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O Capital
Crítica da Economia Política
Karl Marx

Livro Primeiro: O processo de produção do capital

Terceira Secção: A Produção da mais-valia absoluta

Oitavo capítulo: O dia de trabalho


4. Trabalho diurno e nocturno. O sistema de turnos


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O capital constante, os meios de produção, considerados do ponto de vista do processo de valorização, só existem para sugar trabalho e, com cada gota de trabalho, um quantum proporcional de sobretrabalho. Enquanto não fazem isso, a sua mera existência constitui uma perda negativa para o capitalista, pois durante o tempo em que ficam parados eles representam adiantamento inútil de capital e esta perda torna-se positiva logo que a interrupção faz com que sejam precisas despesas suplementares para o recomeço do trabalho. O prolongamento do dia de trabalho acima dos limites do dia natural, pela noite dentro, actua apenas como paliativo, só aproximativamente mata a sede de vampiro por sangue vivo de trabalho. Apropriar trabalho durante todas as 24 horas do dia é, pois, o impulso imanente da produção capitalista. Dado, porém, que isto é fisicamente impossível — as mesmas forças de trabalho seriam sugadas continuamente dia e noite — então é preciso, para vencer o impedimento físico, a alternância entre as forças de trabalho consumidas de dia e de noite, uma alternância que permite diversos métodos, p. ex., pode ser ordenada de modo que uma parte do pessoal operário exerça numa semana serviço diurno, na outra semana serviço nocturno, etc. Sabe-se que este sistema de turnos, esta economia de alternância, predominou no período pletórico de juventude da indústria inglesa do algodão, etc, e floresce presentemente entre outras nas fiações de algodão da gubérnia [Gouvernement] de Moscovo. Como sistema, este processo de produção de 24 horas existe ainda hoje em muitos ramos da indústria da Grã-Bretanha, até agora «livres», entre outros nos altos-fornos, forjas, oficinas de laminação e outras manufacturas de metais da Inglaterra, País de Gales e Escócia. O processo de trabalho engloba aqui, para além das 24 horas dos 6 dias úteis, em grande parte também as 24 horas do domingo. Os operários compõem-se de homens e mulheres, adultos e crianças de ambos os sexos. A idade das crianças e jovens percorre todos os graus intermédios dos 8 (em alguns casos dos 6) aos 18 anos(1*). Em alguns sectores as raparigas e mulheres trabalham também de noite juntamente com o pessoal masculino(2*).

Abstraindo dos efeitos prejudiciais gerais do trabalho nocturno(3*), a duração ininterrupta de vinte e quatro horas do processo de produção oferece uma oportunidade muito bem-vinda de ultrapassar o limite do dia de trabalho nominal. P. ex., nos ramos de indústria muito fatigantes, há pouco mencionados, o dia de trabalho oficial para cada operário ascende na maior parte dos casos a 12 horas, horas nocturnas ou horas diurnas. Mas o trabalho a mais acima deste limite é, em muitos casos, para usar as palavras do relatório oficial inglês, «verdadeiramente terrível» (truly fearful)(6*).

«É impossível a qualquer mente», afirma, «conceber o montante de trabalho descrito nas passagens seguintes como sendo realizado por rapazes de 9 aos 12 anos de idade [...] sem chegar irresistivelmente à conclusão de que não se pode continuar a permitir que existam semelhantes abusos de poder por parte de pais e empregadores.»(7*)

«A prática de rapazes trabalharem tanto em turnos de dia como de noite, quer durante o decurso habitual das coisas quer em tempos de pressão, parece abrir inevitavelmente a porta a que [...] trabalhem indevidamente longas horas. Estas horas, na verdade, em alguns casos, são não apenas cruelmente, mas até incrivelmente longas para crianças. Com um certo número de rapazes não será decerto pouco frequente acontecer que um ou mais do que um faltem por alguma razão. Quando isto acontece o seu lugar é ocupado por um ou mais rapazes que trabalham no outro turno. Que este é um sistema bem conhecido é claro [...] a partir da resposta do gerente de algumas oficinas de laminação grandes que, quando lhe perguntei como é que o lugar dos rapazes ausentes do seu turno era ocupado [respondeu]: "Atrevo-me a dizer que o senhor sabe isso também como eu", e admitiu o facto.»(8*)

«Numa oficina de laminação em que as horas normais eram das 6 da manhã até às 5 1/2 da tarde, um rapaz trabalhou cerca de quatro noites por semana até às 8 1/2 da noite pelo menos... e isto durante seis meses. «Um outro, aos 9 anos de idade, fez por vezes três turnos de 12 horas de seguida e, aos 10, fez dois dias e duas noites de seguida.» «Um terceiro, agora com 10 [...] trabalhou desde as 6 da manhã até às 12 da noite três noites, e até às 9 da noite as outras noites.» «Um outro, agora com 13, [...] trabalhou das 6 da tarde até às doze da manhã do dia seguinte, durante toda uma semana, e por vezes durante três turnos de seguida, e. g., de segunda-feira de manhã até terça-feira à noite.» «Um outro, agora com 12, trabalhou numa fundição de ferro em Stavely das 6 da manhã até às 12 da noite durante quinze dias seguidos; já não aguentava mais.» George Allinsworth, de 9 anos: «Cheguei aqui na sexta feira passada [...]; na manhã seguinte tivemos que começar às 3, por isso fiquei cá a noite toda. Vivo a cinco milhas daqui. Dormi no chão [...], com um avental por baixo de mim e um bocado de casaco por cima de mim. Nos outros dois dias, estive aqui às 6 horas da manhã. Sim, aqui está quente! Antes de vir para aqui, andei no mesmo trabalho quase um ano em algumas oficinas no campo. Lá começava também às 3 ao sábado de manhã — sempre comecei, mas era muito perto de casa e podia dormir em casa. Noutros dias começava às 6 da manhã e acabava às 6 ou 7 da tarde», etc..(9*)

Ouçamos agora como o próprio capital concebe este sistema de vinte e quatro horas. Passa naturalmente em silêncio os exageros do sistema, o seu abuso com vista a um «cruel e incrível» prolongamento do dia de trabalho. Fala apenas do sistema na sua forma «normal».

Os senhores Naylor e Vickers, fabricantes de aço, que empregam entre 600 e 700 pessoas, e entre elas apenas 10% abaixo dos 18 anos e destas, novamente, apenas 20 rapazes como pessoal nocturno, exprimem-se como se segue:

«Os rapazes não sofrem com o calor. A temperatura é provavelmente de 86° a 90°(11*) ... Nas forjas e nas oficinas de laminação, os braços trabalham dia e noite por turnos, mas todas as outras partes do trabalho são trabalho diurno, i. e, das 6 da manhã às 6 da tarde. Na forja as horas são das 12 às 12. Alguns dos braços trabalham sempre de noite, sem qualquer alternância de trabalho diurno ou nocturno... Não encontramos qualquer diferença na saúde» (dos senhores Naylor e Vickers?) «dos que trabalham regularmente de noite e na dos que trabalham de dia, e provavelmente as pessoas podem dormir melhor se tiverem o mesmo período de descanso do que se ele for mudado... Cerca de 20 dos rapazes abaixo dos 18 anos trabalham nas equipas da noite... Não poderíamos passar (not well do) sem moços abaixo dos 18 a trabalhar de noite. A objecção seria o aumento no custo de produção [...] Braços especializados e chefes são em cada departamento difíceis de arranjar, mas poderíamos arranjar moços em qualquer número... Mas dada a pequena proporção de rapazes que empregamos, o assunto (i. é, das restrições ao trabalho nocturno) é de pouca importância ou interesse para nós.»(12*)

O senhor J. Ellis, da firma dos senhores John Brown et Co., oficinas de aço e ferro, que empregam 3000 homens e jovens «dia e noite por turnos» precisamente numa parte do trabalho pesado com aço e ferro, explica que, nos trabalhos pesados com aço, há um ou dois jovens por cada dois homens. A sua firma conta com 500 jovens abaixo dos 18 anos e, desses, cerca de 1/3, ou 170, abaixo dos 13. No que concerne à sugerida alteração da lei, o senhor Ellis opina:

«Não penso que fosse muito objectável (very objectionable) exigir que nenhuma pessoa abaixo dos 18 anos devesse trabalhar mais do que 12 horas nas 24. Mas não pensamos que se possa traçar qualquer linha acima da idade de 12 anos a partir da qual se possa dispensar os rapazes para trabalho nocturno. Mas antes fôssemos totalmemte impedidos de empregar rapazes abaixo da idade de 13 anos, ou mesmo até 14, do que não autorizados a empregar rapazes que já temos à noite. Esses rapazes que trabalham nas equipas de dia têm que ocupar a sua vez também nas equipas da noite, porque os homens não poderiam trabalhar apenas nas equipas da noite; isso arruinaria a sua saúde [...] Pensamos, contudo, que o trabalho nocturno em semanas alternadas não faz mal nenhum.»

(Inversameinte, os senhores Naylor e Vickers, de acordo com o melhor para a sua firma, pensavam que não era o trabalho nocturno contínuo mas siim o periodicamente alternado que possivelmente traria prejuízo.)

«Achamos que os homens que o fazem estão tão bem como os outros que fazem outro trabalho apenas de dia... As nossas objecções a que não se permita que rapazes abaixto dos 18 anos trabalhem à noite seriam devidas ao aumento da despesa, mas esta é a única razão.» (Quão cinicamente ingénuo!) «Pensamos que o aumento seria imaior do que aquilo que o negócio (the trade), com a devida atenção a que fosse levado a cabo com sucesso, poderia justamente suportar. (As the trade, with due regard to, etc. could fairly bear!)» (Que fraseologia hipócrita!) «O trabalho aqui é escasso e poderia faltar se houvesse uma tal regulamentação»

(i. é, Ellis, Brown et Co. poderiam chegar ao embaraço fatal de ter de pagar por inteiro o valor da força de trabalho)(13*).

As Oficinas de Aço e de Ferro Cyclop dos senhores Cammell et Co. são dirigidas na mesma grande escala que as do sobredito John Brown et Co. O director executivo entregara em mãos, por escrito, os seus testemiunhos ao comissário do governo, White; achou, porém, mais tarde conveniente extraviar o manuscrito que lhe fora novamente devolvido para revisão. Contudo, o senhor White tem boa memória. Recorda-se muito exactamente de que para estes senhores cíclopes a proibição do trabalho nocturno de crianças e jovens «seria impossível; seria o mesmo que parar as sua oficinas» e, contudo, a sua firma conta um pouco mais do que 6% de jovens abaixo dos 18 e apenas 1% abaixo dos 13 anos!(15*)

Acerca do mesmo assunto, o senhor E. F. Sanderson, da firma Sanderson, Bros. et Co., oficinas de aço, laminação e forja, em Atercliffe, explica:

«Grande dificuldade seria causada ao impedir rapazes abaixo dos 18 anos de trabalhar de noite. A principal seria o aumento do custo pelo emprego de homens em vez de rapazes. Não posso dizer quanto seria, mas provavelmente não seria suficiente para permitir aos manufactureiros elevar o preço do aço e consequentemente recairia sobre eles, uma vez que naturalmente os homens se recusariam» que povo tão teimoso!) «a pagá-lo.»

O senhor Sanderson não sabe quanto é que paga às crianças, mas

«talvez [...] recebam de 4 sh. a 5 sh. por semana... O trabalho dos rapazes é de uma espécie para a qual a força dos rapazes é geralmente» («generally», naturalmente nem sempre «em particular») «inteiramente suficiente e consequentemente não haveria qualquer ganho numa maior força dos homens para contrabalançar a perda, ou então seria apenas nos poucos casos em que o metal é pesado. Os homens também não gostariam de não ter rapazes sob as suas ordens, porque homens seriam menos obedientes. Além disso, os rapazes têm de começar novos a aprender o ofício. Deixar apenas o trabalho de dia aberto a rapazes não responderia a este propósito.»

E porque não? Porque é que os jovens não podem aprender o seu ofício manual durante o dia? Qual a tua razão?

«Devido a os homens trabalharem de dia e de noite em semanas alternadas, os homens estariam metade do tempo separados dos seus rapazes e perderiam metade do lucro que tiram deles. O treino que dão a um aprendiz é considerado como parte da remuneração do trabalho do rapaz e assim permite ao homem obtê-lo a uma taxa mais barata. Cada homem ficaria sem metade deste lucro.»

Por outras palavras, os senhores Sanderson teriam de pagar uma parte do salário do trabalho dos adultos do seu próprio bolso em vez de com o trabalho nocturno dos jovens. Neste caso, o lucro dos senhores Sanderson baixaria algo e esta é a boa razão dos Sanderson para jovens não poderem aprender o seu ofício durante o dia(16*). Para além disso, isto acarretaria trabalho nocturno regular para os homens, que agora são rendidos pelos jovens, e eles não o suportariam. Em suma: as dificuldades seriam tão grandes que provavelmente levariam à supressão do trabalho nocturno. «No que diz respeito ao próprio trabalho», diz E. F. Sanderson, «isso também serviria, mas —» Mas os senhores Sanderson têm mais que fazer do que fazer aço. O fazer aço é mero pretexto de negociatas. Os fornos de fundição, oficinas de laminação, etc, os edifícios, maquinaria, o ferro, o carvão, etc, têm mais que fazer do que transformar-se em aço. Eles existem para sugar sobretrabalho, e naturalmente sugam mais em 24 horas do que em 12. Eles dão de facto aos Sanderson, por graça de deus e do direito, um mandato sobre o tempo de trabalho de um certo número de braços para 24 horas completas do dia e perdem o seu carácter de capital, são, portanto, para os Sanderson pura perda logo que é interrompida a sua função de sugar trabalho.

«Mas então haveria uma perda de maquinaria tão cara, ficando ela parada a meio tempo, e para atingir o montante de trabalho que somos capazes de fazer com o presente sistema teríamos de duplicar os locais e a fábrica, o que duplicaria o desembolso.»

Mas porque reclamam exactamente estes Sanderson um privilégio face aos outros capitalistas que apenas podem fazer trabalhar durante o dia e cujo edifícios, maquinaria, matéria-prima ficam, portanto, «parados» durante a noite?

«É verdade», responde E. F. Sanderson em nome de todos os Sanderson, «que há esta perda de maquinaria que fica parada naquelas manufacturas em que o trabalho decorre apenas de dia. Mas o uso dos fornos de fundição envolveria no nosso caso mais uma perda. Se eles fossem mantidos em funcionamento haveria um desperdício de [material] combustível» (em vez de como agora um desperdicío de material vital dos operários) «e, se não fossem, haveria perda de tempo a acender o fogo e a fazer subir o calor» (enquanto que a perda em tempo de sono, mesmo de [crianças] de oito anos, é ganho de tempo de trabalho para o clã dos Sanderson) «e os próprios fornos sofreriam com as mudanças de temperatura» (enquanto que, porém, os mesmos fornos nada sofrem com a alternância diurna e nocturna do trabalho.)(17*)


Notas de rodapé:

(1*) Children s Employment Commission. Third Report, Lond, 1864, pp. IV, V, VI. (retornar ao texto)

(2*) «Tanto em Staffordshire como no Sul do País de Gales, raparigas e mulheres estão empregadas nas bocas dos poços das minas e nos montes de coque, não só de dia, mas também de noite. Esta prática foi muitas vezes referida em Relatórios apresentados ao Parlamento, como estando ligada a grandes e notórios males. Estas mulheres, empregadas com os homens, dificilmente distinguíveis deles no seu vestuário, e enegrecidas com sujidade e fumo, estão expostas à deterioração de carácter, derivada da perda de respeito por si próprias, o que dificilmente pode deixar de decorrer da sua ocupação nada feminina.» (L. c, 194, p. XXVI. Cf. Fourth Report (1865), 61, p. XIII.) O mesmo se passa em fábricas de vidro. (retornar ao texto)

(3*) «Não parece senão natural», notava um fabricante de aço que empregava crianças no trabalho nocturno, «que os rapazes que trabalham de noite não consigam dormir e encontrar repouso apropriado de dia, mas andem por aí.» (L. c, Fourth Rep., 63, p. XIII.) Acerca da importância da luz do sol para a conservação e desenvolvimento do corpo, nota um médico entre outras coisas: «A luz actua também sobre os tecidos do corpo directamente ao endurecê-los e proteger a sua elasticidade. Os músculos de animais, quando são privados de um montante apropriado de luz, tornam-se moles e não elásticos, a força dos nervos perde o seu tónus por estimulação deficiente e a elaboração de todo o crescimento parece perverter-se... No caso de crianças, o acesso constante à luz abundante durante o dia, e a raios solares directos durante uma parte dele, é absolutamente essencial para a saúde. A luz ajuda à elaboração de bom sangue plástico e endurece a fibra depois de estar formada. Actua também como um estímulo sobre os órgãos da visão e, desse modo, dá origem a maior actividade nas várias funções cerebrais.» O senhor W. Strange, médico chefe do General Hospital(4*) de Worcester, de cujo escrito sobre Saúde (1864)[N85] é tirada esta passagem, escreve numa carta a um dos comissários de investigação, o senhor White: «Já antes, em Lancashire, tive oportunidade de observar os efeitos do trabalho nocturno sobre crianças, e não tenho qualquer hesitação em dizer, contrariamente ao que alguns empregadores gostam de afirmar, que estas crianças que lhe estiveram submetidas em breve vieram a sofrer na sua saúde.» (Children s Employment Commission. Fourth Report, 284, p. 55.) Que tais coisas, em geral, constituem o objecto de sérias controvérsias, mostra-o da melhor maneira o modo como a produção capitalista actua sobre as «funções cerebrais» dos capitalistas e dos seus retainers(5*). (retornar ao texto)

(4*) Em inglês no texto: Hospital Geral. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(5*) Em inglês no texto: defensores, apaniguados. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(6*) L. c., 57, p. XII. (retornar ao texto)

(7*) L. c. (4th Rep., 1865), 58, p. XII. (retornar ao texto)

(8*) L. c. (retornar ao texto)

(9*) L. c, p. XIII. O grau de cultura destas «forças de trabalho» tem naturalmente de ser tal como ele aparece nos seguintes diálogos com um dos comissários de investigação! Jeremiah Haynes, de 12 anos de idade: «Quatro vezes quatro é 8; 4 quatros (4 fours) são 16... Um rei é aquele que tem o dinheiro e o ouro todo. (A king is him that has all the money and gold.) Temos um Rei (diz-se que ele é uma Rainha), chamam-lhe Princesa Alexandra. Diz-se que ela se casou com o filho da Rainha. [...] Uma Princesa é um homem.» Wm. Turner, de 12 anos: «Não vivo em Inglaterra. Penso que é um país, mas antes não sabia.» John Morris, de 14 anos: «Tenho ouvido dizer que Deus fez o mundo, e que toda a gente se afogou menos um; ouvi dizer que tinha sido um passarinho.» William Smith, de 15 anos: «Deus fez o homem, o homem fez a mulher.» Edward Taylor, de 15 anos: «Nunca ouvi falar de Londres.» Henry Matthewman, de 17 anos: «Já fui à igreja... Um nome de que pregaram foi Jesus Cristo, mas eu não sei dizer outros e não sei dizer nada sobre ele. Ele não foi morto, mas morreu como outra gente. Em certos aspectos ele não era o mesmo do que outra gente, porque em certos aspectos era religioso, e noutros não é. (He has not the same as other people in some ways, because he was religious in some ways, and others isnt.)» (L. c, 74, p. XV.) «O diabo é uma boa pessoa. Não sei onde ele vive. [...] Cristo era um homem mau.» («The devil is a goodperson. I don't know here he lives. Christ was a wicked man.») «Esta rapariga (10 anos) soletra Godcomo dog(10*) e não sabe o nome da rainha.» (Ch. Empl. Comm. V. Rep., 1866, p. 55, n. 278.) O mesmo sistema que domina nas mencionadas manufacturas do metal domina nas fábricas de vidro e papel. Nas fábricas de papel onde o papel é feito com máquinas o trabalho nocturno é a regra para todos os processos, com excepção do da escolha dos trapos. Em alguns casos, o trabalho nocturno prolonga-se ininterruptamente durante toda a semana, por meio de turnos; habitualmente de domingo à noite até às 12 horas da noite do sábado seguinte. A equipa que se encontra no turno do dia trabalha 5 dias de 12 e um de 18 horas; e a do turno da noite, 5 noites de 12 horas e uma de 6 horas, em cada semana. Em outros casos, cada turno trabalha 24 horas, um após outro, em dias alternados. Um turno trabalha 6 horas à segunda-feira e 18 ao sábado, para completar 24 horas. Em outros casos é introduzido um sistema intermédio em que todos os empregados na maquinaria de fazer papel trabalham cada dia da semana 15-16 horas. Este sistema, diz o comissário de investigação Lord, parece reunir todos os males do dos turnos das doze horas e das vinte e quatro horas. Crianças abaixo dos 13 anos, jovens abaixo dos 18 anos e mulheres trabalham neste sistema nocturno. Por vezes, no sistema de doze horas, são obrigados a trabalhar o turno duplo de 24 horas devido à ausência de substitutos. Testemunhos comprovam que rapazes e raparigas muito frequentemente trabalham tempo a mais, que não raramente se prolonga por 24 e mesmo 36 horas de trabalho ininterrupto. No processo «contínuo e invariável» das salas de vidrado, encontram-se raparigas de 12 anos que durante todo o mês trabalham diariamente 14 horas, «sem qualquer descanso regular ou interrupção, para além de 2 ou, quando muito, 3 pausas de meia-hora para as refeições». Em algumas fábricas onde se desistiu completamente do trabalho nocturno regular trabalha-se muitíssimo tempo a mais e «isto frequentemente no mais sujo, no mais quente e no mais monótono dos vários processos. («Children' s Employment Commission. Report IV», 1865, p. XXXVIII and XXXIX.) (retornar ao texto)

(10*) Em inglês no texto, respectivamente: Deus, cão. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(11*) Graus Fahrenheit: 30° a 32° C. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(12*) Fourth Report, etc, 1865, 79, p. XVI. (retornar ao texto)

(13*) L. c., 80, pp. XVI, XVII(14*). (retornar ao texto)

(14*) Nas edições inglesa e francesa: p. XVI. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(15*) L. c., 82, p. XVII. (retornar ao texto)

(16*) «No nosso tempo, rico em reflexão e raciocínio, não irá longe quem não souber dar para tudo, mesmo para o pior e o mais perverso, uma boa razão. Tudo o que no mundo foi corrompido foi corrompido por boas razões.» (Hegel, 1. c, p. 249.) (retornar ao texto)

(17*) Children's Employment Commission. Fourth Report, 1865, 85, p. XVII. A semelhante e delicado escrúpulo do senhor fabricante de vidro — de que «refeições regulares» das crianças são impossíveis, porque desse modo um determinado quantum de calor que os fornos irradiam seria «pura perda» ou seria «desperdiçado» — responde o comissário de investigação White de modo algum tocado — como Ure, Senior, etc, e os seus mesquinhos imitadores alemães de barafustice, como Roscher, etc. — pela «abstinência», «renúncia» e «poupança» dos capitalistas no dispêndio do seu dinheiro e pelo seu «desperdício» timurtamerlânico de vida humana: «Uma certa quantidade de calor mais do que é usual no presente pode também ser desperdiçada se forem asseguradas nestes casos horas de refeição; mas provavelmente isso não é igual em valor-dinheiro ao desperdício de força animal (the waste of animal power) que está a ocorrer em fábricas de vidro por todo o reino, pelo facto de rapazes em crescimento não terem tempo de sossego suficiente para comerem as suas refeições à vontade com um pequeno descanso depois para a digestão.» (L. c, p. XLV.) E isto no «ano do progresso» de 1865! Abstraindo do dispêndio de força em levantar e carregar, uma dessas crianças, nas fábricas que fazem garrafas e vidro de chumbo, durante a execução contínua do seu trabalho anda 15 a 20 milhas (inglesas) em 6 horas! E o trabalho dura frequentemente 14 a 15 horas! Em muitas destas fábricas de vidro domina, como nas fiações de Moscovo, o sistema de turnos de seis horas. «Durante a parte de trabalho da semana seis horas é o período ininterrupto máximo para descansar alguma vez alcançado em algum momento e é daí que tem de sair o tempo gasto para ir e vir para o trabalho, para se lavar, vestir e refeições, deixando de facto um período muito pequeno para descanso e nenhum para ar livre e brincar, a não ser à custa do sono necessário aos rapazes novos, especialmente num trabalho tão quente e fatigante... Mesmo o curto sono está obviamente sujeito a ser interrompido pelo facto de um rapaz ter de acordar por si se for noite ou pelo ruído se for dia.» O senhor White aponta casos em que um jovem trabalhou 36 horas seguidas; outros, em que rapazes de 12 anos se estafam até às 2 horas da noite e, depois, dormem na fábrica até às 5 horas da manhã (3 horas!), para de novo começar o trabalho diário! «A quantidade de trabalho», dizem os redactores do relatório geral, Tremenheere e Tufnell, «feito por rapazes, jovens, raparigas e mulheres, no decurso do seu turno de trabalho (spell of labour) diurno ou nocturno, é certamente extraordinária.» (L. c, p. XLIII e XLIV.) Entretanto, à noite, já tarde, o capital vidreiro, «pleno de renúncia», irá talvez cambaleando, toldado por vinho do Porto, do clube para casa, trauteando para consigo idiotamente: Britons never, never shall be slaves![N86] (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N85] William Strange, The Seven Sources of Health. London, 1864, p. 84. (retornar ao texto)

[N86] Britons never, never shall be slaves! (Os britânicos nunca, nunca serão escravos!) — palavras finais do hino Rule, Britannia! (1740) com texto de James Thompson e música de Thomas Arne. (retornar ao texto)

Inclusão 14/02/2012