Primeiro Projecto de Resposta à Carta de Vera Zassúlitch[N120]

Karl Marx

Março de 1881

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Primeira Edição: Redigido por K. Marx em francês em fins de Fevereiro/princípios de Março de 1881. Publicado pela primeira vez o Arquivo de K. Marx e F. Engels, livro I, 1924. Publicado segundo o texto do manuscrito, Traduzido do francês.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!" - Edição dirigida por um colectivo composto por: José BARATA-MOURA, Eduardo CHITAS, Francisco MELO e Álvaro PINA, tomo III, pág: 169-178.
Tradução: José BARATA-MOURA.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.


capa

1. Tratando da génese da produção capitalista, disse que o seu segredo é que, no fundo, há «a separação radical do produtor [e] dos meios de produção» (p. 315, coluna I, ed. francesa do Capital) e que «a base de toda esta evolução é a expropriação dos cultivadores. Ela ainda não se consumou de uma forma radical senão em Inglaterra... Mas todos os outros países da Europa Ocidental percorrem o mesmo movimento». (1. c. c. IL)(1*).

Restringi, portanto, expressamente a «fatalidade histórica» deste movimento aos países da Europa Ocidental. E porquê? Compare, por favor, o capítulo XXXII onde se lê:

«O movimento de eliminação que transforma os meios de produção individuais e esparsos em meios de produção socialmente concentrados, que faz da propriedade anã de grande número a propriedade colossal de alguns, esta dolorosa, esta horrível expropriação do povo trabalhador, eis as origens, eis a génese do capital... A propriedade privada, fundada sobre o trabalho pessoal... vai ser suplantada pela propriedade privada capitalista, fundada sobre a exploração do trabalho de outrem, sobre o salariato» (p. 340, c. II).(2*)

Assim, em última análise, há a transformação de uma forma da propriedade privada numa outra forma da propriedade privada. Nunca tendo a terra nas mãos dos camponeses russos sido propriedade privada deles, como poderia este desenvolvimento aplicar-se-lhe?

2. Sob o ponto de vista histórico, eis o único argumento sério advogado em favor da dissolução fatal da comuna dos camponeses russos :

Remontando muito atrás, encontra-se por todo o lado na Europa Ocidental a propriedade comum [commune] de um tipo mais ou menos arcaico; por toda a parte, ela desapareceu com o progresso social. Por que só na Rússia teria ela escapado à mesma sorte?

Respondo: porque, na Rússia, graças a uma combinação de circunstâncias única, a comuna rural, ainda estabelecida numa escala nacional, pode gradualmente desembaraçar-se das suas características primitivas e desenvolver-se directamente como elemento da produção colectiva numa escala nacional. É justamente graças à contemporaneidade da produção capitalista que ela se pode apropriar de todas as aquisições positivas, e sem passar pelas suas peripécias terríveis, medonhas. A Rússia não vive isolada do mundo moderno; também não é presa de um conquistador estrangeiro à semelhança das Índias Orientais.

Se os amantes russos do sistema capitalista negassem a possibilidade teórica de uma tal evolução, eu far-lhes-ia a pergunta: para explorar as máquinas, os navios a vapor, os caminhos-de-ferro, etc, a Rússia foi forçada, à semelhança do Ocidente, a passar por um longo período de incubação da indústria mecânica? Que me expliquem ainda como fizeram para introduzir entre eles, num abrir e fechar de olhos, todo o mecanismo de trocas [échanges] (bancos, sociedades de crédito, etc.) cuja elaboração custou séculos ao Ocidente?

Se, no momento da emancipação[N121], as comunas rurais tivessem sido colocadas, de início, em condições de prosperidade normal, se, em seguida, a imensa dívida pública paga na sua maior parte às custas e em detrimento dos camponeses, com as outras enormes somas, fornecidas por intermédio do Estado (e sempre à custa e detrimento dos camponeses), aos «novos pilares [nouvelles colonnes] da sociedade» transformados em capitalistas — se todas estas despesas tivessem servido para o desenvolvimento ulterior da comuna rural, então, ninguém sonharia hoje com «a fatalidade histórica» do aniquilamento da comuna: toda a gente aí reconheceria o elemento da regeneração da sociedade russa e um elemento de superioridade sobre os países ainda subjugados pelo regime capitalista.

Uma outra circunstância favorável à conservação da comuna russa (pela via do desenvolvimento), é que ela é não somente contemporânea da produção capitalista, mas sobreviveu à época em que este sistema social se apresentava ainda intacto, que ela o encontra, pelo contrário, na Europa Ocidental como nos Estados Unidos, em luta quer com a ciência, quer com as massas populares, quer com as próprias forças produtivas que ele engendra. Ela encontra-o, numa palavra, numa crise que só acabará com a sua eliminação, com um retorno das sociedades modernas ao tipo «arcaico» de propriedade comum, forma onde, como o diz um autor americano(3*), de modo nenhum suspeito de tendências revolucionárias, apoiado nos seus trabalhos pelo governo de Washington — «o sistema novo» para o qual a sociedade moderna tende, «será um renascimento (a revirai)(4*), numa forma superior (in a superior form)(5*), de um tipo social arcaico»[N122]. Portanto, é preciso não nos deixarmos assustar de mais pela palavra «arcaico».

Mas, então, seria preciso, pelo menos, conhecer estas vicissitudes. Nós não sabemos nada delas.

A história da decadência das comunidades primitivas (cometer-se-ia um erro pondo-as todas ao mesmo nível; como nas formações geológicas, há nas formações históricas toda uma série de tipos primários, secundários, terciários, etc.) está ainda por fazer. Até agora não se forneceram senão magros esboços. Mas, em todo o caso, a investigação [exploration] está suficientemente avançada para afirmar: 1) que a vitalidade das comunidades primitivas era incomparavelmente maior que a das sociedades semitas, gregas, romanas, etc. e, afortiori que a das sociedades modernas capitalistas; 2) que as causas da sua decadência derivam de dados económicos que as impedem de ultrapassar um certo grau de desenvolvimento, de meios históricos de modo nenhum análogos ao meio histórico da comuna russa de hoje.

Ao ler as histórias de comunidades primitivas, escritas por burgueses, é preciso estar em guarda. Eles não recuam mesmo perante falsificações. Sir Henry Maine, por exemplo, que foi um colaborador ardente do governo inglês na sua obra de destruição violenta das comunas indianas, assegura-nos hipocritamente que todos os nobres esforços da parte do governo para manter estas comunas falharam contra a força espontânea das leis económicas[N123].

De uma maneira ou de outra, esta comuna pereceu no meio de guerras incessantes, estrangeiras e intestinas; ela morreu, provavelmente, de morte violenta. Quando as tribos germanas vinham conquistar a Itália, a Espanha, a Gália, etc, a comuna de tipo arcaico já não existia. No entanto, a sua vitalidade natural está provada por dois factos. Existem exemplares esparsos, que sobreviveram a todas as peripécias da Idade Média e que se conservaram até aos nossos dias, por exemplo, na minha terra natal, o distrito de Trier. Mas, o que é mais importante, ela imprimiu tão bem os seus próprios caracteres na comuna que a suplantou — comuna onde a terra arável se tornou propriedade privada, enquanto florestas, pastagens, terras baldias [vagues] etc, permanecem ainda propriedade comunal — que Maurer, decifrando esta comuna de formação secundária, pôde reconstruir o protótipo arcaico. Graças aos traços característicos tirados desta, a comuna nova, introduzida pelos Germanos em todos os países conquistados, tornou-se durante toda a Idade Média o único foco de liberdade e vida popular.

Se depois da época de Tácito não sabemos nada da vida da comuna nem do modo e tempo do seu desaparecimento, nós conhecemos pelo menos o ponto de partida, graças ao relato de Júlio César. No seu tempo, a terra repartia-se já anualmente, mas entre as gens e tribos das confederações germânicas e não ainda entre os membros individuais duma comuna. A comuna rural saiu, portanto, na Germânia, de um tipo mais arcaico, foi aí o produto dum desenvolvimento espontâneo em vez de ser importada já feita da Ásia. Lá — nas Índias Orientais — encontramo-la também e sempre como o último termo ou o último período da formação arcaica.

Para ajuizar dos destinos possíveis da «comuna rural» sob um ponto de vista puramente teórico, quer dizer, supondo sempre condições de vida normais, é-me preciso agora designar certos traços característicos que distinguem a «comuna agrícola» dos tipos mais arcaicos.

E, em primeiro lugar, as comunidades primitivas anteriores repousam todas sobre o parentesco natural dos seus membros; rompendo esta ligação forte, mas estreita, a comuna agrícola é mais capaz de se expandir e de suportar o contacto com estranhos.

Em seguida, nela, a casa e o seu complemento, o pátio, são já propriedade privada do cultivador, enquanto muito tempo antes da introdução da própria agricultura, a casa comum foi uma das bases materiais das comunidades precedentes.

Enfim, se bem que a terra arável permaneça propriedade comunal, é dividida periodicamente entre os membros da comuna agrícola, de maneira que cada cultivador explora por sua própria conta os campos que lhe foram distribuídos e se apropria individualmente dos frutos, enquanto nas comunidades mais arcaicas a produção se faz em comum e reparte-se somente o produto dela. Este tipo primitivo da produção cooperativa ou colectiva foi, bem entendido, o resultado da fraqueza do indivíduo isolado e não da socialização dos meios de produção.

Compreende-se facilmente que o dualismo inerente à «comuna agrícola» possa dotá-la de uma vida vigorosa, porque, dum lado, a propriedade comum e todas as relações sociais que dela decorrem tornam a sua base [assiette] sólida, ao mesmo tempo, a casa privada, a cultura parcelar da terra arável e a apropriação privada dos frutos admitem um desenvolvimento da individualidade, incompatível com as condições das comunidades mais primitivas. Mas não é menos evidente que este mesmo dualismo possa com o tempo tornar-se uma fonte de decomposição. À parte todas as influências dos meios hostis, a única acumulação gradual da riqueza mobiliária que começa pela riqueza em gado (e admitindo mesmo a riqueza em servos), o papel cada vez mais pronunciado que o elemento mobiliário desempenha na própria agricultura e uma quantidade de outras circunstâncias, inseparáveis desta acumulação, mas cuja exposição me levaria demasiado longe, agirão como um dissolvente da igualdade económica e social, e farão nascer no seio da própria comuna um conflito de interesses que traz consigo, em primeiro lugar, a conversão da terra arável em propriedade privada e que acaba com a apropriação privada das florestas, pastagens, terras baldias, etc, tornadas já anexos comunais da propriedade privada. É por isso que a «comuna agrícola» se apresenta por todo o lado como o tipo mais recente da formação arcaica das sociedades e que, no movimento histórico da Europa Ocidental, antiga e moderna, o período da comuna agrícola aparece como período de transição da propriedade comum para a propriedade privada, como período de transição da formação primária para a formação secundária. Mas quer isto dizer que em todas as circunstâncias o desenvolvimento da «comuna agrícola» deva seguir esta via? De modo nenhum. A sua forma constitutiva admite esta alternativa: ou o elemento de propriedade privada, que ela implica, levará a melhor sobre o elemento colectivo, ou este levará a melhor sobre aquele. Tudo depende deste meio histórico em que ela se encontra colocada... Estas duas soluções são a priori(6*) possíveis, mas para uma ou para outra é preciso evidentemente meios históricos completamente diferentes.

3) A Rússia é o único país europeu onde, até hoje, a «comuna agrícola» se manteve numa escala nacional. Ela não é presa de um conquistador estrangeiro à semelhança das Índias Orientais. Ela também não vive isolada do mundo moderno. Por um lado, a propriedade comum da terra permite-lhe transformar directa e gradualmente a agricultura parcelar e individualista em agricultura colectiva, e os camponeses russos praticam-na já nas pradarias indivisas; a configuração física do seu solo convida à exploração mecânica numa vasta escala; a familiaridade do camponês com o contrato de artel(7*) facilita-lhe a transição do trabalho parcelar para o trabalho cooperativo e, por fim, a sociedade russa, que durante tanto tempo viveu à sua custa, deve-lhe os avanços necessários para uma tal transição. Por outro lado, a contemporaneidade da produção ocidental, que domina o mercado do mundo [marche du monde], permite à Rússia incorporar na comuna todas as aquisições positivas elaboradas pelo sistema capitalista sem passar pelas suas forcas caudinas[N124].

Se os porta-vozes dos «novos pilares sociais» negassem a possibilidade teórica de evolução da comuna rural moderna, perguntar-se-lhes-ia: foi forçada a Rússia, como o Ocidente, a passar por um longo período de incubação da indústria mecânica para chegar às máquinas, navios a vapor, aos caminhos-de-ferro, etc? Perguntar-se-lhes-ia ainda como fizeram para introduzir no seu país num abrir e fechar de olhos todo o mecanismo de trocas (bancos, sociedades por acções, etc) cuja elaboração custou séculos ao Ocidente?

Há um carácter da «comuna agrícola» na Rússia que a fere de fraqueza, hostil em todos os sentidos. É o seu isolamento, a falta de ligação entre a vida de uma comuna com a das outras, este microcosmo localizado, que se não encontra por toda a parte como carácter imanente deste tipo, mas que por toda a parte onde se encontra fez surgir acima das comunas um despotismo mais ou menos central. A federação das repúblicas russas do Norte prova que este isolamento, que parece ter sido primitivamente imposto pela vasta extensão do território, foi em grande parte consolidado pelos destinos políticos que a Rússia tinha de sofrer desde a invasão mongol. Hoje é um obstáculo da mais fácil eliminação. Seria preciso simplesmente substituir a волость [vólost][N125], instituto governamental, por uma assembleia de camponeses escolhidos pelas próprias comunas e servindo de órgão económico e administrativo dos seus interesses.

Uma circunstância muito favorável, sob o ponto de vista histórico, para a conservação da «comuna agrícola» por via do seu desenvolvimento ulterior, é que ela é não somente contemporânea da produção capitalista ocidental, e pode assim apropriar-se dos seus frutos sem se submeter ao seu modus operandi(8*), como sobreviveu à época em que o sistema capitalista ocidental se apresentava ainda intacto, como, pelo contrário, o encontra, tanto na Europa Ocidental como nos Estados Unidos, em luta, quer com as massas trabalhadoras, quer com a ciência, quer com as próprias forças produtivas que ele engendra — numa palavra, numa crise que acabará pela sua eliminação, por um regresso das sociedades modernas a uma forma superior de um tipo «arcaico» da propriedade e da produção colectivas.

Compreende-se que a evolução da comuna se faria gradualmente e que o primeiro passo seria o de a situar em condições normais sobre a sua base actual.

Mas, frente a ela, levanta-se a propriedade fundiária tendo nas mãos quase metade, e a melhor parte, do solo, sem mencionar os domínios do Estado. É por este lado que a conservação da «comuna rural» por via da sua evolução ulterior se confunde com o movimento geral da sociedade russa, cuja regeneração tem este preço.

Mesmo somente sob o ponto de vista económico, a Rússia pode sair do seu beco agrícola pela evolução da sua comuna rural; ela tentaria em vão sair de lá pelo sistema de arrendamento [fermage] capitalizado à inglesa, ao qual repugnam todas as condições rurais do país.

Abstraindo de todas as misérias que presentemente se abatem sobre a «comuna rural» russa, e não considerando senão a sua forma constitutiva e o seu meio histórico, é desde logo evidente que um dos seus caracteres fundamentais, a propriedade comum do solo, forma a base natural da produção e da apropriação colectivas. Para mais, a familiaridade do camponês russo com o contrato de artel facilitar-lhe-ia a transição do trabalho parcelar para o trabalho colectivo, que ele pratica já em certo grau nas pradarias indivisas, nas secagens e noutros empreendimentos de interesse geral. Mas a fim de que o trabalho colectivo possa suplantar na agricultura propriamente dita o trabalho parcelar — fonte da apropriação privada — são precisas duas coisas: a necessidade económica duma tal transformação e as condições materiais para a realizar.

Quanto à necessidade económica, far-se-á sentir na «comuna rural» — mesmo desde o momento em que fosse colocada em condições normais, isto é, desde que os fardos que pesam sobre ela fossem afastados e que o seu terreno de cultivo passasse a ter uma extensão normal. Passou o tempo em que a agricultura russa requeria somente a terra e o seu cultivador parcelário armado de instrumentos mais ou menos primitivos. Este tempo passou tanto mais rapidamente quanto a opressão sobre o cultivador infecta e estereliza o seu campo. Precisa agora do trabalho cooperativo, organizado em larga escala. Mais ainda, ao camponês a quem faltam as coisas necessárias para a cultura de duas ou três deciatinas, adiantar-lhe-ia [ter] dez vezes mais o número de deciatinas?

Mas, onde encontrar as alfaias, os adubos, os métodos agronómicos, etc, todos os meios indispensáveis ao trabalho colectivo? Aqui está precisamente a grande superioridade da «comuna rural» russa sobre as comunas arcaicas do mesmo tipo. Somente ela, na Europa, se manteve numa escala vasta, nacional. Encontra-se, assim, colocada num meio histórico em que a contemporaneidade da produção capitalista lhe empresta todas as condições do trabalho colectivo. Ela está em estado de incorporar em si as aquisições positivas elaboradas pelo sistema capitalista sem passar pelas suas forcas caudinas. A configuração física da terra russa convida à exploração agrícola com a ajuda de máquinas, organizada numa vasta escala, manejada pelo trabalho cooperativo. Quanto aos primeiros custos de estabelecimento — custos intelectuais e materiais —, a sociedade russa deve-os à «comuna rural» à custa da qual ela viveu tanto tempo e onde deve procurar o seu «elemento regenerador».

A melhor prova de que este desenvolvimento da «comuna rural» corresponde à corrente histórica da nossa época é a crise fatal suportada pela produção capitalista nos países europeus e americanos onde ela teve um grande surto, crise que acabará pela sua eliminação, pelo regresso da sociedade moderna a uma forma superior do tipo mais arcaico — a produção e a apropriação colectivas.

4) Para poder desenvolver-se, é preciso antes de tudo viver, e ninguém poderia esconder a si próprio que neste momento a vida da «comuna rural» esteja posta em perigo.

Para expropriar os cultivadores não é necessário expulsá-los da sua terra como se fez em Inglaterra e noutros locais; também não é necessário abolir a propriedade comum por um ukáz. Ide arrancar aos camponeses o produto do seu trabalho agrícola para além de uma certa medida, e apesar da vossa guarda e do vosso exército não conseguireis acorrentá-los aos seus campos! Nos últimos tempos do Império Romano, decuriões provinciais, não camponeses, mas proprietários fundiários, fugiram das suas casas, abandonaram as suas terras, submeteram-se mesmo à escravatura, e tudo isto para se desembaraçarem duma propriedade que não era mais do que um pretexto oficial para os espremer, sem piedade e misericórdia.

Desde a chamada emancipação dos camponeses, a comuna russa foi colocada pelo Estado em condições económicas anormais e, a partir daí, ele não cessou de a esmagar pelas forças sociais concentradas nas suas mãos. Extenuada pelas suas exacções fiscais, ela tornou-se numa matéria inerte de fácil exploração pelo tráfico, pela propriedade fundiária e pela usura. Esta opressão proveniente do exterior desencadeou no seio da própria comuna o conflito de interesses já presente e desenvolveu rapidamente os seus germes de decomposição. Mas isto não é tudo. À custa e a expensas dos camponeses, o Estado [deu o seu concurso para fazer] fez crescer [como] em estufa ramificações do sistema capitalista ocidental que, sem desenvolver de forma nenhuma as potências produtivas da agricultura, são as mais próprias para facilitar e precipitar o roubo dos seus frutos pelos intermediários improdutivos. Ele cooperou, assim, no enriquecimento dum novo parasita capitalista sugando o sangue já tão empobrecido da «comuna rural».

... Numa palavra, o Estado prestou o seu concurso ao desenvolvimento precoce dos meios técnicos e económicos mais próprios para facilitar e precipitar a exploração do cultivador, quer dizer, da maior força produtiva da Rússia, e para enriquecer os «novos pilares sociais».

5) Este concurso de influências destrutivas, a menos que seja quebrado por uma poderosa reacção, deve naturalmente resultar na morte da comuna rural.

Mas pergunta-se: por que é que todos estes interesses (incluindo as grandes indústrias colocadas sob a tutela governamental) que encontraram tanto proveito no estado actual da comuna rural, por que é que conspirariam cientemente para matar a galinha dos ovos de ouro? Precisamente porque sentem que «este estado actual» já não é sustentável, que por consequência o modo actual de o explorar já não está na moda. A miséria do cultivador já infectou a terra que se estereliza. As boas colheitas são contrabalançadas pelas fomes. A média dos últimos dez anos revelou uma produção agrícola não somente estagnante mas retrógrada. Por fim, pela primeira vez, a Rússia deve importar cereais em vez de os exportar. Não há, portanto, mais tempo a perder. É preciso acabar com isto. É preciso constituir como classe intermédia [mitoyenne] rural a minoria mais ou menos abastada dos camponeses e converter a maioria em proletários sem mais [sans phrase]. — Para este efeito, os porta-vozes dos «novos pilares sociais» denunciam as próprias chagas infligidas à comuna como sintomas naturais da sua decrepitude.

Visto que tantos interesses diversos, e sobretudo os dos «novos pilares sociais» erigidos sob o império benigno de Alexandre II, tiraram proveito do estado actual da «comuna rural», por que viriam conspirar cientemente para a sua morte? Por que é que os seus porta-vozes denunciam as chagas infligidas nela como provas irrefutáveis da sua caducidade natural? Por que é que querem matar a sua galinha dos ovos de ouro?

Simplesmente, porque os factos económicos, cuja análise me levaria demasiado longe, desvendaram o mistério de que o estado actual da comuna não é mais sustentável, e de que, em breve, pela necessidade das coisas somente, o modo actual de explorar as massas populares não estará mais em moda. Portanto, é preciso algo de novo, e o novo insinuado sob as formas mais diversas vem sempre a dar nisto: abolir a propriedade comum, deixar constituir-se em classe intermédia rural a minoria mais ou menos abastada dos camponeses e converter a grande maioria em proletários sem mais.

Dum lado, a «comuna rural» está quase reduzida ao último extremo e, de outro, uma conspiração poderosa mantém-se à espreita, a fim de lhe dar o golpe de misericórdia. Para salvar a comuna russa, é preciso uma Revolução russa. De resto, os detentores das forças políticas e sociais fazem os possíveis para preparar as massas para uma tal catástrofe.

Ao mesmo tempo que se sangra e tortura a comuna, se esteriliza e pauperiza a sua terra, os lacaios literários dos «novos pilares da sociedade» designam ironicamente as chagas que lhe infligiram como sintomas da sua decrepitude espontânea. Pretende-se que ela está a morrer de uma morte natural e que se fará bom trabalho abreviando a sua agonia. Aqui já não se trata de um problema a resolver; trata-se, muito simplesmente, de um inimigo a vencer. Para salvar a comuna russa, é preciso uma Revolução russa. De resto, o governo russo e os «novos pilares da sociedade» fazem os possíveis para preparar as massas para uma tal catástrofe. Se a revolução se fizer em tempo oportuno, se ela concentrar todas as suas forças para assegurar o livre surto [essor] da comuna rural, esta desenvolver-se-á em breve como elemento regenerador da sociedade russa e como elemento de superioridade sobre os países subjugados pelo regime capitalista.


Notas de rodapé:

(1*) Cf. a Presente edição, t. II, 1983, p. 107. Note-se que a edição francesa de O Capitalque Marx está a citar diverge nestes passos do texto da edição alemã. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(2*) Cf. a presente edição, t. II, 1983, p. 156. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(3*) L. Morgan. (retornar ao texto)

(4*) Em inglês no texto. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(5*) Em latim no texto: com maior força de razão. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(6*) Em latim no texto: à partida, antecipadamente. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(7*) Artel: várias formas de união voluntária para uma sociedade económica comum. surgem com o desenvolvimento do capitalismo como união de pequenos produtores de mercadorias para se adaptarem às condições da economia capitalista. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(8*) Em latim no texto: modo de operar ou agir. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N120] A presente carta é o primeiro esboço da resposta de Marx à carta de V. I. Zassulitch datada de 16 de Fevereiro de 1881. Na sua carta, Zassulitch, ao informar Marx sobre o papel que O Capital tinha desempenhado nas discussões dos socialistas russos sobre o destino do capitalismo na Rússia, pedia-lhe, em nome dos camaradas, os «socialistas revolucionários» russos, que expusesse os seus pontos de vista sobre esta questão e, em particular, sobre a questão da comuna. Quando recebeu a carta (assim como outra de Petersburgo, do Comitê Executivo da Liberdade do Povo, com pedido análogo), Marx, trabalhando no tomo III de O Capital, tinha já dedicado muitos esforços ao estudo das relações socioeconómicas na Rússia, do regime interno e do estado da comuna camponesa russa. A propósito das referidas cartas realizou um grande trabalho suplementar para sintetizar o material das fontes estudadas e chegou à conclusão de que só uma revolução popular russa, apoiada pela revolução proletária na Europa Ocidental, podia superar as «influências perniciosas» que acossavam por todos os lados a comuna russa. A revolução russa criaria uma situação favorável para a vitória do proletariado da Europa Ocidental, e este, por sua vez, ajudaria a Rússia a evitar a via capitalista de desenvolvimento. Esta concepção de Marx nada tinha de comum com o sonho populista de saltar directamente, com a ajuda da comuna, para o regime social socialista sem o desenvolvimento da grande indústria. (retornar ao texto)

[N121] O regime de servidão foi abolido na Rússia em 1861. (retornar ao texto)

[N122] L. H. Morgan, Ancient Society, or Researches in the Lines of Human Progress frotn Savagery, Through Barbarism to Civilization (Sociedade Antiga, ou Investigações das Linhas de Progresso Humano da Selvajaria a Civilização, através do Barbarismo), London, 1877, p. 552. (retornar ao texto)

[N123] H. S. Maine, Village-Communities in the East and West (Comunidades Aldeãs no Oriente e no Ocidente), London, 1871. (retornar ao texto)

[N124] No ano de 321 antes da nossa era, nas Forças Caudinas, desfiladeiros perto da antiga cidade romana de Cáudio, os samnitas (tribos que povoavam uma região montanhosa nos Apeninos Médios) derrotaram as legiões romanas e obrigaram-nas a passar sob o jugo, o que era considerado o acto mais humilhante para o exército vencido. Daí a expressão passar debaixo das «Forças Caudinas», ou seja, sofrer a humilhação suprema. (retornar ao texto)

[N125] Vólost: na Rússia de antes da revolução, a mais pequena unidade adminis­trativa territorial. (retornar ao texto)

Inclusão 04/11/2011