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O Capital
Crítica da Economia Política
Karl Marx

Livro Primeiro: O processo de produção do capital

Sétima Seção: O processo de acumulação do capital

Vigésimo segundo capítulo: Transformação de mais-valia em capital


5. O chamado fundo de trabalho


capa

No decurso desta investigação resultou que o capital não é uma magnitude fixa, mas uma parte da riqueza social, elástica e constantemente flutuante com a divisão da mais-valia em revenue e capital suplementar. Viu-se, além disso, que mesmo com uma magnitude dada do capital em funcionamento a força de trabalho, a ciência e a terra (pela qual são de entender economicamente todos os objectos de trabalho existentes por Natureza sem intervenção do homem) nele incorporadas formam potências elásticas dele, que no interior de certos limites lhe consentem um espaço de manobra independente da sua magnitude própria. Na altura abstraiu-se de todas as relações do processo de circulação que causam graus de eficácia da mesma massa de capital muito diversos. Uma vez que pressupomos as barreiras da produção capitalista, portanto uma figura puramente natural do processo de produção social, abstraiu-se de toda a combinação mais racional, imediata e planificadamente efectuável com os meios de produção e as forças de trabalho existentes. A economia clássica desde sempre gostou de conceber o capital social como uma magnitude fixa, com grau de eficácia fixo. Mas o preconceito só se consolidou em dogma com o arquifilisteu Jeremias Bentham, esse oráculo de paleio fastidioso, insipidamente pedante, do comum entendimento burguês do século XIX(1*). Bentham é entre os filósofos o que Martin Tupper é entre os poetas. Ambos só seriam fabricáveis em Inglaterra(2*). Com o seu dogma, os fenómenos mais habituais do processo de produção — como p. ex. as suas repentinas expansões e contracções, até mesmo a acumulação — tomam-se completamente incompreensíveis(3*). O dogma foi utilizado tanto pelo próprio Bentham como por Malthus, James Mill, MacCulloch, etc., para fins apologéticos, nomeadamente para apresentar uma parte do capital, o capital variável ou convertível em força de trabalho, como uma magnitude fixa. A existência material do capital variável, i. é, a massa de meios de vida que ele representa para o operário, ou o chamado fundo de trabalho, foi enfabulado como uma parte especial da riqueza social, circunscrita por cadeias naturais e intransponível. Para pôr em movimento a parte da riqueza social que deve funcionar como capital constante ou, materialmente expresso, como meio de produção, é requerida uma massa determinada de trabalho vivo. Esta é dada tecnologicamente. Mas nem o número dos operários requerido para fazer fluir esta massa de trabalho é dado — pois isso varia com o grau de exploração da força de trabalho individual —, nem o preço desta força de trabalho, mas apenas a sua barreira mínima, além disso inuito elástica. Os factos que estão na base do dogma são estes: por um lado, o operário não tem nada a dizer na divisão da riqueza social em meios de fruição do não-operário e em meios de produção. Por outro lado, só em favoráveis casos excepcionais ele pode alargar o chamado «fundo de trabalho» à custa do «revenue» do rico(4*).

A que tautologia absurda conduz repoetizar a barreira capitalista do fundo de trabalho em barreira natural social — mostra-o entre outros o Professor Fawcett:

«O capital circulante(6*) de um país», diz ele, «é o seu fundo de salário [wage- fund(7*)]. Portanto, se desejarmos calcular o salário médio em dinheiro recebido por cada trabalhador temos simplesmente que dividir o montante deste capital pelo número da população trabalhadora.»(8*)

I. é, portanto, primeiro somamos os salários individuais realmente pagos; depois afirmamos que esta adição forma a soma de valor do «fundo de trabalho» outorgado por deus e pela Natureza. Finalmente, dividimos a soma assim obtida pelo número de cabeças de operários para de novo descobrirmos quanto pode caber em média individualmente a cada operário. Procedimento invulgarmente astuto este. Ele não impede o senhor Fawcett de no mesmo fôlego dizer:

«A riqueza agregada que é anualmente poupada em Inglaterra é dividida em duas porções; uma porção é empregue como capital para sustentar a nossa indústria e a outra porção é exportada para países estrangeiros... Só uma porção — e talvez não uma grande porção da riqueza que é anualmente poupada neste país — é investida na nossa própria indústria.»(9*)

Assim, a maior parte do sobreproduto anualmente crescente, arrebatada aos operários ingleses sem equivalente, é capitalizada portanto não em Inglaterra, mas em países estrangeiros. Com o capital suplementar assim exportado é, porém, exportada também uma parte do «fundo de trabalho» inventado por deus e por Bentham(11*).


Notas de rodapé:

(1*) Cf. entre outros: J. Bentham, Théorie des peines et des récompenses, trad. Et. Dumont, 3ème éd., Paris, 1826, t. II, 1. IV, cap. II. (retornar ao texto)

(2*) Jeremias Bentham é um fenómeno puramente inglês. Mesmo não excluindo o nosso filósofo Christian Wolf, em nenhum tempo e em nenhum país o lugar comum de trazer por casa alguma vez se repimpou tão presunçosamente. O princípio da utilidade não foi nenhuma invenção de Bentham. Ele reproduziu apenas sem espírito o que Helvétius e outros franceses do século XVIII tinham dito com espírito. Se, p. ex., se quiser saber o que é útil a um cão, ter-se-á de sondar a natureza dos cães. Esta própria natureza não pode ser construída a partir do «princípio da utilidade». Aplicado aos homens, se se quiser ajuizar toda a acção, movimento, relações, etc., humanos segundo o princípio da utilidade, trata-se antes do mais da natureza humana em geral e depois da natureza humana historicamente modificada em cada época. Bentham não faz cerimónias. Com a secura mais ingénua, ele pressupõe o pequeno-burguês moderno, especialmente o pequeno-burguês inglês, como o homem normal. O que é útil para este raio de homem normal e para o seu mundo, é útil em si e para si. Ele ajuiza então por esta bitola passado, presente e futuro. P. ex., a religião cristã é «útil» porque ela proíbe religiosamente as mesmas malfeitorias que o código penal juridicamente condena. A crítica de arte é «prejudicial», porque incomoda gente honrada na sua fruição de Martin Tupper, etc. Com refugo deste encheu o bom do homem, cuja divisa era: «nulla dies sine linea»[N174], montanhas de livros. Se eu tivesse a coragem do meu amigo H. Heine chamaria ao senhor Jeremias um génio da estupidez burguesa. (retornar ao texto)

(3*) «Os economistas políticos são demasiado propensos a considerar uma certa quantidade de capital e um certo número de trabalhadores como instrumentos produtivos de poder uniforme ou operando com uma certa intensidade uniforme... Aqueles [...] que sustentam [...] que as mercadorias são os únicos agentes de produção [...] provam que a produção nunca podia ser alargada porque semelhante alargamento requer [...] que alimentação, matérias-primas e ferramentas tivessem previamente aumentado, o que, de facto, é sustentar que nenhum aumento de produção pode ter lugar sem um aumento prévio ou, por outras palavras, que um aumento é impossível.» (S. Bailey, Money and its Vicissitudes, pp. 58 e 70.) Bailey critica o dogma principalmente do ponto de vista do processo de circulação. (retornar ao texto)

(4*) J. St. Mill nos seus Principies of Polit. Economy [1. II, cap. I, §3] diz que o produto do trabalho é hoje em dia repartido na proporção inversa do trabalho — a maior parte para os que nunca trabalham, a segunda maior para aqueles cujo trabalho é quase só nominal; e assim, em escala descendente, a retribuição encolhe à medida que o trabalho se toma mais duro e desagradável, até ao trabalho corporal mais cansativo e esgotante que nem com segurança pode contar com o ganho do necessário para a vida(5*). Para evitar mal-entendidos observo que se homens como J. St. Mill, etc., são de repreender devido à contradição dos seus dogmas paleoeconómicos com as suas tendências modernas, seria inteiramente injusto confundi-los com a turba dos apologetas económico-vulgares. (retornar ao texto)

(5*) O texto de Mill que consta da edição inglesa diz o seguinte: «Os trabalhos realmente cansativos e os realniente repulsivos em vez de serem melhor pagos do que os outros são quase invariavelmente pagos pior que todos... Quanto mais revoltante é a ocupação, mais certo é receber-se o mínimo de remuneração... As fadigas e os ganhos, em vez de serem directamente proporcionais, como seriam em qualquer arranjo justo da sociedade, estão geralmente na razão inversa umas dos outros.» (Nota de edição portuguesa)(retornar ao texto)

(6*) H. Fawcett, Prof. of Polit. Econ. at Cambridge: The Economic Position of the British Labourer, Lond., 1865, p. 120. (retornar ao texto)

(7*) Marx traduz: fundo de trabalho. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(8*) Recordo aqui ao leitor que as categorias capital variável e capital constante foram utilizadas pela primeira vez por mim. A economia política desde A. Smith confunde a trouxe-mouxe as determinações aí contidas com as diferenças de forma, que brotam do processo de circulação, de capital fixo e capital circulante. Sobre isto mais pormenores na secção segunda do livro segundo. (retornar ao texto)

(9*) Fawcett, 1. c., pp. 123, 122(10*). (retornar ao texto)

(10*) Nas edições inglesa e francesa: pp. 122, 123. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(11*) Podia dizer-se que não é só capital mas também operários que são exportados anualmente de Inglaterra na forma de emigração. No texto, porém, não se fala do peculium(12*) dos emigrantes, que em grande parte não são operários. Os filhos de rendeiro fornecem uma grande porção. O capital suplementar inglês enviado anualmente para o estrangeiro para render juros está numa proporção incomparavelmente maior para com a acumulação anual do que a emigração anual para com o crescimento anual da população. (retornar ao texto)

(12*) Em latim no texto: pecúlio. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N174] «Nulla dies sine linea» («nenhum dia sem [uma] linha») — palavras atribuídas por Plínio ao célebre artista grego antigo Apeles, que tinha como regra não passar um só dia sem traçar uma linha, isto é, sem pintar. (retornar ao texto)

Inclusão 29/09/2014