Carta a Pável V. Annenkov
(em Paris)

Karl Marx

28 de Dezembro de 1846

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Primeira Edição: Publicado pela primeira vez segundo o original francês, em La Correspondance entre M. Stassioulévitch et ses contemporains, t. III, St.-Pétersbourg, 1912.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!" - Edição dirigida por um colectivo composto por: José BARATA-MOURA, Eduardo CHITAS, Francisco MELO e Álvaro PINA.
Tradução: Traduzido do francês por Eduardo CHITAS.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, abril 2006.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.


capa

Bruxelas, 28 de Dezembro [de 1846]

Meu caro Sr. Annenkov,

Já teria recebido há muito a minha resposta à sua carta de 1 de Novembro, se o meu livreiro não tivesse demorado até à semana passada a enviar-me o livro do sr. Proudhon: Philosophie de la misère. Percorri-o em dois dias, para poder comunicar imediatamente a V. a minha opinião. Como li o livro muito rapidamente, não posso entrar em pormenores, apenas posso falar-lhe da impressão geral que produziu em mim. Se V. quiser poderei entrar em pormenores numa segunda carta.

Confesso-lhe francamente que acho o livro em geral mau e muito mau. Na sua carta, V. mesmo brinca "com o naco de filosofia alemã" que o sr. Proudhon alardeia nessa obra informe e presunçosa, mas supõe V. que o desenvolvimento económico não foi infectado pelo veneno filosófico. Também eu estou muito longe de imputar os erros da explanação económica à filosofia do sr. Proudhon. Não é por estar na posse de uma filosofia ridícula que o sr. Proudhon apresenta uma falsa crítica da economia política, ele apresenta uma filosofia ridícula por não ter compreendido o estado social actual no seu encadeamento [engrènement], para usar uma palavra que o sr. Proudhon foi buscar a Fourier, como muitas outras coisas.

Porque fala o sr. Proudhon de deus, da razão universal, da razão impessoal da humanidade que nunca se engana, que desde sempre foi igual a si própria, da qual basta apenas ter-se a justa consciência para se estar com a verdade? Porque pratica ele um fraco hegelianismo, para se arvorar em espírito forte?

Ele mesmo nos dá a chave do enigma. O sr. Proudhon vê na história uma certa série de desenvolvimentos sociais; acha o progresso realizado na história; acha por último que os homens, como indivíduos, não sabiam o que faziam, se enganavam sobre o seu próprio movimento, isto é, que o seu desenvolvimento social parece à primeira vista coisa distinta, separada, independente do seu desenvolvimento individual. Não sabe explicar estes factos e a hipótese da razão universal, que se manifesta, está assim perfeitamente encontrada. Nada mais fácil do que inventar causas místicas, isto é, frases, donde está ausente o senso comum.

Mas ao confessar que nada percebe do desenvolvimento histórico da humanidade — e confessa-o quando se serve de palavras sonoras como razão universal, deus, etc. — não confessa o sr. Proudhon, implícita e necessariamente, que é incapaz de compreender desenvolvimentos económicos?

Que é a sociedade, qualquer que seja a sua forma? O produto da acção recíproca dos homens. São os homens livres de escolher esta ou aquela forma social? De modo algum. Considere-se um certo estado de desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens e ter-se-á tal forma de comércio e de consumo. Considerem-se certos graus de desenvolvimento da produção, do comércio, do consumo e ter-se-á tal forma de constituição social, tal organização da família, das ordens ou das classes, numa palavra, tal sociedade civil. Considere-se tal sociedade civil e ter-se-á tal Estado político, que não é mais do que a expressão oficial da sociedade civil. Eis o que o sr. Proudhon nunca compreenderá, porque julga fazer uma grande coisa quando apela para a sociedade civil contra o Estado, isto é, para a sociedade oficial contra o resumo oficial da sociedade.

É desnecessário acrescentar que os homens não são livres árbitros das suas forças produtivas — as quais são a base de toda a sua história — pois toda a força produtiva é uma força adquirida, o produto de uma actividade anterior. Assim, as forças produtivas são o resultado da energia prática dos homens, mas esta própria energia está circunscrita pelas condições em que os homens se encontram situados, pelas forças produtivas já adquiridas, pela forma social que existe antes deles, que eles não criam, que é o produto da geração anterior. Pelo simples facto de que toda a geração posterior encontra forças produtivas adquiridas pela geração anterior, que lhe servem como matéria-prima de nova produção, forma-se uma conexão [connexité] na história dos homens, forma-se uma história da humanidade, que é tanto mais a história da humanidade quanto as forças produtivas dos homens, e por consequência as suas relações sociais, tiverem crescido. Consequência necessária: a história social dos homens nunca é senão a história do seu desenvolvimento individual, quer eles tenham consciência disso quer não a tenham. As suas relações materiais formam a base de todas as suas relações. Estas relações materiais não são senão as formas necessárias em que se realiza a sua actividade material e individual.

O sr. Proudhon confunde as ideias e as coisas. Os homens nunca renunciam ao que ganharam, mas isso não quer dizer que nunca renunciem à forma social em que adquiriram certas forças produtivas. Muito pelo contrário. Para não serem privados do resultado obtido, para não perderem os frutos da civilização, os homens são forçados, a partir do momento em que o modo do seu comércio já não corresponde às forças produtivas adquiridas, a mudar todas as suas formas sociais tradicionais. —Tomo aqui a palavra comércio no seu sentido mais geral, como nós dizemos em alemão: Verkehr. — Por exemplo: o privilégio, a instituição das jurandas e das corporações, o regime de regulamentação na Idade Média, eram as únicas relações sociais que correspondiam às forças produtivas adquiridas e ao estado social pré-existente, do qual essas instituições tinham saído. Sob a protecção do regime corporativo e da regulamentação, os capitais tinham-se acumulado, desenvolvera-se um comércio marítimo, haviam sido fundadas colónias — e os homens teriam perdido os próprios frutos se tivessem querido conservar as formas sob cuja protecção esses frutos tinham amadurecido. Por isso se deram duas trovoadas: a revolução de 1640 e a de 1688. Todas as antigas formas económicas, as relações sociais que lhes correspondiam, o estado político que era a expressão oficial da antiga sociedade civil foram quebrados, na Inglaterra. Assim, as formas económicas sob as quais os homens produzem, consomem, trocam, são transitórias e históricas. Com novas faculdades produtivas adquiridas, os homens mudam o seu modo de produção e, com o modo de produção, mudam todas as relações económicas, que não foram senão as relações necessárias desse modo de produção determinado.

É o que o sr. Proudhon não compreendeu [e] ainda menos demonstrou. Incapaz de seguir o movimento real da história, o sr. Proudhon dá-nos uma fantasmagoria que tem a pretensão de ser uma fantasmagoria dialéctica. Ele não sente necessidade de nos falar dos séculos XVII, XVIII e XIX, porque a sua história passa-se no ambiente nebuloso da imaginação e eleva-se, altaneiramente, acima dos tempos e dos lugares. Numa palavra, é velharia hegeliana, não é uma história: não é uma história profana — história dos homens — é uma história sagrada —história das ideias. Na sua maneira de ver, o homem não é senão o instrumento de que a ideia ou a razão eterna fazem uso para desenvolver-se. As evoluções de que fala o sr. Proudhon passam por ser as evoluções tais como ocorrem no seio místico da ideia absoluta. Se rasgarmos o véu dessa linguagem mística, isso equivale a dizer que o sr. Proudhon nos dá a ordem pela qual se arrumam as categorias económicas na sua cabeça. Não precisarei de grande esforço para provar a V. que essa arrumação é a arrumação de uma cabeça muito desordenada.

O sr. Proudhon começou o seu livro com uma dissertação sobre o valor, que é a sua mania. Não entrarei desta vez no exame de tal dissertação.

A série das evoluções económicas da razão eterna começa com a divisão do trabalho. Para o sr. Proudhon, a divisão do trabalho é coisa muito simples. Mas não era o regime das castas uma certa divisão do trabalho? E o regime das corporações, não era uma outra divisão do trabalho? E a divisão do trabalho do regime manufactureiro, que começa em meados do século XVII e acaba na última parte do século XVIII na Inglaterra, não é também totalmente distinta da divisão do trabalho da grande indústria, da indústria moderna?

O sr. Proudhon está tão pouco dentro da verdade que descura aquilo que os próprios economistas profanos fazem. Para nos falar da divisão do trabalho, ele não precisa de falar do mercado mundial. Ora bem! A divisão do trabalho, nos séculos XIV e XV, quando não havia ainda colónias, quando a América não existia ainda para a Europa, quando a Ásia oriental só existia por intermédio de Constantinopla — não havia ela de se distinguir de alto a baixo da divisão do trabalho do século XVII, que tinha colónias já desenvolvidas?

Não é tudo. Toda a organização interna dos povos, todas as suas relações internacionais, serão outra coisa do que a expressão de uma certa divisão do trabalho? E não haverão elas de mudar com a mudança da divisão do trabalho?

O sr. Proudhon compreendeu em tão pequena medida a divisão do trabalho que nem sequer nos fala da separação da cidade e do campo, que, na Alemanha, por exemplo, se efectuou do século IX ao século XII. Assim, para o sr. Proudhon essa separação deve ser lei eterna, pois não conhece nem a sua origem nem o seu desenvolvimento. Ele vai-nos falar em todo o seu livro como se esta criação de um certo modo de produção durasse até ao fim dos tempos. Tudo o que diz o sr. Proudhon da divisão do trabalho é apenas um resumo e, além disso, um resumo muito superficial e muito incompleto do que haviam dito antes dele Adam Smith e mil outros.

A segunda evolução, são as máquinas. A conexão entre a divisão do trabalho e as máquinas é toda ela mística no sr. Proudhon. Cada um dos modos da divisão do trabalho tinha instrumentos de produção específicos. Por exemplo, de meados do século XVII até meados do século XVIII os homens não faziam tudo manualmente. Possuíam instrumentos e instrumentos muito complicados, como os teares, os navios, as alavancas, etc, etc.

Assim, nada mais ridículo do que fazer derivar as máquinas como consequência da divisão do trabalho em geral.

Dir-lhe-ei ainda de passagem que o sr. Proudhon, como não compreendeu a origem histórica das máquinas, menos ainda compreendeu o seu desenvolvimento. Até ao ano de 1825 — época da primeira crise universal — pode dizer-se que as necessidades do consumo em geral avançavam mais depressa do que a produção, e que o desenvolvimento das máquinas era a forçosa consequência das necessidades do mercado. Desde 1825, a invenção e a aplicação das máquinas não é senão o resultado da guerra entre os patrões [maîtres] e os operários. E ainda assim isto só é verdade para a Inglaterra. Quanto às nações europeias, foram forçadas a aplicar as máquinas pela concorrência que os ingleses lhes faziam, tanto no seu próprio mercado como no mercado mundial. Por fim, quanto à América do Norte, a introdução das máquinas foi trazida quer pela concorrência com os outros povos quer pela escassez dos braços, isto é, pela desproporção entre a população e as necessidades industriais da América do Norte. Destes factos pode V. concluir que sagacidade o sr. Proudhon não desenvolve, ao conjurar o fantasma da concorrência como terceira evolução, como antítese das máquinas!

Por fim, em geral, é um verdadeiro absurdo fazer das máquinas uma categoria económica, ao lado da divisão do trabalho, da concorrência, do crédito, etc.

A máquina é tão pouco uma categoria económica como o boi que puxa a charrua. A aplicação actual das máquinas é uma das relações do nosso regime económico actual, mas o modo de explorar as máquinas é inteiramente distinto das próprias máquinas. A pólvora permanece a mesma, quer nos sirvamos dela para ferir um homem ou para tratar as chagas do ferido.

O sr. Proudhon ultrapassa-se a si mesmo quando faz crescer no interior da sua cabeça a concorrência, o monopólio, o imposto ou a polícia, a balança comercial, o crédito, a propriedade, pela ordem que eu cito. Quase todas as instituições de crédito estavam desenvolvidas em Inglaterra, no começo do século XVIII, antes da invenção das máquinas. O crédito público era apenas uma nova maneira de elevar o imposto e de satisfazer as novas necessidades criadas pela chegada da classe burguesa ao governo. Finalmente, a propriedade forma a última categoria no sistema do sr. Proudhon. No mundo real, pelo contrário, a divisão do trabalho e todas as outras categorias do sr. Proudhon são relações sociais, cujo conjunto forma o que actualmente se chama a propriedade; fora destas relações, a propriedade burguesa não é mais do que uma ilusão metafísica ou jurídica. A propriedade de uma outra época, a propriedade feudal desenvolve-se numa série de relações sociais inteiramente diferentes. O sr. Proudhon, ao estabelecer a propriedade como uma relação independente, comete mais do que um erro de método: prova claramente que não apreendeu o elo que liga todas as formas da produção burguesa, que não compreendeu o carácter histórico e transitório das formas da produção numa época determinada. O sr. Proudhon, que não vê nas nossas instituições sociais produtos históricos, que não compreende nem a sua origem nem o seu desenvolvimento, só pode fazer-lhes uma crítica dogmática.

Por isso o sr. Proudhon é forçado a recorrer a uma ficção para explicar o desenvolvimento. Imagina que a divisão do trabalho, o crédito, as máquinas, etc, que tudo foi inventado ao serviço da sua ideia fixa, a ideia da igualdade. A sua explicação é de uma ingenuidade sublime. Inventaram-se essas coisas para a igualdade, mas infelizmente elas viraram-se contra a igualdade. E esse todo o seu raciocínio. Ou seja: faz uma suposição gratuita, e como o desenvolvimento real e a sua ficção se contradizem a cada passo, ele conclui daí que há contradição. Dissimula-nos que apenas há contradição entre as suas ideias fixas e o movimento real.

Assim o sr. Proudhon, principalmente por falta de conhecimentos históricos, não viu: que os homens, ao desenvolverem as suas faculdades produtivas, isto é, ao viverem, desenvolvem certas relações entre eles, e que o modo dessas relações muda necessariamente com a modificação e o crescimento dessas faculdades produtivas. Ele não viu que as categorias económicas são apenas abstracções dessas relações reais, que só são verdades na medida em que subsistam essas relações. Assim, ele cai no erro dos economistas burgueses que vêem nessas categorias económicas leis eternas e não leis históricas, as quais só são leis para um certo desenvolvimento histórico, para um desenvolvimento determinado das forças produtivas. Assim, em vez de considerar as categorias político-económicas como abstracções feitas [a partir] das relações sociais reais, transitórias, históricas, o sr. Proudhon, por uma inversão mística, não vê nas relações reais senão corporizações [incorporations] dessas abstracções. Estas mesmas abstracções são fórmulas que dormitaram no seio de Deus-pai desde o começo do mundo.

Mas, aqui, o bom do sr. Proudhon cai em grandes convulsões intelectuais. Se todas estas categorias são emanações do coração de Deus, se são a vida oculta e eterna dos homens, como é que então, em primeiro lugar, há desenvolvimento e, em segundo lugar, como é que o sr. Proudhon não é conservador? Explica-nos estas contradições evidentes por todo um sistema do antagonismo.

Para esclarecer esse sistema de antagonismo, tomemos um exemplo.

O monopólio é bom porque é uma categoria económica. Mas o que não é bom é a realidade do monopólio e a realidade da concorrência. O que é ainda pior, é que o monopólio e a concorrência se devoram mutuamente. Que se deve fazer neste caso? Como estes dois pensamentos eternos de Deus se contradizem, parece-lhe evidente que há no seio de Deus igualmente uma síntese entre esses dois pensamentos, na qual os males do monopólio são equilibrados pela concorrência, e vice-versa. A luta entre as duas ideias terá por efeito deixar-lhes aparecer só o lado bom. Há que arrancar a Deus esse pensamento secreto e depois aplicá-lo, e tudo correrá pelo melhor; há que revelar a fórmula sintética escondida na noite da razão impessoal da humanidade. O sr. Proudhon não hesita um só momento em fazer-se o revelador.

Mas lancemos por um momento o olhar sobre a vida real. Na vida económica actual, não apenas encontramos a concorrência e o monopólio, mas também a sua síntese, que não é uma fórmula, mas um movimento. O monopólio produz a concorrência; a concorrência produz o monopólio. No entanto, esta equação, longe de remover as dificuldades da situação actual, como imaginam os economistas burgueses, tem por resultado uma situação mais difícil e mais baralhada. Assim, mudando a base sobre a qual se fundam as relações económicas actuais, destruindo o modo actual de produção, destrói-se não só a concorrência, o monopólio e o seu antagonismo, mas também a sua unidade, a sua síntese, o movimento que é a equilibração real da concorrência e do monopólio.

Agora vou dar-lhe um exemplo da dialéctica do sr. Proudhon.

A liberdade e a escravatura formam um antagonismo. Não preciso falar dos lados bons nem dos lados maus da liberdade.

Quanto à escravatura, não preciso falar dos seus lados maus. A única coisa que é preciso explicar é o lado belo da escravatura. Não se trata da escravatura indirecta, da escravatura do proletário, trata-se da escravatura directa, da escravatura dos Negros no Surinam(1*), no Brasil, nas regiões meridionais da América do Norte.

A escravatura directa é o eixo do nosso industrialismo actual, tal como as máquinas, o crédito, etc. Sem escravatura, não temos algodão; sem algodão, não temos indústria moderna. Foi a escravatura que deu valor às colónias, foram as colónias que criaram o comércio mundial, o comércio mundial é que é a condição necessária da grande indústria mecânica. Por isso, antes do tráfico dos negros, as colónias só davam ao velho mundo muito poucos produtos e não alteravam visivelmente a face do mundo. Assim, a escravatura é uma categoria económica da mais alta importância. Sem a escravatura, a América do Norte, o povo mais progressivo, transformar-se-ia num país patriarcal. Risque-se apenas a América do Norte do mapa dos povos e ter-se-á a anarquia, a decadência completa do comércio e da civilização modernos. Mas fazer desaparecer a escravatura seria riscar a América do mapa dos povos. Por isso a escravatura, sendo uma categoria económica, se encontra desde o começo do mundo em todos os povos. Os povos modernos só souberam disfarçar a escravatura no seu próprio seio e importá-la abertamente no Novo Mundo. Como abordará isto o bom do sr. Proudhon depois destas reflexões sobre a escravatura? Procurará a síntese da liberdade e da escravatura, o verdadeiro meio termo; por outras palavras: o equilíbrio da escravatura e da liberdade.

O sr. Proudhon compreendeu muito bem que os homens fazem o pano, a tela, os tecidos de seda; que grande mérito ter compreendido tão pouca coisa! O que o sr. Proudhon não compreendeu é que os homens, segundo as suas faculdades, produzem também as relações sociais em que produzem o pano e a tela. Menos ainda compreendeu o sr. Proudhon que os homens, que produzem as relações sociais em conformidade com a sua produtividade material, produzem também as ideias, as categorias, isto é, as expressões abstractas ideais [idéelles] dessas mesmas relações sociais. Assim, as categorias são tão pouco eternas quanto as relações que exprimem. São produtos históricos e transitórios. Para o sr. Proudhon, muito pelo contrário, a causa primitiva são as abstracções, as categorias. Segundo ele, são elas e não os homens que produzem a história. A abstracção, a categoria tomada como tal, isto é, separada dos homens e da sua acção material, é naturalmente imortal, inalterável, impassível; é apenas um ser da razão pura, o que só quer dizer que a abstracção tomada como tal é abstracta. Tautologia admirável!

Por isso as relações económicas, vistas sob a forma das categorias, são para o sr. Proudhon fórmulas eternas, que não têm origem nem progresso.

Falemos de outra maneira: o sr. Proudhon não afirma directamente que a vida burguesa é para ele uma verdade eterna: di-lo indirectamente, divinizando as categorias que exprimem as relações burguesas sob a forma do pensamento. Ele toma os produtos da sociedade burguesa por seres espontâneos dotados de uma vida própria, eternos, desde que se lhe apresentem sob a forma de categorias, de pensamento. Assim, não se eleva acima do horizonte burguês. Porque opera sobre os pensamentos burgueses supondo-os eternamente verdadeiros, ele procura a síntese desses pensamentos, o seu equilíbrio, e não vê que o modo actual de se equilibrarem é o único modo possível.

Realmente, ele faz o que fazem todos os bons burgueses. Todos eles nos dizem que a concorrência, o monopólio, etc, em princípio, isto é, tomados como pensamentos abstractos, são os únicos fundamentos da vida, mas que deixam muito a desejar na prática. Todos eles querem a concorrência sem as consequências funestas da concorrência. Todos eles querem o impossível, isto é, as condições da vida burguesa sem as consequências necessárias dessas condições. Todos eles são incapazes de compreender que a forma burguesa da produção é uma forma histórica e transitória, exactamente como o era a forma feudal. Este erro vem de que, para eles, o homem-burguês é a única base possível de toda a sociedade, de que não imaginam um estado de sociedade em que o homem tivesse deixado de ser burguês.

O sr. Proudhon é pois necessariamente doutrinário. O movimento histórico que revolve o mundo actual resolve-se, para ele, no problema de descobrir o justo equilíbrio, a síntese de dois pensamentos burgueses. Assim, à força de subtileza, o esperto do rapaz descobre o pensamento oculto de Deus, a unidade dos dois pensamentos isolados que são só dois pensamentos isolados, porque o sr. Proudhon os isolou da vida prática, da produção actual, que é a combinação das realidades que eles exprimem. No lugar do grande movimento histórico, que nasce do conflito entre as forças produtivas dos homens, já adquiridas, e as suas relações sociais que já não correspondem a essas forças produtivas; no lugar das guerras terríveis que se preparam entre as diferentes classes de uma nação, entre as diferentes nações; no lugar da acção prática e violenta das massas, única que poderá resolver essas colisões; no lugar desse movimento, vasto, prolongado e complicado, o sr. Proudhon põe o movimento diarreico [le mouvement cacadauphin] da sua cabeça. Assim, são os sábios, os homens capazes de apanhar a Deus o seu pensamento íntimo, que fazem a história. O povo miúdo não tem mais do que aplicar as revelações destes. Compreende V. agora porque é o sr. Proudhon inimigo declarado de todo o movimento político. A solução dos problemas actuais não consiste, para ele. na acção pública, mas nas rotações dialécticas da sua cabeça. Como para ele as categorias são as forças motrizes, não há que mudar a vida prática para mudar as categorias. Muito pelo contrário: há que mudar as categorias e a mudança da sociedade real será consequência disso.

No seu desejo de conciliar as contradições, o sr. Proudhon não se interroga sobre se a própria base dessas contradições não deve ser derrubada. Em tudo se assemelha ao doutrinário político que quer o rei, a Câmara dos Deputados e a Câmara dos Pares, como partes integrantes da vida social, como categorias eternas. Procura somente uma nova fórmula para equilibrar estes poderes (cujo equilíbrio consiste precisamente no movimento actual, em que um dos poderes ora é o vencedor ora o escravo do outro). E assim que no século XVIII uma multidão de cabeças medíocres estava ocupada em encontrar a verdadeira fórmula para equilibrar as ordens sociais, a nobreza, o rei, os parlamentos, etc, e no dia seguinte já não havia rei, nem parlamento, nem nobreza. O justo equilíbrio entre esse antagonismo era o derrube de todas as relações sociais, que serviam de base a essas existências feudais e ao antagonismo dessas existências feudais.

Como o sr. Proudhon põe, de um lado, as ideias eternas, as categorias da razão pura e, de outro lado, os homens e a sua vida prática, que é segundo ele a aplicação dessas categorias, V. encontra nele, desde o começo, dualismo entre a vida e as ideias, entre a alma e o corpo — dualismo que se repete sob muitas formas. V. vê agora que esse antagonismo é apenas a incapacidade do sr. Proudhon em compreender a origem e a história profana das categorias que ele diviniza.

A minha carta já vai longa de mais para falar ainda do processo ridículo que o sr. Proudhon move ao comunismo. De momento, V. conceder-me-á que um homem que não compreendeu o estado actual da sociedade, menos ainda deve compreender o movimento que tende a derrubá-lo e as expressões literárias desse movimento revolucionário.

O único ponto em que estou perfeitamente de acordo com o sr. Proudhon é na sua aversão pela pieguice socialista. Antes dele, suscitei eu muitas inimizades por troçar do socialismo acarneirado, sentimental, utopista. Mas não terá o sr. Proudhon estranhas ilusões ao opor a sua sentimentalidade de pequeno-burguês, isto é, as suas declamações sobre o lar, o amor conjugal e todas essas banalidades, à sentimentalidade socialista, que em Fourier, por exemplo, é muito mais profunda do que as vulgaridades presunçosas do nosso bom Proudhon? Ele próprio sente tão bem a nulidade das suas razões, a sua incapacidade completa para falar dessas coisas, que se lança, corpo e alma, nos furores, nas exclamações, nas irae hominis probi(2*), que espumeja, pragueja, denuncia, grita contra a infâmia e contra a peste, bate no peito e glorifica-se, perante Deus e os homens, de estar puro das infâmias socialistas! Não é como crítico que ele zomba das sentimentalidades socialistas ou do que toma por sentimentalidades. É como santo, como papa, que excomunga os pobres pecadores e canta as glórias da pequena burguesia e das míseras ilusões amorosas, patriarcais, do lar doméstico. E nada disto é acidental. O sr. Proudhon é, da cabeça aos pés, filósofo, economista da pequena burguesia. O pequeno burguês numa sociedade avançada e por necessidade da sua condição faz-se, por um lado, socialista, e por outro, economista, isto é, fica deslumbrado com a magnificência da alta burguesia e simpatiza com as dores do povo. É ao mesmo tempo burguês e povo. Gaba-se, no foro íntimo da sua consciência, de ser imparcial, de ter encontrado o justo equilíbrio, que tem a pretensão de distinguir-se do meio termo. Um tal pequeno burguês diviniza a contradição, porque a contradição é o fundo do seu ser. Não é senão a contradição social em acção. Deve justificar pela teoria o que é na prática, e o sr. Proudhon tem o mérito de ser o intérprete científico da pequena burguesia francesa, o que é um mérito real, porque a pequena burguesia será parte integrante de todas as revoluções sociais que se preparam.

Desejaria ter podido enviar a V., com esta carta, o meu livro sobre a economia política[N282], mas até à data foi-me impossível mandar imprimir(3*) esta obra e as críticas aos filósofos e socialistas alemães, de que lhe falei em Bruxelas. V. nunca acreditará que dificuldades uma tal publicação encontra na Alemanha, por um lado da parte da polícia e por outro da parte dos livreiros, que são eles próprios os representantes interessados de todas as tendências que ataco. E quanto ao nosso próprio partido, não só é pobre, como uma grande fracção do partido comunista alemão leva a mal que me oponha às suas utopias e às suas declamações .[...]


Notas de Rodapé:

(1*) Antiga colónia holandesa na região das Guianas. a norte do Brasil. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(2*) Em latim no texto: cóleras de homem honesto. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(3*) No original: "laisser imprimer" (sublinhado nosso). Germanismo de Marx, que utiliza o verbo francês laisser num dos sentidos do verbo alemão lassen, designadamente na expressão drucken lassen: mandar imprimir. Em francês deveria encontrar-se faire imprimer. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de Fim de Tomo:

[N282] Trata-se da obra Crítica da Política e da Economia Política que Marx projectava escrever. (retornar ao texto)

Inclusão 29/04/2007