A Contra-Revolução na Alemanha. Marx e a Nova Gazeta Renana

Lívia Cotrim

Junho de 2002


Primeira Edição: Revista Margem, nº 16 - São Paulo, dezembro de 2002, pág. 223-227. - Lívia Cotrim, doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-SP; professora do Colegiado de Ciências Sociais — Fafil — FSA; membro do Núcleo de Estudos de História: Trabalho, Poder, Ideologia - Departamento de História - PUC-SP. E-mail: lcotrim @ aol . com
Fonte: PUC SP Revista Margem
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo


Entre os pensadores contemporâneos, Marx é, sem dúvida, um dos mais polêmicos. São incontáveis os trabalhos, dos mais diversos níveis e com os mais variados objetivos, que versam sobre seu pensamento, seja para criticá- lo, defendê-lo ou interpretá-lo sob diferentes vieses. Não cabe aqui, é claro, nem sequer aflorar as polêmicas que se desenvolveram, mas sempre vale chamar a atenção para o "destino trágico" do pensamento marxiano, no mais das vezes abordado a partir de problemáticas ou concepções externas a ele, com o resultado de imputar-lhe sentidos e mesmo questões que lhe são de fato estranhas.(1)

Se hoje, diante das sucessivas derrotas da perspectiva do trabalho, é necessário e urgente repensar criticamente a história do movimento operário, é igualmente necessário e urgente recuperar o pensamento próprio de Marx. Mas, paradoxalmente, há ainda obras do pensador alemão que, além de merecerem menor atenção dos estudiosos, permanecem inéditas no Brasil. É o caso dos artigos escritos por ele para a Nova Gazeta Renana, quase todos inéditos em português (à exceção de "A burguesia e a contra-revolução"(2)), e que, excetuando-se o importantíssimo trabalho de Claudin(3), praticamente não contam com análises mais detalhadas.

Entretanto, o estudo das revoluções de 1848 e de seus artigos para a Nova Gazeta Renana permite aflorar a dupla tarefa acima mencionada. É no intuito de contribuir para ela que apresentamos aqui nossa tradução de alguns dos artigos daquele periódico.(4)

Os anos que antecedem e preparam as revoluções de 1848 são também os da viragem ontológica e da configuração do pensamento marxiano, como ele mesmo nos indica em seu "Prefácio à Crítica da Economia Política", de 1859.(5) De sorte que Marx enfrenta, teórica e praticamente, as revoluções de 1848 já com sua fisionomia adulta, e o faz utilizando como arma principal um diário, a Nova Gazeta RenanaÓrgão da Democracia, publicada de 1/6/1848 a 19/ 5/1849, sediado em Colônia, capital da província do Reno, uma das regiões econômica e politicamente mais desenvolvidas da Alemanha, na qual vigorava o burguês Código Napoleônico, garantindo uma liberdade de imprensa mais ampla do que a possibilitada pela legislação feudal-absolutista prussiana.

A fundação do periódico evidencia a importância atribuída por Marx ao combate teórico, que pode ser percebida na observação externada numa reunião do Comitê de Correspondência de Bruxelas:

Em particular, dirigir-se na Alemanha aos operários sem possuir idéias rigorosamente científicas e uma doutrina concreta equivaleria a levar a cabo um jogo desonesto e inútil, uma propaganda em que estaria suposto, de um lado, um entusiasmo apoteótico e, doutro, simples imbecis escutando de boca aberta.(6)

Para o pensador alemão, a independência organizacional e política da classe trabalhadora deveria ter por suposto sua independência teórica ou, em outras palavras, a organização só é independente se o for também a apreensão da realidade, a clareza dos objetivos a atingir e o conseqüente estabelecimento dos passos a serem dados em cada momento. Nesse sentido, Marx busca criar um jornal que alcançasse ampla difusão entre os trabalhadores, tendo por objetivo desenvolver e difundir "idéias rigorosamente científicas e uma doutrina clara", participando da luta revolucionária com a "arma da crítica", esforçando-se para transformá-la em "poder material" por sua assunção pelo proletariado.

As revoluções de 1848 constituem um objeto privilegiado, uma vez que oferecem a oportunidade de abordar a emersão do proletariado como classe independente, a primeira contraposição direta entre capital e trabalho, e isso no quadro até hoje único de uma revolução de âmbito europeu. O leque de questões aberto pelos escritos de Marx na Nova Gazeta Renana é extremamente amplo. Os artigos publicados a seguir foram selecionados com vistas a oferecer uma primeira aproximação de sua análise sobre revolução e contra-revolução na Alemanha, de modo a destacar a especificidade desta em relação à situação francesa — aflorando, assim a problemática das formas particulares de objetivação do capitalismo —, particularidade que vai sendo obtida a partir da apreensão do movimento cotidiano. Análise que também nos mostra o tratamento marxiano da esfera da politicidade, no sentido de evidenciar sejam os vínculos entre essa e os demais âmbitos da sociabilidade, especialmente a matriz da produção e reprodução da vida, sejam aqueles que se põem entre os indivíduos e sua classe, bem como o caráter não resolutivo dessa esfera no que tange à perspectiva da revolução social.

Os artigos produzidos para a Nova Gazeta Renana ocupam posição destacada dentre as várias ocasiões em que Marx se debruçou sobre a distinção entre as formas clássica ou "européia" do processo francês e a retardatária da Alemanha, ou a "miséria alemã", uma vez que aquela distinção marcou indelevelmente os rumos das revoluções de 1848.

A análise marxiana reconstitui as múltiplas determinações da "miséria alemã", desde a raiz de suas estreitas relações econômico-sociais às diversas manifestações, emanadas daquela, de covardia, debilidade e ferocidade políticas, de sorte que a esfera da politicidade — assim como, nela, a atuação das diversas individualidades — ganha em consistência e peso específico. O que permite a Marx perceber que a estreiteza da "miséria alemã" não mais poderia ser superada por um movimento revolucionário encabeçado pela burguesia, pois a possibilidade histórico-universal de um passo dessa natureza se encerrara com a explicitação de seu antagonismo com o proletariado. Tal antagonismo, nódulo fundamental das revoluções de 1848, também evidenciou praticamente a impotência da esfera da politicidade para a resolução dos problemas sociais.

Nos textos que se seguem, Marx mostra que acontecimentos à primeira vista semelhantes podem entranhar sentidos bastante distintos, evidenciados pela elucidação dos nexos que os vinculam à particularidade dos respectivos processos históricos. Assim, tanto na revolução prussiana de março, como na francesa de fevereiro, os trabalhadores e a burguesia se opuseram à monarquia; entretanto, a burguesia alemã, diferentemente da francesa, desenvolvera-se lentamente e optando sempre por soluções não-revolucionárias, e sim conciliatórias com as forças feudais ou semifeudais e absolutistas, e não se via empurrada à conquista do domínio político por uma necessidade urgente. O proletariado alemão, por seu lado, pouco desenvolvido, não organizado, educado em submissão espiritual, mal pressentia seu antagonismo de interesses com a burguesia, e continuava a ser seu apêndice político. Mas, temendo o que o proletariado alemão poderia chegar a ser e o que já era o proletariado francês, a burguesia viu sua salvação numa transação covarde com a monarquia e a nobreza. Assim, enquanto, na França, a revolução de 48 desembocava na contraposição do trabalho ao capital, na Alemanha se configurava como uma revolução burguesa. Todavia, o 1848 alemão, resultado da debilidade, lentidão e covardia do desenvolvimento da burguesia alemã, não era uma "revolução de tipo europeu", mas somente "o retardado eco débil de uma revolução européia num país atrasado", cuja "ambição consistia em formar um anacronismo", já que não se tratava da "instauração de uma nova sociedade, mas do renascimento berlinense da sociedade morta em Paris".(7)

Índice do atraso do desenvolvimento alemão, a unificação nacional era um objetivo central da revolução e uma necessidade para a efetivação do domínio burguês. Como parte fundamental dessa problemática, destacava-se a destruição das relações agrárias de cunho feudal ainda subsistentes; a "solução" que a burguesia prussiana busca encaminhar para esse problema indica sua disposição conciliatória, sua debilidade e covardia. Estas se refletem claramente na esfera das relações políticas, seja na postura dos representantes dessa classe nas duas Assembléias — de Frankfurt e de Berlim —, seja na sucessão dos diversos ministérios, e prenunciam sua derrota. Como disse Marx do ministro Camphausen:

"Ele semeou a reação no sentido da burguesia, ele a colherá no sentido da aristocracia e do absolutismo".(8)

Esse comentário, resultante da análise do procedimento da burguesia, indica também a presença de ilusões politicistas por parte daquela classe. Lançada à frente do poder político por força de uma insurreição popular, e estando disposta desde o início a trair seus aliados, a burguesia prussiana supôs que a assunção do poder político formal pusera as forças do velho estado à sua disposição, uma vez que estas a apoiaram sem reservas na repressão aos trabalhadores. Assim como a revolução parisiense de fevereiro fora o estopim da revolução prussiana de março, as jornadas de junho parisienses e sua derrota dão o sinal para o desencadeamento da contra-revolução na Alemanha, no decorrer da qual, no entanto, a derrota dos trabalhadores pre- figura a da burguesia, em favor das forças mais retrógradas — os junkers, o exército e a burocracia prussianas — , conservando relações feudais no campo e inviabilizando a unificação nacional sob forma democrática.

Os artigos que se seguem, abordando temas e momentos críticos da revolução e contra-revolução na Alemanha de 1848-49, oferecem-nos um contorno do caráter desse movimento, da especificidade da "via prussiana” de objetivação do capitalismo, ou "miséria alemã”, da problemática do politicismo, bem como aludem a diversas outras questões que o leitor atento certamente descobrirá. Ao mesmo tempo, são uma expressiva amostra da agudeza das análises marxianas acerca da política, elaboradas no calor dos acontecimentos e como arma para neles intervir, análises que jamais perdem nem a especificidade dos acontecimentos cotidianos, nem seu vínculo com as tendências históricas e as potencialidades presentes na realidade.


Notas de rodapé:

(1) Ver, a esse respeito, CHASIN, J. (1994), "Marx — Estatuto ontológico e resolução metodológica". In: TEIXEIRA, F. Pensando com Marx, São Paulo, Ensaio, e Revista Ensaios Ad Hominem 1Tomo III: Política, Santo André, Ad Hominem, 2000. (retornar ao texto)

(2) MARX, K. (1991), "A burguesia e a contra-revolução", Cadernos Ensaio Pequeno Formato I, São Paulo, Ensaio. (retornar ao texto)

(3) CLAUDIN, F. (1975), Marx, Engels y la Revolución de 1848, Madrid, Siglo Veintiuno. (retornar ao texto)

(4) A tradução do conjunto dos artigos de Marx para a Nova Gazeta Renana, dentre os quais selecionamos os ora publicados, faz parte dos trabalhos preparatórios para a elaboração de nossa tese de doutorado provisoriamente intitulada "Marx — política e emancipação humana: 1848-1871", sob orientação do prof. dr. Miguel Chaia (Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais — PUC-SP). Tradução do original alemão: Marx-Engels Werke, Berlim, Dietz Verlag, 1959, vols. 5 e 6. As notas de rodapé foram todas extraídas dessa edição. Os artigos "A Declaração de Camphausen na Sessão de 30 de Maio", "Queda do Ministério Camphausen" e "O Projeto de Lei sobre a Revogação dos Encargos Feudais" foram traduzidos em conjunto com Márcia V. M. de Aguiar. (retornar ao texto)

(5) Uma análise detalhada do processo de configuração do pensamento marxiano encontra-se em CHASIN, J. op. cit. (retornar ao texto)

(6) Apud CHASIN, J. Apresentação a MARX, K. op. cit., p. 19. (retornar ao texto)

(7) MARX, K. "A burguesia e a contra-revolução", op. cit., pp. 43-44. (retornar ao texto)

(8) Ibid., p. 38. (retornar ao texto)

(9) Os mencionados artigos são:
A Declaração de Camphausen na Sessão de 30 de Maio
O Ministério Camphausen
Queda do Ministério Camphausen
O Ministério de Ação
A Crise Ministerial
Projeto de Lei Sobre a Regovação dos Encargos Feudais
A Crise e a Contra-Revolução [1º de 4 artigos]
A Crise [2º de 4 artigos]
A Crise [3º de 4 artigos]
A Crise [4º de 4 artigos]
O Ministério Pfuel
Vitória da Contra-Revolução em Viena
A Crise em Berlim
A Contra-Revolução em Berlim
Artigo na Nova Gazeta Renana [Sem Título]
A Dissolução da Assembléia Nacional
(retornar ao texto)

Inclusão 31/10/2014
Alteração 09/11/2014