de os alimentar de um modo ou de outro. Só através dos trabalhadores activos pode ele vir a ganhar o que quer que seja. Ora, tentar baixar os níveis de vida, uma vez que estes se tornaram habituais, é coisa árdua, mesmo impossível e que seria acompanhada de conflitos sociais de extrema gravidade. Os governantes apenas se aventuram a tal em tempo de guerra, quando dispõem dos meios militares necessários à manutenção da paz social. No passado, a pressão exercida pelos desempregados sobre o mercado do trabalho era suficiente para fazer baixar os salários até um certo nível. Todavia, o desenvolvimento dos sindicatos e a eficácia da sua acção vieram permitir rapidamente a uma fracção importante da classe operária a estabilização dos seus salários ao nível que já haviam atingido. Longe de ter por efeito a redução dos salários, a produtividade sempre crescente do trabalho levava-os a um escalão mais elevado, aumentando assim os lucros do capital, apesar da pretendida tendência dos salários para acompanhar os progressos da produtividade. Mas nas actuais condições, especialmente nas de uma automatização cada vez maior, este mesmo processo apenas pode levar à substituição progressiva do trabalho pelo capital.

Os níveis de vida elevados, de que gozam os países industrialmente avançados sâo eles próprios chamados a travar a expansão capitalista. Para que se conservem intactos, quando a rentabilidade do capital privado diminui, seria necessário que a esfera de produção não rentável se alargasse permanentemente, o que por sua vez supõe aumentos de produtividade constantes. Nas condições actuais isto significa aumento regular da massa de desempregados cujo sustento é cada vez mais caro. Estas despesas, acrescentadas a todos os outros «falsos custos da abundância», tarde ou cedo irão agravar ao máximo os «recursos económicos e técnicos», por maiores que estes possam ser. A partir daí será impossível manter a «abundância», a menos que a natureza da própria sociedade se modifique, ou seja, que o princípio da rentabilidade seja eliminado. Dadas as dificuldades sociais que a sua decadência não deixará de originar, esta mesma «abundância» transformar-se-á num factor revolucionário. Não se pretende de modo algum afirmar que a «abundância» provoque automaticamente a revolução, mas simplesmente que o nascimento de sentimentos de oposição não está ligado a uma pauperiza-ção absoluta. Os homens não têm necessidade de se verem reduzidos à fome para entrarem em estado de revolta. Esta pode acontecer a partir do momento em que o nível de vida habitual se encontre gravemente atingido, ou desde que sejam impedidos de alcançar o nível de vida a que se julgam com direito. Quanto melhor viverem os homens menos dispostos estarão a passar por privações, visto que mais ligados ao modo de vida habitual se encontram. E neste sentido que uma diminuição da «abundância» reinante é susceptível de reduzir a nada o actual consenso.

Marx afirmou algures que «o proletariado ou é revolucionário ou não é nada». Neste momento ele não é nada e tem grandes possibilidades de continuar a não ser nada. Porém, esta não é uma certeza absoluta. Marx disse igualmente que «as ideias dominantes são as das classes dominantes», o que não impede o desenvolvimento de ideias subversivas. No entanto, é evidente que estas ideias apenas se propagam num clima de descontentamento e que a presente prosperidade — por mais fictícia que ela seja — não é de molde a engendrar tal movimento, pelo menos com a necessária amplitude. Donde o «pensamento unidimensional», a ausência de oposição no seio da sociedade industrial. Como é lógico em tais condições, não discutiremos a penetrante análise que Marx faz da ideologia dominante. Pelo contrário, só podemos aprovar as suas criticas e ficarmos-lhe agradecidos. Após Marx, já não pode, em suma, surpreender esta constatação que o autor faz: «A sociedade unidimensional modificou a relação entre o racional e o irracional. Em oposição aos aspectos fantásticos e loucos da sua racionalidade, o domínio do irracional tornou-se o domínio do verdadeiro irracional»(61). Tal é, na verdade, a consequência última do fetichismo da mercadoria e do capital.

É evidente que uma certa racionalidade não fetichista subsiste, — o próprio Marcuse é disso uma prova — porém ela não tem a menor importância prática. A actual oposição é um factor negligenciável. Na impossibilidade de representar interesses materiais de um peso suficientemente forte para fazer face aos interesses da ideologia dominante — ou mais exactamente: do delírio dominante — esta oposição não pode agora tornar-se numa força social. E uma oposição que perdeu toda a força material deixa de ser efectiva. Assim, o olhar perspicaz e frio que homens inteligentes passeiam sobre a sociedade e as suas vítimas, forma-se num luxo que eles bem poderiam desprezar em razão do apego que aquelas exprimem ao defenderem a irracionalidade dominante. Todavia, a minoria abandonada a ela mesma tem que viver no seio desta irracionalidade e, melhor ou pior, aceitá-la, necessidade transformada em virtude para a tornar menos agreste. Mesmo quando a oposição assume uma forma política, ela não consegue encontrar uma via consistente; constitui um exemplo disso a luta dos negros pelos direitos cívicos, objectivo absurdo e que, por mais absurdo que seja, se mantém irrealizável. O «outsider» não pode evadir-se das condições existentes — a menos que jogue tudo no incêndio e na pilhagem. Mas neste caso ele encontra-se já numa via que conduz a uma realidade que em si mesma é racional.

As autoridades, que representam a grande maioria, as pessoas-como-devem-ser, incluindo a maior parte dos operários, facilmente abafam as revoltas esporádicas em que o desespero lança umas escassas minorias. Negro ou branco, «o substracto dos párias e outsiders» pode, pouco a pouco, ser destruído, devido mesmo às condições de vida a que estão condenados. Mas à medida que este «substracto» aumenta em número — e ele está em vias de crescimento — a frequência dos seus actos de revolta igualmente aumenta ao mesmo tempo que muitas das pessoas-como-devem-ser se apercebem de que se arriscam bastante a figurar um dia também entre os destroços humanos do capitalismo. Em relação ao passado, o crescimento da miséria faz desta uma força social e a força conduz à acção consciente com vista a eliminar aquela. Quando Marcuse diz, a propósito dos desempregados, que «as sociedades estabelecidas possuem tais recursos económicos e técnicos que podem permitir-se conciliações e concessões aos miseráveis até porque são detentores de forças armadas capazes de fazerem face a situações de emergência»(62), ele descreve correctamente a actual situação no seio dos países industrialmente avançados. Mas a verdade de hoje não será forçosamente a mesma de amanhã, e sê-lo-á ainda menos se o desenvolvimento do capitalismo tender a seguir o mesmo caminho do passado.

É claro que não nos podemos regular pelo passado. Ele pode não se repetir. A era das revoluções está talvez definitivamente terminada e a sociedade unidimensional, imobilista e totalitária, pode ser inevitável. Mas se não podemos julgar pelo passado, não o façamos então em caso algum. A partir de então tudo é possível — mesmo uma revolução proletária. O que sem dúvida pressupõe a continuação da existência do proletariado, a quem tantas vezes se atribui a situação de desaparecido pelo facto de haver perdido não só a sua consciência de classe mas também a sua função social. Não é raro ver estabelecer-se a diferença entre a «classe operária clássica», a dos operários de indústria no sentido de Marx, e a população activa moderna, de que apenas uma pequena parte exerce uma actividade produtiva. Distinção totalmente artificial: não é a situação profissional do proletariado que o distingue da burguesia mas o facto de não ser o senhor da sua existência por não ser proprietário dos meios de produção. Qualquer que seja o seu ofício, os trabalhadores assalariados conservar-se-ão proletários.

O número dos trabalhadores empregues nas indústrias não produtivas (aquilo a que se costuma chamar o sector dos serviços) cresceu incontestavelmente, mas isso em nada altera a sua função social face aos capitalistas. Em consequência da concentração do capital e da eliminação da pequena burguesia proprietária, existem actualmente mais proletários do que nunca, fi evidente que uma percentagem não negligenciável destes proletários goza, graças às receitas de que usufrui, de níveis de vida burgueses ou pequeno-burgueses. Mas, precisamente em matéria de níveis de vida, a grande maioria de entre eles cai na categoria de trabalhadores assalariados, por mais improdutivos que possam ser os seus trabalhos. Acontece que trabalhadores activos não se consideram proletários ou recusam considerar-se como tais e que esta pouca vontade de reconhecimento da realidade tal como ela é contribui para reforçar o conceito unidimensional da ideologia dominante. Mas, para conservar a sua função social, uma ideologia, qualquer que ela seja, deve ser mais ou menos capaz de apreender o real, à falta do que perde toda a sua eficiência. Se o trabalhador bem pago tem razões para esquecer a sua condição proletária, o desempregado possuí muito menos. Quanto ao miserável, dado como vagabundo, não pode alimentar tal ilusão. Mas admitir a sua própria condição de modo algum significa que simultaneamente adquirirá uma consciência de classe, no sentido revolucionário do termo. Essa é apenas uma condição fundamental para o desenvolvimento de uma ideologia e de um movimento anti-capitalistas.

Quando Marx falava da «missão histórica» da classe operária — pôr termo ao sistema capitalista — ele designava assim, como a sua teoria da acumulação o permite inferir, a expropriação da minoria pela maioria. Ele estava convencido, e com razão, de que a expansão do capital teria por efeito a polarização da sociedade numa pequena minoria de capitalistas e numa grande maioria de não proprietários, obrigados a venderem a sua força de trabalho para subsistirem e abandonados às piores calamidades quando o não conseguem. O proletariado da indústria do século passado acabou por tomar as dimensões de uma massa amorfa de assalariados, empregados numa multidão de sectores profissionais, todos sujeitos às flutuações do mercado e aos imprevistos, felizes ou não, do processo de acumulação. Independentemente da ideia que façam de si próprios e da sua condição real, isso não impede que pertençam não às classes dirigentes mas às dirigidas.

Fundamentalmente, a sociedade capitalista está dividida em duas classes, não obstante a existência no seio de cada uma destas diferenciações bastante nítidas. A classe dirigente é que decide; a outra, apesar da sua diferenciação interna, encontra-se à mercê das decisões que determinam a condição geral da sociedade, mesmo quando tomadas unicamente em função das necessidades do capital. Lúcidas ou estúpidas, estas decisões só podem ter um objectivo: perpetuar por todos os meios a ordem estabelecida. E claro que acontece que as camadas da população que não possuem qualquer poder de decisão estejam em desacordo com as grandes opções da classe dirigente, porque estas não lhes pareçam conformes com os seus interesses ou adaptadas à situação. Mas para influir na decisão ou modificá-la é necessário exercer um poder próprio.

Tudo o que os dirigentes decidem tem que ser executado na esfera da produção, dado que é esta que comanda o modo de repartição dos produtos e o estilo de consumo. Uma classe que não disponha de meios de produção, não possui a menor parcela de um poder que se exerce quer por meios ideológicos quer pela força. Mas nem o direito de propriedade, nem a ideologia, nem a força produzem o que quer que seja. E sobre o trabalho do produtor que repousa todo o edifício social. Os trabalhadores produtivos têm um poder latente muito superior ao de qualquer outro grupo social ou ao de todos os outros grupos reunidos. Transformar este poder latente num poder efectivo exige apenas a clara percepção das realidades sociais e a tradução deste conhecimento em actos que permitam aos produtores realizar os seus objectivos específicos.

A grande função da ideologia burguesa é contestar esta primeira verdade, como o revelaram mais particularmente as teorias económicas que depreciam os resultados tangíveis do trabalho produtivo. Mas por mais que se afirme que a importância do proletariado da indústria não deixa de diminuir, atribui-se-lhe mais atenção do que nunca e não sem razão, aliás: não é verdade que a sua capacidade — totalmente virtual, é claro — de dirigir a sociedade nunca foi tão grande? A «socialização» da produção, quer ao nível da técnica quer ao nível da produção, ou seja, o facto de os diversos aspectos do processo da produção nacional estarem perfeitamente interligados e de a sorte da população inteira depender directamente do bom andamento da produção, eis o que confere à classe operária um poder quase absoluto sobre a via seguida pela sociedade. Para pôr termo a esta é suficiente um único gesto: cruzar os braços. Que na qualidade de membros desta sociedade os operários hesitem em recorrer a uma solução tão extrema e que não tardaria a repercutir-se sobre eles mesmos, isso compreende-se facilmente. Mas não é menos certo que se se decidissem a transformar a sociedade, teriam possibilidades de a abalar até aos seus fundamentos. Foi por esta razão que os sindicatos operários foram adaptados às estruturas capitalistas e encarregados de manter os conflitos de trabalho dentro de limites «aceitáveis» e pelos mesmos motivos que os governos — inclusive os governos socialistas — regulamentam a greve, enquanto os governos totalitários, mais conscientes do poder latente da acção operária, consideram simplesmente a greve como acto fora-da-lei.

Devido a este poder latente, o proletariado da indústria é hoje, como já o era ontem, a única classe capaz — com a condição de o desejar — de transformar realmente a sociedade. O que aqui importa é acentuar a existência virtual deste poder, independentemente da questão de saber se os operários quererão e poderão um dia servir-se dele. Se esta virtualidade não tivesse o menor fundamento social, se a sua tradução em actos não aparecesse como uma possibilidade real, deixaria de existir qualquer esperança de ver novas forças vencerem as forças materiais da coerção. A partir daí, a única esperança permitida seria a crença de que as ideias, sozinhas, conseguiriam transformar simultaneamente a ideologia dominante e os interesses materiais que lhe servem de base.

É claro que qualquer luta social é ao mesmo tempo um combate ideológico, mas jamais será bem sucedido se não dispuser de uma força material que lhe permita destruir as defesas do inimigo. De modo algum é inconcebível que a crescente irracionalidade da sociedade venha a originar uma mudança na grande massa, independentemente da sua classe, e a convicção cada vez mais nítida de que, dado que as relações de exploração perderam qualquer espécie de necessidade e sentido, é preciso reorganizar a sociedade em proveito de todos e abrir assim a todos a possibilidade de uma existência finalmente digna de ser vivida. O que equivaleria a um triunfo da razão sobre os interesses irracionais de classe e à auto-decomposição da classe dominante. Na ausência de tal milagre, a nova sociedade apenas nascerá de um combate gigantesco, levado a cabo por todos os meios possíveis, tanto no campo ideológico como na esfera das relações de força reais.

Está demonstrado que, em caso de crise social, largas camadas da população habitualmente tidas como estranhas à classe operária tomarão no entanto o seu partido contra a classe dominante. Mesmo hoje, que os trabalhadores ainda não saíram da sua apatia, os estudantes, os intelectuais e outros membros da nova classe não proprietária interessam-se apaixonadamente por questões políticas aparentemente isoladas, tais como a guerra, o desarmamento, os direitos cívicos, etc. Mas este movimento de contestação manter-se-á ineficaz enquanto não dispuser de um poder político real, e que apenas pode vir da classe trabalhadora. Sem revolução proletária não há revolução.

Segundo Marcuse, a revolução é perfeitamente impossível nos países industriais avançados. Ainda que tal acontecesse, a gestão dos poderes produtivos pelos «de baixo» não provocaria, a seu ver, qualquer mudança social qualitativa. A ideia de uma tal mudança era, diz Marcuse, «legítima no tempo em que os operários eram a única negação e condenação da ordem estabelecida. No entanto, onde quer que a classe operária se tenha tornado um pilar do modo de vida preponderante, a sua ascensão ao poder apenas veio prolongar esse mesmo modo de vida, porém num contexto diferente»(63).

Ou seja: a burguesia e o proletariado são de agora em diante idênticos: independentemente da classe no poder o modo de vida não sofrerá qualquer transformação fundamental.

Se a classe operária se transformou no «pilar» em questão, todas as outras classes estão, evidentemente, na mesma situação. A diferença é que a «abundância» que fez da primeira um «pilar» do sistema, torna-se negligenciável — por mais notável que possa ser — comparada com a que as outras classes usufruem.

A «abundância» continua muito desigualmente distribuída, o que dá origem a uma permanente luta pela apropriação de um maior bocado do bolo. Mas, em virtude desta mesma rivalidade, ninguém atinge a satisfação e nunca, na verdade, existe o sentimento de uma vida na opulência. Na realidade, a «abundância» que a classe operária conhece é antes de mais mitológica, além de que foi alcançada à custa de esforços inauditos. Mas, independentemente disto, ela é suficiente para satisfazer o desejo dos trabalhadores, pelo menos no sentido em que estes não se interrogam sobre a oportunidade de uma transformação social. A hipótese de uma «gestão a partir de baixo» não parece portanto muito próxima de ser posta à prova dos factos.

Toda esta concepção supõe que o capitalismo é capaz de manter ao nível actual o modo de vida das massas trabalhadoras; a partir do momento em que este postulado seja desmentido pela prática, aquela teoria cai pela base. Pela nossa parte tentamos mostrar que o capitalismo é incapaz de tal. IS claro que a situação actual prova o contrário, mas isso nada significa quanto ao futuro. O problema reside na determinação do sentido da evolução no seu conjunto, dado que apenas uma pequena parte do mundo usufrui da «abundância» enquanto a condição humana em geral se torna cada vez mais intolerável. Semelhante estado de coisas não é susceptível de mudança no contexto do capitalismo, cujo fim apenas pode ser concebido como abolição das relações de classe e da condição proletária. Unidimensional, a sociedade apenas o é no plano ideológico; em todos os outros aspectos ela conserva-se capitalista como anteriormente. Nascido da prosperidade, o conformismo ideológico com ela desaparecerá, visto que não dotado de uma existência autónoma. Na medida em que o raciocínio teórico tem uma validade e permite fazer previsões, tudo indica que se caminha não só para uma deterioração da prosperidade, mas ainda para o fim do próprio sistema capitalista.

O fim do sistema capitalista, por sinónimo que seja de abolição do proletariado, poderia no entanto ser precedido por uma simples modificação do sistema no sentido do capitalismo de Estado. Uma revolução deste género não seria de modo algum socialista, dado que apenas significaria a transferência dos meios de produção e distribuição — e por isso da gestão da produção e da distribuição — arrancados aos seus proprietários privados, para as mãos de formações políticas que se confundem com o Estado. O proletariado manter-se-á uma classe dirigida, incapaz de forjar ele próprio o seu destino. E esta eventualidade não é de desprezar, tal revolução surgindo como um termo lógico do domínio do Estado sobre a Economia e sobre a vida social em geral. Não estará ela, por outro lado, de acordo com o modelo já familiar dos sistemas capitalistas de Estado há longa data estabelecidos e geralmente considerados como regimes socialistas? No entanto, no caso concreto, a estrutura capitalista de Estado foi posta em prática não para abolir o proletariado mas para acelerar a sua formação. Nesta medida, a ideologia socialista serve de cobertura à exploração intensificada do trabalho e deve à estatização dos meios de produção o facto de parecer racionalizadora. Em contrapartida, nos países industriais avançados o capitalismo de Estado seria tão irracional como o seu predecessor. Pois o problema aqui já não é aumentar a exploração, mas, pelo contrário, pôr fim ao próprio sistema de exploração.

É na verdade uma produtividade acrescida que nestes países sapa a rentabilidade do capital e com ela destrói a força motora da expansão capitalista. A causa disto reside no facto de o capital revestir então a forma de propriedade privada e depender portanto das relações de mercado e de concorrência, forçando assim os capitalistas à acumulação, em vez de os libertar dessa obrigação. Os lucros não são senão sobretrabalho e mesmo que a formação do capital com base no lucro tivesse chegado ao seu termo, o processo de produção continuaria a exigir trabalho e sobretrabalho. Quando os meios de produção se tornarem monopólio do Estado, o governo encontra-se apto a fixar as relações entre o trabalho e o sobretrabalho, assim como a organizar a produção e distribuição dos bens sem preocupação de equidade. Os meios dirigentes das nações avançadas poderiam, em tal caso, imitar os seus homólogos dos países pobres em capital que fazem de molde a poderem manter as relações de classe no quadro de sistemas capitalistas de Estado. Sem dúvida que não terão as mesmas «justificações», mas bastar-lhes-ia criar um aparelho de repressão adequado para o poderem fazer. A partir de então, as relações de classe seriam mantidas em benefício de uma classe privilegiada e a economia planificada serviria de base a uma sociedade de classes planificada.

Para isto é necessário uma revolução, mas não uma revolução socialista, pois esta tem precisamente como característica principal a socialização dos meios de produção e através dela a gestão pelos próprios produtores do produto do seu trabalho e da sua distribuição. Em caso contrário será apenas a troca de uma forma de escravatura por uma outra e nada prova que estas formas sejam na verdade preferíveis à outra. Apenas a auto-determinação da classe operária permite a realização do socialismo, na medida em que é ela que exerce todas as funções produtivas sobre que repousam a vida social e que a enriquecem. Uma organização consciente da produção e uma repartição racional dos bens apenas podem ter por base o interesse da sociedade global. Mas isso só é possível com uma condição: o desaparecimento da autoridade incontestável que uma classe particular exerce sobre a sociedade, o que exige por seu lado a organização de novos modelos sociais e económicos, cuja eficácia deverá ser verificada e melhorada por um constante recurso à experiência. Falar de uma mudança social chamada a eliminar o modo de vida capitalista, significa falar da revolução do proletariado, pois só esta classe específica é capaz, do ponto de vista da produção, de transformar a sociedade numa comunidade sem classes e racional.

O socialismo não pode ser posto em prática apenas com uma simples mudança de governo. Na verdade ele exige uma transformação radical da sociedade, mediante o total poder de decisão dos produtores. Quanto à planificação, ela deverá ser organizada de tal modo que planificadores e produtores tenham os mesmos interesses e constituam na verdade partes integrantes de um mesmo organismo produtivo. Dada a abundância que caracteriza a sociedade industrial avançada, a distribuição poderá ser libertada de todas as relações de valor e, neste sentido, a «igualdade» seria um facto. Mas não nos preocupamos aqui em demonstrar que o socialismo é algo realizável, ou tão pouco em estudar as novas instituições que haverá a criar. Tudo quanto desejamos dizer sobre o assunto resume-se nisto: para levar a melhor sobre o capitalismo, o socialismo tem que forçosamente ser obra da classe produtiva.

Regressemos então a perspectivas mais imediatas. Na verdade, dado o actual comportamento da classe operária, e na medida em que o socialismo não se poderá realizar sem ela, tudo leva a crer que este só será possível pelas calendas gregas e, enquanto se aguarda, reveste todas as características de um «sonho marxiano». No entanto, basta pensar em tudo o que pode acontecer na ausência de uma revolução, para vermos surgir a possibilidade de uma mudança de atitude prática. A este respeito, o futuro transparece já através do presente e, por si só, uma projecção quantitativa do segundo sobre o primeiro é suficiente para mostrar que a ideia segundo a qual seria viável a resolução dos problemas sociais por métodos capitalistas não passa de uma absoluta utopia. «Socialismo ou barbárie» é a única alternativa possível, ainda que um estado de barbárie seja susceptível de engendrar contra-forças capazes de o transformar.

A consciência de classe, diz-se frequentemente, está ligada à miséria. Ora, uma coisa é certa: a população mundial virá a cair numa miséria que ultrapassará de longe tudo quanto neste aspecto até hoje se conheceu, e esta miséria abater-se-á mesmo sobre as minorias privilegiadas dos países industriais que, até à data, se julgavam ao abrigo do seu próprio comportamento. Porque não existem «soluções económicas» para as contradições do capitalismo, tenta-se impor «soluções económicas» por intermédio de meios políticos mais adaptados, é claro, à estrutura sócio-económica do capitalismo. Ou seja, os efeitos destruidores da produção de capital serão ainda mais exacerbados. No interior, a produção para o desperdício não deixará de se desenvolver, enquanto, no exterior, territórios cujas populações, pouco desejosas de cavarem a própria sepultura, se recusarão a ceder às exigências de lucro das potências estrangeiras, serão vítimas da devastação. E3 à medida que os frutos da produção acrescida se dissiparem, no contexto de uma concorrência sanguinária com vista à atenuação dos efeitos da baixa dos lucros que a generalização da miséria provoca, as bem-aventuradas ilhas da «abundância» ficarão, elas também, submersas.

Sem dúvida que não faltam razões para se pensar que nada fará reagir as massas trabalhadoras, que elas preferirão a miséria à luta contra o sistema que a causa. Mas a ausência de consciência revolucionária não significa a ausência de lucidez. E, consequentemente, é muito mais provável que a classe operária não aceite eternamente o destino que o sistema capitalista lhe pretende reservar. Poderá ser atingido um ponto de ruptura, a partir do qual a consciência de classe se venha aliar à lucidez. O surgimento de uma vontade revolucionária, a passagem à acção autónoma não terá obrigatoriamente que ser precedida por um longo período de constante oposição aberta. Apática em certas condições, a classe operária poderá revoltar-se noutras. E, porque está destinada a sofrer mais do que as outras classes os golpes da produção de capital e dos intuitos guerreiros da classe dirigente, ela será provavelmente a primeira a cortar com a ideologia unidimensional inerente ao reino do capital.

Diga-se, uma vez mais, que de modo algum se trata de uma certeza. Existe uma possibilidade, é tudo, como Marcuse o observa num contexto um pouco diferente. E se esta hipótese existe não é porque uma parte do proletariado se encontra excluído do processo de integração capitalista, mas simplesmente em virtude de o sistema dominante correr o risco de destruir o mundo antes que surja uma possibilidade de a evitar. A integração na morte, eis na realidade a única via deixada ao capitalismo. Em qualquer caso, o homem unidimensional não existirá por muito mais tempo. Ele desaparecerá com o primeiro colapso da economia capitalista, no banho de sangue que a ordem estabelecida está em vias de lhe preparar. Atingido o apogeu da sua força, o capitalismo chegou igualmente ao seu mais alto grau de vulnerabilidade. Independentemente do caminho que escolha, só se pode dirigir para o fim. Por mais fracas que sejam as hipóteses de revolta, este é menos que nunca o momento de renunciar ao combate!


Notas de rodapé:

(1) H. Marcuse, «Le Socialisme dans la société industrieIle», Revue intenationale du socialisme, II , 8 Abril-Maio 1965, p. 159. (retornar ao texto)

(2)  “Le socialisme dans la société industrielle”, Ioc. cit., p. 158. (retornar ao texto)

(3) Id., p. 148. (retornar ao texto)

(4) H. Marcuse, L´Homme unidimensionnel. Essai sur l’idéologie de la société industrielle avancée, 1970. (retornar ao texto)

(5) Id., p. 21. (retornar ao texto)

(6) Id., p. 23. (retornar ao texto)

(7) Ibid. (retornar ao texto)

(8) Ibid. (retornar ao texto)

(9) Id., p. 21. (retornar ao texto)

(10) Id., p.24. (retornar ao texto)

(11) Id., p. 25. (retornar ao texto)

(12) Id., p. 21. (retornar ao texto)

(13) Id., p. 280. (retornar ao texto)

(14) Id., p. 305. (retornar ao texto)

(15) Id., p. 312. (retornar ao texto)

(16) «Le Socialisme dans la Société lndutriel!e»,, loc. cit., p. 149. (retornar ao texto)

(17) Cf. R. Hilferding, Le Capital Financier, Paris, 1970. (retornar ao texto)

(18) «Le Socialisme dans la Société Industrielle», loc. cit., p. 147. (retornar ao texto)

(19) Ibid. (retornar ao texto)

(20) «Le Socialisme dans la Société Industrielle», loc. cit., p. 149. (retornar ao texto)

(21)   «Le Socialisme dans la Société Industrielle», loc. cit., p 152. (retornar ao texto)

(22) L’Homme Unidimensionnel, op. cit., p. 196. (retornar ao texto)

(23) Id, p. 187. (retornar ao texto)

(24) «Le Socialisme dans les pays Industrlels», loc. cit., p. 148. (retornar ao texto)

(25) Id., loc. cit., p. 156, n.° 2. (retornar ao texto)

(26) Ibid. (retornar ao texto)

(27) «Le Socialisme dans les pays industriels», loc. cit.,p. 157. (retornar ao texto)

(28) Note-se que Herbert Marcuse faz uma distinção (cf. L’Homme Unidimensionnel, n.° 34, p. 80) entre «tempo livre» e «tempo de lazer». Este último tende a desenvolver-se na socidade industrial avançada, mas não é livre «na medida em que é condicionado pelos negócios e pela política» (N.T. F.). (retornar ao texto)

(29) «Le Socialisme dans les pays industriels», loc. cit., p. 158. (retornar ao texto)

(30) Ibid. (retornar ao texto)

(31) H. Marcuse, «Industrialisierung und Kapitalismus», in: Max Weber und die Gesellsckaft (relatórios do XV Congresso do sociólogos alemães), Frankfurt, 1965, p. 124. (retornar ao texto)

(32) «Le Socialisme dans la Société Industríelle», loc. cit,, p. 149. (retornar ao texto)

(33) Ibid, p. 151. (retornar ao texto)

(34) L’Homme Unidimensionnel, op. cit., p. 85. (retornar ao texto)

(35) H. Marcuse, Le Marxisme Soviétique, Paris, 1963. (retornar ao texto)

(36) L’Homme Unidimensionnel, op. cit., pp. 58-59. (retornar ao texto)

(37) Ibid., p.59. (retornar ao texto)

(38) K. Marx, In: Fondements de la critique de l’économie politique, Êditions Anthropos, Paris, 1967-68, II, p. 222. (retornar ao texto)

(39) Fondements de la critique de l’économie politique. op. cit., II, p. 223. (retornar ao texto)

(40) Id., II. p. 225. (retornar ao texto)

(41) L’Homme Unidimensionnel, op. cit., p. 67. (retornar ao texto)

(42) Id, p. 76. (retornar ao texto)

(43) Id., p.87. (retornar ao texto)

(44) Le Marxisme Soviétique, Paris, 1963. pp. 104-105. (retornar ao texto)

(45) «Le socialisme dans la société industrielle», loc. cit., p. 150. (retornar ao texto)

(46) L´Homme Unidemensionnel, op. cit., p. 19, n°. 1. (retornar ao texto)

(47)  Id., p. 185. (retornar ao texto)

(48) «Le Socialisme dans les pays industriels», loc. cit., p. 157. (retornar ao texto)

(49) Le Marxisme Sovietique, op. cit., p. 104. (retornar ao texto)

(50) L’Homme Undimensionnel, op. cit,, p. 75. (retornar ao texto)

(51)  lbid. (retornar ao texto)

(52) Le Marxisme Sovietique, op. cit., pp. 261-262. (retornar ao texto)

(53) L’Homme Unidimensionnel,  p. 73. (retornar ao texto)

(54) «Le Socialisme dans les pays Industriels», loc. cit., p. 154. (retornar ao texto)

(55) Ibid. (retornar ao texto)

(56) L´Homme Unidmensionnel,  p. 237. (retornar ao texto)

(57) «Le Socialisme dans la société industrielle», loc. cit., p. 152, nº 2. (retornar ao texto)

(58) ibid. (retornar ao texto)

(59) ibid. (retornar ao texto)

(60) Id., p. 153. (retornar ao texto)

(61) L’Homme Unidimensionnel, p. 301. (retornar ao texto)

(62) L’Homme Unidimensionnel, p. 311. (retornar ao texto)

(63)  L’Homme Unidimensionnel, pp. 306-307. (retornar ao texto)

Inclusão 13/10/2019