O Socialimo e a Educação dos Filhos

A. S. Makarenko


Nota Sobre o Autor


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Ao julgar Makarenko, podemos incorrer em dois erros opostos. Podemos cometer o erro de considerá-lo como o criador de um "sistema pedagógico” pessoal, de uma "experiência pedagógica” ligada essencialmente à sua personalidade, e que, por isso mesmo poderia ter-se desenvolvido em Genebra ou em Paris, Poltava ou Karkov, e tanto há cinquenta anos como em nossos dias. Também se pode cometer o erro oposto: o de reduzir toda a pedagogia soviética ao pensamento de Makarenko, identificando-a com suas ideias e suas experiências educativas, é certo que a pedagogia de Makarenko é uma parte, e muito importante, da pedagogia soviética: suas experiências e suas conclusões são fundamentais e, podemos dizer, modelares no desenvolvimento da escola e da pedagogia socialistas. Mas são sempre uma parte, não tudo; uma experiência e uma fase, não um surpreendente sistema fechado e definitivo. Em poucas palavras, pensamos que Anton S. Makarenko pode ser definido como a mais forte e rica personalidade da escola e da pedagogia soviéticas em suas primeiras fases de desenvolvimento, desde a Revolução de Outubro até a vitória da edificação do socialismo (1936).

A personalidade de Anton Semiônovitch é extraordinariamente forte, rica e apaixonada. Makarenko desenvolve nos cinquenta e um anos de sua curta, mas intensíssima vida (1888-1939), um imenso trabalho. Em primeiro lugar estão suas duas grandes experiências, ou melhor, seus dois grandes "poemas pedagógicos”: a Colônia Górki, para menores delinquentes, transformada em poucos anos em uma coletividade laboriosa, sadia e feliz (1920-1927); na Comuna Dzerjinski (1927-1935), na qual o menino abandonado o besprizorniki, torna-se, sob a direção de Anton Semiônovitch, operário culto e altamente qualificado, construtor de modernos implementos industriais (verrumas elétricas, aparelhos fotográficos). A estas grandes experiências estão ligadas as duas obras narrativas mais importantes de Makarenko: Poema Pedagógico (1935), de que falaremos a seguir, e Bandeiras Sobre as Torres (1958). Em seguida, está uma verdadeira série de obras literárias menores, não só novelas e relatos pedagógicos, como também, por exemplo, obras teatrais (destinadas ao conjunto de amadores de sua colônia, pois Anton Semiônovitch considerava o teatro como poderoso meio de educação dos jovens e do povo), e roteiros cinematográficos. Ligados a elas estão também seus artigos, discursos, intervenções, ensaios, etc. Testemunhas da infatigável atividade de Makarenko como organizador e propagandista da educação socialista. Está, enfim, sua obra sistemática, certamente incompleta, dos últimos anos, e em primeiro lugar Conselhos aos Pais no qual Anton Semiônovitch alcança a completa maturidade, sintetizando e aprofundando a grande experiência educativa dos primeiros vinte anos da escola e da sociedade soviéticas.

A obra de Makarenko se torna mais concreta volume após volume e sobre ela muitos volumes foram escritos; não podemos pretender de modo algum, seja explicá-la, nem sequer resumi-la em breve intervenção neste Encontro. Podemos, apenas, procurar dar algumas perspectivas ou esboços dessa intensa atividade criadora.

Anton S. Makarenko continua uma grande tradição pedagógica progressista da Rússia e vem somar-se também — não sem atravessar duras polêmicas — à pedagogia de vanguarda da Europa Ocidental dos últimos cento e cinquenta anos.

Quando falamos de uma tradição pedagógica progressista russa não queremos referir-nos aos estudiosos da pedagogia de 1800 (que também mereceriam um cuidadoso estudo), e sim da corrente literária russa do século XIX, que, em sua luta democrática, elevava a primeiro plano o problema da instrução e da educação.

É um filão da literatura democrática russa ainda insuficientemente conhecido na Itália. Vê-se, de um lado, a luta contra a escola do envilecimento da época tszarista, a denúncia da opressão e do sufocamento do ser humano, que assume particular aspereza e eficácia no Retrato do Seminário, de Pomiálvski. Por outro lado, começa a surgir o homem novo, o revolucionário que luta por libertar a humanidade humilhada e se converte no mestre da nova vida, como Rachmelon em Que Fazer?, de Tchernitchévski; como os heróis de alguns contos famosos de Turguenev ou Nekrássov; como Pável, o herói operário de A Mãe de Górki.

"Nossa literatura passada, de Pomialvski a Tchekov forneceu uma amplíssima galeria de retratos com pedagogos de palmatória, burocratas desalmados e de homens ressentidos. Mas, nessa literatura de ficção ou biográfica, brilha, embora rápida e episodicamente, aqui e ali, a figura do professor que ama seus alunos, compreendendo que as crianças de hoje serão os construtores de uma vida nova.”

Isto dizia Máximo Górki no discurso pronunciado na reunião dos sovietes em 1929; e pensava seguramente também em seu amigo e discípulo Anton Semiônovitch, com que se havia encontrado pouco antes, ao visitar a colônia que tinha o seu nome: Colônia Górki.

Justamente, Górki conclui e resume a literatura democrática de interesse pedagógico do século XIX na Rússia e a que já nos referimos. A obra literária de Górki tem extraordinária importância para a pedagogia soviética. O herói operário, o homem do povo ligado ao povo, que se forma e amadurece através de sofrimentos e de dura luta, que vê na libertação de todos os trabalhadores a sua própria: este é o protagonista das novelas de Górki, este é o próprio Górki, homem do povo, professor, amigo e poeta do povo. Em seu pensamento se encontra já a ideia central que guia a obra pedagógica de Makarenko e a pedagogia soviética:

"Antes... educava-se o homem individualista. Nós somos inimigos do individualismo burguês. Esforçamo-nos por criar o homem coletivista,” (Górki, 1952).

E o próprio Górki encarna já o homem novo.

A trilogia autobiográfica de Górki teve enorme importância para Makarenko e seus a!unos. O próprio Makarenko descreve as impressões que a leitura de Infância e Entre Estranhos produziu nos rapazes da colônia que logo tomará o nome de Górki.

"Os rapazes ouviram-na prendendo a respiração e pedindo que continuássemos a leitura, mesmo que fosse ‘até às doze horas’. A princípio, não me acreditavam quando lhes contava a história da vida real de Górki. Ela os deixava estupefatos; mas, logo se sentiram atraídos por esta pergunta: — ‘Então, Górki é como nós? Isto é formidável!’ Isto despertou neles profunda e alegre emoção. A vida de M. Górki tornou-se parte integrante de nossa vida. Alguns de seus episódios se transformaram em elementos de comparação, base para diversos apelidos, temas para discussões, escalas para medição da qualidade humana.” (Poema Pedagógico.)

Através do intercâmbio epistolar e do contacto direto, Górki muito ajudará Makarenko e seus rapazes a encontrar seu caminho, o caminho da educação soviética. No início de sua atividade, naquele mês de setembro de 1920, que viu o "começo inglório da Colônia Górki"(1) Makarenko, e como ele a maioria dos pedagogos soviéticos, era todo ímpeto, capaz de qualquer esforço ou sacrifício; mas suas ideias sobre a teoria pedagógica eram extremamente confusas. A luta pela liquidação da velha escola com seus princípios e métodos autoritários e brutais, de disciplina passiva e humilhante, característica da "educação cara ao tzar e ao Santo Sínodo", levara a escola soviética do primeiro ano depois da revolução à afirmação dos métodos e das teorias libertárias. Esta "onda libertária" foi positiva no sentido em que destruiu rapidamente os resíduos daquele espírito de humilhação, de submissão passiva, de personalidades apagadas, que tornavam sufocante a velha "escola dos súditos". Mas, ao mesmo tempo, e por esse mesmo motivo, firmou-se como teoria pedagógica "revolucionária" a teoria do desenvolvimento espontâneo e livre da personalidade humana; e como modelo de educação nova, livre e progressista, alguns propunham o Emílio de J. J. Rousseau.

Emílio — lembrai-vos? — é afastado da sociedade familiar normal para ser educado em contacto com a natureza, em absoluta "liberdade". Sua primeira leitura, e por muitos anos a única, é o Robinson Crusoe: a epopeia do homem só frente a natureza, é o ideal do homem livre concebido como homem solitário, próprio da sociedade capitalista. Historicamente progressista, como rompimento com o conformismo feudal e jesuítico, o naturalismo rousseauniano, consequentemente, representa uma ideologia retrógrada, reacionária na construção da nova sociedade socialista, que não se baseia no homem individualista, mas no homem coletivista, no cidadão trabalhador.

Makarenko elaborou e fundiu a fogo vivo sua crítica a Rousseau, à teoria naturalista do desenvolvimento espontâneo e ao individualismo na educação, através de dura luta contra os pedagogos de escritório (o "Olimpo pedagógico”, usando uma expressão de Makarenko), crítica que termina, pode-se dizer, em 1933-36. Seu trabalho mais longo, o Poema Pedagógico, se contrapõe consciente e explicitamente ao Emílio, como o poema do coletivo contra a utopia do homem solitário, como a exaltação da nova sociedade educadora contra o mito de uma educação puramente natural.

"Vivi durante alguns anos — diz Makarenko em um de seus discursos em 1938 — cheio de ódio contra os pedólogos (como a si próprios chamavam os que apoiavam a teoria naturalista e libertária). Foi o período em que escrevi a primeira parte do Poema Pedagógico. Em particular, meu sentimento se voltava diretamente contra Rousseau.”

O que diziam os pedólogos? O que afirmavam as divindades do Olimpo pedagógico? De acordo com o Olimpo:

"a criança era considerada como um ser enchido por um gás de composição especial, cujo nome nem sequer tiveram tempo de estabelecer... Supunha-se, como hipótese de trabalho, que este gás possuía a faculdade de se desenvolver sozinho, não se devendo, por isso, colocar-lhe obstáculos. Muitos livros se escreveram a respeito, mas todos eles, afinal de contas, repetiam as máximas de Rousseau:

‘Tratai com veneração a infância...

‘Temei opor obstáculos à natureza...’

O dogma básico desta doutrina era o de que, respeitando estas condições de venerarão e previsão ante a natureza, do gás acima mencionado obrigatoriamente sairia uma personalidade comunista. Mas, na realidade, nas condições da natureza pura, surgia unicamente o que podia brotar naturalmente, isto é, as vulgares ervas daninhas do campo.” (Poema Pedagógico.)

A crítica radical de Makarenko à teoria do desenvolvimento espontâneo, da não-intervenção do adulto, etc., não era uma critica preconcebida, mas que se desenvolveu através da experiência. É interessante fazer notar que Anton Semiônovitch, nos primeiros meses "inglórios” da Colônia Górki, buscou uma orientação, uma ajuda nos clássicos da pedagogia, de Rousseau a Pestalozzi. "Nunca lera em toda a minha vida tanta literatura pedagógica como no inverno de 1920” — diz ele nas primeiras páginas do Poema Pedagógico. Foi seu instinto de educador, sua necessidade de não permitir que a colônia nascente se transformasse em um "ninho de bandidos", que o levaram a tomar, cheio de ansiedade e de dúvidas, um caminho oposto; pressente que a crítica é feita em primeiro lugar pela realidade na ação pedagógica cotidiana e somente mais tarde, se torna consciente. O instinto de educador e o instinto de classe (Makarenko nasceu de família proletária, conservando em sua atividade os costumes, a mentalidade, a sólida objetividade próprias do operário) levaram-no a criticar com fatos a teoria da não-intervenção e da autodisciplina: intervindo com vigor, exigindo uma disciplina coletiva. O problema da disciplina é o que em primeiro lugar leva Makarenko às suas novas posições. Os partidários da não-intervenção do adulto procuravam escudar-se na palavra de ordem de Lênin: "disciplina consciente".

"O que significa ‘disciplina consciente’? — diz Makarenko —. Para qualquer pessoa de senso comum estas palavras encerram uma ideia simples, compreensível e praticamente indispensável; a disciplina deve ser acompanhada da compreensão de sua necessidade, utilidade, de seu caráter obrigatório, de seu sentido de classe. A teoria pedagógica dava-lhe sentido completamente diverso; a disciplina não devia surgir da experiência social nem da atividade prática e amistosa da coletividade, mas da consciência pura, do mero convencimento intelectualista, da emanação da alma, das ideias. Depois, os teóricos continuaram aprofundando e decidiram que a ‘disciplina consciente’ de nada serve, se provier da influência dos adultos; que, desse modo, deixava de ser uma disciplina verdadeiramente consciente para converter-se em disciplina forçada, em uma violência, que significaria propriamente, violentar a exalação da alma. Da mesma forma inútil e perigosa era toda espécie de organização de crianças, sendo imprescindível a auto-organização.” (Poema Pedagógico.)

Os adversários de Makarenko acusavam-no de voltar a introduzir no sistema de educação a disciplina de caserna da velha escola tzarista, o velho método autoritário militarista, de sargento. A acusação é ainda hoje repetida, é verdade que em tom mais brando, por um ou outro "pedólogo” ocidental. Mas é um projétil mal lançado, que não chega a ferir Makarenko. O fato de na colônia dirigida por Makarenko terem sido utilizados termos militares (destacamento", "chefes”, "conselhos de chefes") para indicar a forma organizativa do coletivo, ou usar-se o toque de corneta como sinal para as diversas tarefas, não significa de modo algum que existisse "espírito de caserna", "disciplina militar", mas simplesmente regularidade e vivacidade no ritmo de uma coletividade laboriosa. Ao contrário, Anton Semiônovitch tinha uma ideia profundamente democrática da disciplina, de modo algum autoritária. A oposição não está entre "autoridade" e "liberdade”, mas entre a concepção coletivista e a individualista. Na colônia de Makarenko, a disciplina surge da necessidade vital de desenvolvimento da coletividade, do objetivo a que esta se propõe, objetivo que se torna próprio de cada membro, dia a dia, porque, dia a dia, compreende que seu futuro está intimamente ligado ao desenvolvimento da coletividade. E uma disciplina democrática, que também se torna enérgica, e não exclui nem a crítica nem os castigos. Mas,

"um castigo só é benéfico quando surge das fileiras dos próprios companheiros e se apoia num julgamento correto e justo da coletividade”. (Poema Pedagógico.)

Nas narrações pedagógicas de Makarenko, vemos que os castigos mais duros para o castigado e pedagogicamente mais eficazes são os decretados pelo próprio coletivo de colonos, reunidos em assembleias gerais, quando o coletivo em seu conjunto já é sólido e consciente e sua "opinião pública” se tornou uma tradição. Trata-se de uma disciplina democrática que significa capacidade de obedecer e de dirigir, de ser organizado e organizador. O a!uno:

"deve ser capaz de subordinar-se ao companheiro e deve ser capaz de dar-lhe ordens... deve saber dominar-se e influenciar os demais”.

Para Makarenko, no entanto, a democracia do coletivo e a correspondente disciplina democrática não são exercícios puros e artificiais. Não se trata de "brincar de democracia", de exercitar artificialmente a disciplina e a responsabilidade. Os órgãos do coletivo na Colônia Górki ou na Comuna Dzerjinski nada têm que ver com os artificiosos "cargos públicos” imaginários de certas cidades ou repúblicas infantis. A organização do coletivo vem sempre ligada às exigências de uma tarefa concreta; a disciplina do coletivo é sempre uma disciplina de trabalho, de luta e de superação.

O coletivo está sempre no centro da experiência e do pensamento de Makarenko. O coletivo não é um conjunto de pessoas, mas um organismo complexo, que possui sua personalidade, sua tradição, sua história; que tem suas próprias leis de formação e de desenvolvimento. O objetivo imediato da ação educativa não é o indivíduo em particular, mas o coletivo, tenha este o nome de colônia ou de classe escolar. Cada indivíduo é educado com o coletivo e através dele. A relação entre o indivíduo e a coletividade, entre o coletivo e seu núcleo central — composto pelos elementos mais ativos, capazes e tenazes, — a relação entre o coletivo e o adulto (professor, capataz, administrador, etc.): eis alguns dos problemas fundamentais que Makarenko enfrenta e resolve, expondo-os com maravilhosa vivacidade em suas narrativas pedagógicas e com clareza científica nos estudos e artigos dos seus últimos anos de vida. É matéria por demais rica para poder ser comprimida em uma intervenção deste Encontro; limitar-nos-emos, portanto, a indicar dois únicos pontos: Um é a necessidade de perspectivas amplas e felizes para o coletivo e para todos os seus membros. O outro é a necessidade de caminhar sempre, de não se conformar com o que já se obteve, de fixar continuamente novas exigências: isto é, o perene movimento para frente, como lei fundamental do desenvolvimento do coletivo.

"O homem é incapaz de viver no mundo sem perspectivas de felicidade no futuro. O verdadeiro estímulo da vida humana é a felicidade do amanhã. Na técnica pedagógica esta felicidade do amanhã é um dos objetivos mais importantes do trabalho. Em primeiro lugar como uma realidade. Em segundo lugar, é preciso marchar-se insistentemente para a realização das mais simples facetas da felicidade, até chegar às mais complexas e importantes do ponto de vista humano (...) Educar um homem significa abrir-lhe caminhos de perspectiva, pelos quais se distribui sua felicidade futura. Sobre este importante trabalho, pode-se escrever uma verdadeira metódica. Consiste na organização de novas perspectivas, na utilização das que já se possui e no planejamento paulatino de outras mais valiosas. Pode-se começar por uma boa refeição, por um espetáculo de circo, ou com a limpeza do tanque, mas é sempre preciso despertar para a vida e dilatar gradualmente as perspectivas de toda a coletividade, até conseguir que alcancem as de todo o país.” Com efeito: "O que estamos acostumados a admirar principalmente no homem, é o valor e a beleza... Quanto mais ampla é a coletividade cujas perspectivas são para o homem perspectivas pessoais, tanto mais elevado e belo será o resultado.” (Poema Pedagógico.)

Assim é a educação do coletivo através da contínua exigência do movimento para a frente, da luta e da superação. É pois, uma pedagogia exigente, em uma sociedade que exige muito do homem, justamente porque respeita e estima profundamente o homem. Dois exemplos nos explicarão, melhor que muitas palavras, este princípio fundamental não só da escola, como também da sociedade socialista. Quando o coletivo da Colônia Górki se firmou e tornou-se consciente, disciplinado e laborioso, Makarenko não se deteve nos resultados obtidos. Expõe a seus colonos a exigência de dar o máximo esforço para o desenvolvimento e a difusão da cultura entre os habitantes da cidade vizinha, e indica o meio: o teatro. Renunciando ao descanso dominical, renunciando todas as noites a algumas horas de sono, os jovens gorkianos se transformaram em atores, cenógrafos, eletricistas, carpinteiros e costureiros do teatro da Colônia Górki. Todos os domingos, durante meses e meses, diante de um atento público de aldeões muitos dos quais vinham de longe, ávidos de horizontes mais amplos, de uma vida civilizada e culta, — Makarenko e seus colonos ofereciam os espetáculos teatrais, renovando as representações cada semana, porque o público queria sempre coisas novas. Apresentavam ora obras dos clássicos do teatro russo democrático do século XIX, ora dramas e comédias escritos pelo próprio Makarenko, nos seus pequenos intervalos livres. É uma nova tarefa, um pesado compromisso que o coletivo assume. Mas também é um novo passo para a frente, uma nova e importantíssima etapa do "caminho para a vida" que transformará os meninos recolhidos na rua — pequenos ladrões, desordeiros, salteadores — em laboriosos cidadãos de vanguarda.

Mais tarde, quando o ritmo da vida na Colônia Górki é normalmente harmonioso, Makarenko se preocupa com o estado de desorganização, de quase dissolução, de uma vizinha colônia de crianças abandonadas, a Colônia Kuriaj. Anton Semiônovitch expõe a situação a seus colonos e propõe que os gorkianos deixem ao kolkhoz da aldeia os campos de trabalho tornados fecundos, as oficinas de conserto, os depósitos, o rico conjunto da Colônia Górki e recomecem novamente, enfrentando o compromisso da reeducação das crianças abandonadas, "marchando para a conquista de Kuriaj”. Os gorkianos não vacilam: entregam aos camponeses magníficas terras e um rico instrumental de trabalho, fruto de muitos anos de fadigas e se mudam para Kuriaj.

"A conquista de Kuriaj" é um magnífico triunfo; e não só porque se recuperam dezenas e dezenas de crianças transviadas, como também porque constitui um amplo salto dos gorkianos para a frente. Makarenko, dissemos, exigia muito dos colonos, porque os respeitava profundamente: e m está, como também já se disse, a dialética da pedagogia soviética, sua lei de movimento.

Em 1955, é publicada a íntegra do Poema Pedagógico, no mesmo ano em que Makarenko deixa a direção da Comuna Dzerjinski para dedicar-se inteiramente a suas atividades de escritor, orador, organizador da pedagogia, de educador dos educadores e pais. Inicia-se uma nova etapa na vida de Makarenko: uma etapa breve mais intensa, que a morte interrompe quando Anton Semiônovitch atingia a plena maturidade (1939). Poderia parecer que no período de que falamos, isto é, nos quinze anos que vão de 1920 a 1935, (o período da Colônia Górki e da Comuna Dzerjinski), Makarenko não passasse de um genial especialista em menores delinquentes, em crianças abandonadas, em adolescentes difíceis ou transviados. Este ponto merece um breve parêntese. A experiência pedagógica viva tinha feito de Makarenko um decidido, adversário, como já vimos, da teoria da liberdade, da não-intervenção e do mito do desenvolvimento natural. Essa experiência viva de quinze anos entre crianças consideradas difíceis (ladrões, e prostitutas, desordeiros e ratoneiros) fez de Makarenko um furibundo opositor do determinismo biológico e da escola de criminologia positivista de Lombroso e Ferri.

"É muito possível que o método de trabalho com crianças antes vagabundas deva diferir em certos aspectos do método para as crianças normais. Mas, admitindo esta possibilidade, não estou convencido quanto às dessemelhanças do resto. E por que não o estou? Porque, seguindo a mesma lógica de meu trabalho, se eu partisse do fato de que eles tinham violado as leis ou eram de procedência vagabunda antes de serem presos, e tivesse elaborado meu método na base de uma supervalorização de seus reais ou hipotéticos caracteres criminais, ter-me-ia afastado de nossa ideologia soviética para aderir às teorias de Lombroso. Por isso não tive a tentação de criar um método pedagógico baseado na opinião de que o fato de cometer um determinado delito produz uma tal deformação do caráter infantil que torna habitual nele o estado de delinquência. Isto provém de minha confiança no homem, ou melhor ainda, de meu amor pelo homem.”

Esta posição de Makarenko já foi qualificada, justamente, aliás, como otimismo pedagógico. No trabalho pedagógico os resíduos humanos devem ser reduzidos a zero, era a palavra de ordem preferida por Anton Semiônovilch: aquele otimismo pedagógico significa então, confiança no homem e na capacidade transformadora da ciência e da ação educativa. Alias, a fé de Makarenko queria dizer por acaso que na tarefa educativa não se encontrarão crianças incorrigíveis ou insanas, com taras biológicas ou sociais? Nunca encontrou Anton Semionovitch nos 32 anos de seu trabalho educativo, crianças irrecuperáveis? Não,

"não encontrei — diz Makarenko aos educadores soviéticos. — Além disso, estou profundamente convicto de que daqui a quinze anos, nossa pedagogia e vós mesmos, com vossas forças frescas e vossa teoria bem elaborada, agradecereis o não admitirmos a existência de crianças incorrigíveis”.

Foi assim que, em sua colônia para menores delinquentes e crianças abandonadas, Makarenko se comportou como se estivessem diante de si crianças normais. A ação educativa de Makarenko demonstrou que na verdade eram normais jovens que um discípulo da escola criminalista "positiva" teria classificado como delinquentes por conformação craniana e taras hereditárias. Isto fez com que as experiências da Colônia Górki e da Comuna Dzerjinski servissem de base para enfrentar o problema geral da educação.

"Hoje a ciência pedagógica já é mais fácil. Longe, muito longe está meu primeiro dia gorkiano, cheio de vergonha e impotência, assemelhando-se-me a um quadro pequenino visto através da janelinha de um sótão. Agora já é mais fácil. Em muitos lugares da União Soviética já se tornaram sólidos os laços de uma séria obra pedagógica, e o Partido dirige a última batalha contra os restos de uma infância desafortunada e falida. E talvez, muito em breve se deixe de escrever ‘poemas pedagógicos’ em nosso país, para se escrever um livro simples e concreto: ‘a metodologia da educação comunista’.”

Estas são as palavras com que Makarenko termina o Poema Pedagógico e elas selam todo o primeiro período, tão difícil, não só da atividade de Makarenko, como, também do desenvolvimento da escola soviética.

1936. Ano da Constituição staliniana, que consagra a vitória da construção do socialismo.

"A Constituição staliniana é um documento único na história do mundo, que tem o caráter de passaporte histórico da maior das criações humanas: uma nova sociedade humana. E somente com o surgimento desta sociedade é possível falar da solução do problema sociedade e personalidade”

diz Makarenko, comentando a Constituição de 1936. Toda a atividade escolar e pedagógica se desenvolve agora numa solida base material e humana. Uma vez liquidado o analfabetismo e garantida a instrução primária gratuita e obrigatória(2), são formados, aos milhares, quadros pedagógicos correspondentes aos primeiros graus. Isto constitui um salto qualitativo da escola soviética, da sociedade em movimento para um novo e grandioso objetivo: a construção do comunismo. É também um salto qualitativo na atividade pessoal de Makarenko. Não é mais a dura luta contra os representantes do Olimpo pedagógico de um educador isolado, encerrado em seu pequeno mundo educativo, mas a plena afirmação pública, a possibilidade de ser educador dos educadores de toda a União. Não é mais o fatigante caminhar nas trevas da teoria pedagógica, em meio à incerteza e à solidão; mas a completa clareza do conhecimento teórico, baseado em riquíssima experiência pessoal, na experiência de toda a escola soviética em seu primeiro período de desenvolvimento, tumultuoso e heroico.

Nasce para Makarenko a possibilidade de enfrentar a pedagogia como ciência e técnica, não só como pesquisa, arrojo e poesia.

"O homem continuava, para mim, homem com toda a sua complexidade, riqueza e beleza. Mas, parecia-me necessário fazer com que se usassem medidas exatas e se comportasse diante dele com o máximo sentido de responsabilidade e consciência, não mais enfrentando sua educação com métodos primitivos e histéricos. Esta profunda analogia entre produção e educação não significava para mim envilecer o homem: ao contrário, esta ideia me enchia de particular respeito humano, uma vez que o apreço maior e complicado necessita atenção respeitosa.”

Entenda-se bem: estamos muito distantes da psicometria, do positivismo psicológico, da psicologia de laboratório, que Makarenko sempre combatia. O paralelo entre a fabrica e a escola é uma comparação entre uma atividade criadora e outra atividade criadora. Como a experiência da fábrica faz surgir uma técnica que permite diminuir os resíduos, que dá um melhor produto, do mesmo modo a experiência educativa deve dar vida a uma técnica pedagógica capaz de enfrentar a ação em bases sólidas, sistemáticas e seguras.

"Muitos detalhes da personalidade do homem e de sua conduta podem ser obtidos com um trabalho comum, em série, sendo necessário para isto um trabalho preciso de maquinaria, com penosos esforços de atenção e exatidão. Em outros é necessário um trabalho pessoal e delicado por parte de um educador altamente qualificado, de um homem hábil e observador. Para muitas particularidades se empregam complicados dispositivos especiais que reclamam uma grande capacidade inventiva, e alto voo de imaginação do gênio humano. Mas para todas e cada uma das partes do trabalho do educador em toda a sua complexidade é necessário uma ciência particular.”

Em 1935 Makarenko iniciará o programa exposto no final do Poema Pedagógico, escrevendo o livro Metodologia da Organização no Processo Educativo. Prossegui-lo-á intensamente, até as vésperas de sua morte. Não nos podemos deter nesta última e importantíssima fase de sua obra e de seu pensamento educativo. Deveremos contentar-nos em remeter nossos ouvintes à leitura do livro Conselhos aos Pais, que representa indubitavelmente a obra mais madura de Anton Semiônovitch.

A personalidade de Makarenko está, por certo, inteiramente espelhada nesta última obra; mas, eu, educador italiano, filho de educadores, ligado por tradição familiar à luta heroica de nossos professores contra o analfabetismo, a degradação cultural e social de nosso povo, não posso deixar de sentir como particularmente próxima a figura do jovem mestre que, naquele longínquo mês de setembro de 1920, sozinho e pobre, abandonou a cidade para combater na "terceira frente": a frente da escola e do livro.

"Na terceira frente, ergueu-se firmemente (na terceira frente do ensino, na frente do livro) o mestre; como um heroico soldado, foi também combatente de vanguarda. Também ele se enregelou na trincheira da escola; com sua mochila às costas, levando como arma o livro, foi para as aldeias, percorrendo milhas e milhas descalço e seminu. Com um pedaço de pão, uma cebola crua, sentindo assobiar os spranels, combateu, lutou com toda sua inteligência, conduzindo ao ataque uma multidão de rapazes.”

Este trecho de Maiakóvski nos traz espontaneamente à memória os primeiros e difíceis anos da atividade de Anton Semiônovitch. E parecem escritos, ao mesmo tempo, para os laboriosos apóstolos da escola italiana, os quais, "descalços e seminus, com um pedaço de pão com a mochila às costas”, sozinhos, mal pagos, abandonados a suas próprias forças, mantêm heroicamente sua trincheira avançada. Reverenciando Makarenko, reverenciando os homens que desde os alhores da Revolução de Outubro fundiram e caldearam suas vidas na ação e na construção educadora, reverenciamos ao mesmo tempo a maravilhosa força viva que trabalha na base de nossa escola. Não cremos que existam diferenças entre os homens; acreditamos que também a escola italiana contém imensas energias. A diferença não está nos homens, mas na sociedade. Enquanto a Revolução de Outubro libertou a energia do povo trabalhador e da escola russa, o Poder soviético, entre as mil e uma dificuldades iniciais, dedicou à escola o máximo de seus esforços, para prevenir os grandiosos resultados atuais, um regime conservador e restritivo sufoca ainda a sociedade e a escola italiana, comprimindo e deprimindo o arrojo de milhares de seus apóstolos e obreiros.

Mas, as nossas energias, como as daquele povo e daqueles educadores, poderão libertar-se e expandir em uma sociedade baseada no trabalho; chegará para a Itália, sem dúvida, o dia em que nós não mais precisaremos encarar os mesmos problemas que afligiram nossos pais (o analfabetismo e a miséria de escolas) e poderemos construir unidos uma sólida e definitiva base para a escola italiana, sobre a qual novas gerações poderão apoiar-se para edificar e elevar-se.

Lucio Lombardo Radice

Palestra pronunciada em dezembro de 1951 no
Encontro Sobre Escola e Pedagogia Soviéticas.
Publicado no volume Seugla e Pedagogia nell'URSS,
ed. de Italia-URSS.


Notas de rodapé:

(1) Título do II capitulo do Poema Pedagógico. vol. 1. (retornar ao texto)

(2) O sexto plano quinquenal estabelece a extenso do ensino médio (dez anos) obrigatório e gratuito, a toda a União Soviética, bem como medidas para intensificar a passagem ao ensino politécnico obrigatório. Além disso, foram suprimidas as taxas escolares que ainda subsistiam nos últimos anos do ensino secundário e no ensino superior. (N. da Ed. Bras.) (retornar ao texto)

Inclusão 26/09/2012