Introdução à Política I

Fernando Luso Soares


XI — A Crise Geral do Capitalismo, O Fascismo e a Demotecnocracia


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É evidente a razão de ser deste título. O programa oficial não sistematiza as três questões agora postas («crise geral do capitalismo», «fascismo» e «demotecnocracia») num só corpo. Porém, na medida em que o fascismo e a demotecnocracia nos surgem como processos de que a burguesia se tem servido para tentar salvar o capitalismo em crise, resulta compreensível a reunião destes três pontos no texto conjunto do presente capítulo.

Falando da crise geral do capitalismo, parece conveniente começarmos por ver, com um pouco mais de desenvolvimento, o que é o capitalismo.

Trata-se de um termo de certo modo recente, mas usado com sentidos diferentes. Ele figura, por exemplo, na «Enciclopédia», de Diderot, para definir o estado do homem rico; reaparece depois, por volta de 1840, expressando o sistema de capitalização; mas é Louis Blanc, em «A Organização do Trabalho», quem lhe empresta o sentido actual:

— «...aquilo a que chamarei capitalismo significa a apropriação do capital por uns com a exclusão de outros»;

e se posteriormente Blanqui e Proudhon ainda utilizaram o termo para designar o conjunto dos capitalistas, em boa verdade ele só adquiriu o seu significado realmente moderno depois da década de 1870-80 e da primeira tradução francesa de «O Capital», de Karl Marx. De então para cá, a palavra capitalismo passou a designar todo o sistema económico em que lei fundamental é a procura sistemática da mais-valia, mercê da exploração dos operários pelos detentores dos meios de produção e troca, tudo com vista à transformação de uma fracção importante dessa mais-valia em capital-adicional, por seu turno fonte de novas mais-valias.

O capitalismo representa, como se sabe, a estrutura económica da democracia burguesa. E teve base teórica no liberalismo económico, cuja tese fundamental consistiu na afirmação da existência de uma ordem natural que tenderia a estabelecer-se espontaneamente na economia. O principal motor da actividade humana seria a procura das vantagens pessoais, bastando deixarem defrontar-se os interesses particulares para se estabelecer o equilíbrio global, numa solução harmoniosa dos homens e dos capitais. O liberalismo económico ligou-se, enfim, à fase do capitalismo concorrencial:— pretendeu-se reconhecer, ao indivíduo e à empresa, o máximo de liberdades, facto de que proveio a expressão «livre concorrência», não devendo, nem a intervenção do Estado nem a intervenção de quaisquer grupos, entravar a sua acção.

Em fins do século XIX, entrou o capitalismo na última etapa do seu desenvolvimento — a do imperialismo. Este caracteriza-se pela concentração do capital financeiro nas mãos de um punhado de monopolistas, facto que lhes assegura o domínio sobre a economia, relativamente à política dos seus países e do mundo. Deste modo, o capitalismo imperialista liquidou as características do seu antecessor (do capitalismo concorrencial) as quais eram fundamentalmente a livre competição entre as empresas, a fixação dos preços pela lei da oferta e da procura e o livre acesso de novos produtores ao mercado. Mas o fenómeno da concentração capitalista, definido o imperialismo como o último estádio do capitalismo, deu lugar às empresas gigantes (e aos agrupamentos de empresas menores) com vista ao domínio dos ramos de produção e ao «controle» dos preços e das quantidades produzidas, e ainda ao condicionamento da procura por parte dos próprios consumidores.

Nos sistemas económicos capitalistas, a unidade básica da produção é a empresa. Esta constitui o organismo que concentra e combina os factores de produção com o objectivo de realizar o máximo de lucro, pela venda de bens e de serviços no mercado. A verdade é que a característica fundamental do capitalismo veio residindo, em virtude de tudo quanto ficou dito, no desequilíbrio ou descontrole da produção. Daí resultou a chamada crise geral do capitalismo.

Os teóricos e os ideólogos burgueses, quando defrontam os factores mais agudos desta crise geral, pretendem que tais factores, determináveis, em cada momento, só constituem crises parciais do sistema capitalista, desde logo remediáveis por determinadas acções políticas ou técnicas. Quer dizer: — os ideólogos burgueses, na medida em que pretendem constituir o capitalismo o último estádio social (não havendo, pois, de lhe suceder o socialismo), recusam-se a aceitar a verificação de uma crise total-geral do respectivo sistema. Mas ela existe — crise irreversível do sistema mundial (capitalista) englobando a economia, a política e a ideologia. Crise a que corolariamente corresponde, a vitória progressiva do regime socialista. Mas crise que tem alguns traços característicos e se processa em várias etapas.

Poderemos considerar traços característicos da crise geral do capitalismo:

  1. a divisão do mundo em dois sistemas — o capitalista e o socialista — e a luta entre eles;
  2. a ajudicação das contradições entre a burguesia e o proletariado nos países capitalistas;
  3. a crise do sistema colonial do imperialismo;
  4. e o agravamento constante e progressivo do problema dos mercados, dos preços e da inflação.

Mas por outro lado poderemos ainda dizer que são três as etapas fundamentais da referida crise geral:

  1. no termo da guerra imperialista mundial de 1914-19, o êxito da revolução soviética;
  2. como resultado da guerra imperialista de 1939, proliferação europeia, e asiática, das democracias populares;
  3. a partir da última década de 50, a quebra dos sistemas coloniais em que se estribava economicamente grande parte das estruturas imperialistas.

Esta terceira etapa reveste-se para nós, portugueses, de significado particular já que ela veio a consumar-se, após o 25 de Abril de 1974, com o início de uma intensa política de descolonização.

É evidente, di-lo-emos ainda, que a crise geral do capitalismo traduz as grandes contradições do sistema. E a sua contradição fundamental, enquanto economia desenvolvida, é a que se verifica entre o carácter eminentemente social da produção e a egoísta e individualista forma privada e exploradora da apropriação dos meios produtivos. No jogo das contradições internas, a busca do lucro — que é uma das razões de ser fundamentais do capitalismo — gera a anarquia daquela produção e esta gera, por seu turno, as superproduções e as crises económicas decorrentes do limitado poder de compra da massa assalariada.

Perante esta situação de crise geral, os ideólogos burgueses têm sentido repetidamente o caminho a que levam as contradições antagónicas entre opressores e oprimidos, contradições inconciliáveis entre exploradores e explorados. Eles sabem que tais contradições só podem desaparecer quando a classe capitalista fôr liquidada, isto é, quando os capitalistas forem privados dos meios de produção e do poder político. Por isso, as ideologias burguesas tratam de procurar processos que as salvem dos resultados (fatais para a respectiva classe) inerentes à crise geral de que estamos falando. Eis aí o lugar em que se inserem os dois mais característicos processos de «salvamento» que a burguesia tem ensaiado: — o fascismo e a demotecnocracia.

Fascismo é palavra de origem italiana. Deriva de «fascio» — o feixe de varas, distintivo próprio dos cônsules da Roma antiga. Do ponto de vista do seu conteúdo, o fascismo é a forma mais reaccionária, abertamente terrorista, da ditadura do capital financeiro. Esta ditadura é evidentemente instaurada pela burguesia imperialista para prolongar o seu domínio.

O recurso ao fascismo prova que a alta burguesia já não confia muito no conservar o poder político através da utilização dos meios burgueses ordinários — isto é, através dos meios da democracia parlamentar. Precisamente por isso o fascismo foge ao diálogo e à polémica com as forças adversas e antes as reprime pela força no domínio ideológico conduzindo ao mais negro obscurantismo. Ele significa irracionalidade, chauvinismo, racismo extremo.

Na verdade, a sua maneira de pensar anti-racionalista quadra bem com o desejo que aos fascistas anima de não fixarem frontalmente um «programa», o qual posteriormente realizariam por intermédio do exercício no poder. É muito típico do fascismo procurar primeiro a conquista do poder político, para só depois pensar em programas — facto que poderia levar a dizer-se que o fascismo constitui a ideologia da ausência de ideologia. Aliás sabe-se que em Itália, por exemplo, o programa do fascismo antes da sua subida ao poder se resumia no grito «Itália a noi!». E não é sem razão já se ter dito que, depois da sua transformação em Estado corporativo, não constitui o fascismo, propriamente, uma forma política estatal assente sobre si mesma, antes e apenas um instrumento constituído para o exercício de uma ditadura.

Se a unidade da teoria fascista reside na violência das suas soluções (fascismo significa interdição de liberdades cívicas, quase eliminação dos direitos dos trabalhadores, combate às organizações intelectuais progressistas), por outro lado o fascismo tem apresentado, do ponto de vista nacional, várias formas específicas de organização. As mais conhecidas foram a italiana, o nacional-socialismo alemão, o franquismo espanhol, o corporativismo português.

Em «Apostilha Critica ao Projecto do Código Civil» (a págs. 42), José Hermano Saraiva — político e ideólogo do fascismo português — pretendeu argumentar e sustentar que o corporativismo não era fascista. Neste sentido ele escreveu:

«...não se verifica em Portugal nem a perspectiva ideológica nem o condicionalismo legal que na Itália poude justificar a solução referida. O corporativismo italiano era um corporativismo de Estado e pretendia exprimir uma concepção total de vida. A norma corporativa estava, sob o ponto de vista do direito positivo, quase no mesmo plano da lei. Emanava do Estado. O sistema corporativo português tem outra índole. É um corporativismo de associação, e a sua normatividade é subordinada e limitada a domínios próprios. Por outro lado, não aspira a construir uma concepção total da vida; o Estado reconhece que não tem de interferir em tal esfera, e nesse respeito vai o reconhecimento dos valores mais altos do espiritualismo cristão, que são os que efectivamente definem o nosso sentido da existência».

Esta distinção peca desde logo por se situar a nível estritamente jurídico. Ela é consequência de um exame formal que abstrai das razões e dos fundamentos políticos e económicos capazes de mostrar a identidade essencial entre o fascismo e o corporativismo. Mesmo assim, diremos que até nesse plano estritamente jurídico mostra a conjuntura da lei portuguesa que também, à semelhança do que acontecera com a italiana, a norma corporativa tem força perfeitamente equiparável à lei geral. Basta, para vermos isso, ler o n.° 1 do art.° 1.° do código civil de 1967, onde ainda hoje se declara que «são fontes imediatas de direito as leis e as normas corporativas».

Está-se a verificar, entre nós, uma situação análoga à que se deu em Itália quando da queda do fascismo, durante a última guerra mundial. A extinção da ordem jurídica corporativa italiana, operada pelo decreto de 23/11/1944, não foi acompanhada da expressa revogação daqueles preceitos que, como o do nosso código civil, reconheciam as normas corporativas. Isso veio a estabelecer incertezas quanto à sua vigência, dividindo-se a doutrina entre os que sustentavam a revogação implícita e os que sustentavam a vigência transitória (Passareli, «Durata Transitória delle Norme Corporative» em «Saggi di Diritto Civile», Nápoles, 1961). E, com efeito, vivemos hoje esta situação em Portugal: — uma das primeiras leis da Junta de Salvação Nacional, após o 25 de Abril, extinguiu a Câmara Corporativa; diplomas sucessivos têm eliminado da ordem jurídica portuguesa vários órgãos das instituições corporativas; todavia, ainda ninguém se lembrou de revogar o n.° 1 do art.° 1.° do código civil, o qual continua a declarar fonte de direito português as próprias normas corporativas.

Dissemos que o fascismo se caracteriza como sistema político totalitário — aquele em que o Estado é confundido com o todo da realidade social. De acordo com semelhante ideologia o indivíduo deve fundir-se nesse todo (o Estado), de que constitui apenas uma parcela. A fórmula de Mussolini era esta: — «Tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado» — fórmula que manteve aproximação evidente com a receita portuguesa do Estado Novo: — «Tudo pela Nação, nada contra a Nação».

A ideologia totalitária do fascismo teve (e tem) manifestações específicas que já referimos no capítulo anterior. Por exemplo: — o racismo e o clericalismo. Cabe agora referirmos também o belicismo. A este propósito, todavia, importa fazer uma ressalva.

Sabe-se que em virtude do desenvolvimento económico e político desigual dos países capitalistas, principalmente na época do imperialismo, a luta pelos mercados e fontes de matérias-primas leva os Estados a guerras desvastadoras, como o primeiro conflito mundial de 1914-1919, que desembocou na revolução de Outubro de 1917 e deu início à crise geral do sistema capitalista. E tendo-se a consciência de que o fascismo é um sistema de violência destinado a sustentar, no plano prático, a exploração imperialista e monopolista, há quem declare, como princípio, que o mesmo vaie por essência a guerra. Porém, apesar de ele agudizar as contradições que resultam da desigualdade de desenvolvimento nos vários Estados capitalistas, não é de modo algum exacta esta tese. «O fascismo é a guerra» — diz-se. Mas por muito que isso possa admirar as pessoas, repetiremos que tal afirmação é verdadeiramente reaccionária. Diria antes, astuciosamente reaccionária. E é facil explicar porquê.

Bela Kun, em «L’Internationale Communiste» de 15/8/1933, já denunciava o que esta frase tem efectivamente de equívoco e astucioso. E escrevia:

«A afirmação de que o fascismo, uma das formas políticas de domínio da burguesia, é a guerra, não tem outro fim que libertar de toda a responsabilidade um dos grupos de potências imperialistas, as quais mascaram os seus preceptivos de guerra com aparências democráticas e frases pacifistas. O velho «slogan» do antimilitarismo marxista, o da luta revolucionária contra a guerra imperialista, afirmava coisa bem diferente. Afirmava: —«O capitalismo é a guerra». E, com efeito, é esta a teoria certa, rigorosamente exacta. Na verdade, o fascismo não é mais do que um dos instrumentos de domínio de que se serve o capitalismo. Este, sim, constitui a causa dos males sociais, entre eles o da guerra».

Uma das tendências irrefreáveis e mais características do fascismo reside ainda na mitificação do chefe. Esta, de um modo geral, produz-se no seio das ideologias conservadoras. Os partidos conservadores procuram, com efeito, basear-se numa construção ideológica irracionalista de base: — afirmam que não são os povos quem exige alguém para seu chefe, já que as massas se limitam a receber o chefe que lhes é dado. O fascismo tende assim a considerar a autoridade como exercida por um condutor de tipo carismático, o qual se apresenta como libertador, salvador ou redentor.

Carisma é palavra oriunda do grego e significa «graça» ou «dom excepcional». E foi Max Weber quem formulou a noção de chefe carismático: — o chefe convencido de ter uma missão superior, exercendo a autoridade como por virtude de participar do «sagrado». Neste sentido, foram chefes fascistas de índole carismática, apresentando-se aos olhos populares como únicos e insubstituíveis salvadores do povo, um Mussolini em Itália, um Hitler na Alemanha, um Franco em Espanha (este continua a ser) e um Salazar em Portugal.

Como última característica do fascismo aí se nos apresenta o seu obstinado e obcessivo anticomunismo. Basicamente, actuando por meio de toda a espécie de calúnias contra o regime socialista, não hesitando perante a falsificação de dados políticos, adulterando constantemente os objectivos dos partidos, mistificando os princípios da doutrina marxista-leninista. No campo da economia o anticomunismo nega, por seu turno, o carácter socialista do sistema económico da U.R.S.S. e dos países de democracia popular, no intuito de apresentá-lo como nada mais sendo que uma economia capitalista do Estado; também no campo político o anticomunismo procede a invenções caluniosas sobre um pretenso totalitarismo soviético; no campo ideológico alega, de má fé, que o comunismo standartiza o pensamento; e, finalmente, no campo sociológico sustenta e pretexta que o comunismo desumaniza as relações humanas, transformando o homem em simples instrumento de linhas programáticas. Mas como expressão das mais evidentes de uma acção fascista ou anti-democrática, o anticomunismo não serve senão as intenções das forças reaccionárias, ajudando-as a conservar o domínio do capital sobre os trabalhadores.

Ponhamos, entretanto, ponto final no desenho do fascismo. Como resulta do tema deste capítulo, outra via tem ainda o capitalismo procurado utilizar para fugir às consequências da sua crise. Enquanto o fascismo se mostra como um processo prático da violência, da ditadura do capital, a demotecnocracia significa agora e antes o recurso à técnica, na esperança de que esta possa resolver ou eliminar a referida crise.

À demotecnocracia já ironicamente lhe chamaram a democracia sem povo. O capitalismo, hostil por natureza a uma democratização do poder económico, acomoda-se à tecnocracia. E esta, defendendo uma ideologia de apoliticismo, favorece consideravelmente e de forma óbvia os fins e os interesses dos capitalistas. Quanto menos politizadas estiverem as massas trabalhadoras...

«Demotecnocracia» é então uma palavra que poderá significar governo dos técnicos em favor do povo. Há que se falar no povo para se manter o tom. Mas o progresso do tecnicismo das decisões tem, como corolário, o perigo efectivo de que a tecnocracia se mostre uma nova via, a par do fascismo, tendente à anulação da democracia. Jean-Yves Calvez, a págs. 275 da sua «Introdução à Vida Política», publicada entre nós por Morais Editores, leva-nos à conclusão de que a demotecnocracia é o tecnicismo implantado no universo político. Ela é bem o reaccionarismo. A conservação da ditadura do capital. Sabe-se que os tecnocratas — adeptos de uma corrente reaccionária em Sociologia (a tecnocracia) — professam a supremacia da técnica sobre a Economia e sobre a Política. Para impedirem a formação socialista da sociedade, eles intentam curar o capitalismo das suas chagas contraditórias, colocando a direcção de toda a vida económica e a administração do Estado nas mãos de técnicos, isto é, dos chefes da indústria. A crítica demagógica e hipócrita do capitalismo, realizada pelos tecnocratas, dissimula-lhes o desejo de justificarem a subordinação directa do aparelho de Estado aos monopólios industriais, cujos dirigentes ocupam as posições-chave nos Estados imperialistas.

A demotecnocracia assenta na chamada tecnoestrutura empresarial, uma nova situação da direcção da grande empresa analisada pelo professor de Harvard, J.K. Galbraith, autor de «O Novo Estado Industrial», «Capitalismo Americano» e «A Sociedade da Abundância».

A tecnoestrutura é algo de mais complexo que o empresariato individual e não se confunde com a chamada «administração da empresa», a qual aliás pode ter a sua «assistência técnica» e que reune periodicamente para deliberar e marcar a política dessa mesma empresa. A tecnoestrutura transcende o conjunto dos órgãos sociais da empresa comercial e industrial. Ela é uma «máquina» de recepção e elaboração de dados, de estudos de mercado, de recursos financeiros para negociações com o poder político e com os sindicatos, enfim, de selecção dos campos da investigação científica e tecnológica. Toda esta gama de elementos é dinamizada por «comissões técnicas de peritos» às quais as empresas directamente encomendam decisões relativas às várias divisões de carácter sectorial e espacial. A tecnoestrutura, em correspondência óbvia com a exploração económica imperialista, actua até à escala internacional.

Tem a demotecnocracia as suas experiências principais no neo-capitalismo norte-americano e nas sociais-democracias europeias. Todavia, nunca é de mais repetir que ela — como forma ditatorial dos técnicos—se revela de todo incompatível com a verdadeira democracia, mercê da sua indeclinável propensão para o absolutismo e para o autoritarismo. Com a democracia burguesa já pouco tem a ver, quanto mais com as democracias populares!...

Não quero, porém, encerrar este capítulo sem fazer uma chamada de atenção que me parece importantíssima.

Quem analisar a história do nosso meio século observa que, no momento em que o sindicalismo operário conquistou posições fortes, escapou-se-lhe das mãos o fruto da sua vitória. E porquê? Muito simplesmente por um motivo que nos deve merecer muita reflexão, designadamente no momento em que se procura um Portugal novo, liberto da opressão do poder económico. A simples consciencialização política por parte das classes trabalhadoras, sendo já bastante, não é, no entanto, o suficiente. As decisões económicas tornaram-se hoje altamente técnicas e científicas. Sendo assim, para se poder assegurar um controle popular sobre os tecnocratas, preciso é que as classes trabalhadoras se munam de conhecimentos que lhes tornem inteligíveis os problemas das modernas técnicas e das questões económicas. E que tenham a vigilância necessária, constante, sobre aqueles técnicos. Bloch-Lainé escreveria, a este propósito, que os trabalhadores têm de entender e discutir as posições dos técnicos:

— «Se acaso os técnicos disserem ao povo «deixem-nos decidir que vós não nos podeis compreender», o povo está no direito de duvidar da sua aptidão para decidirem, isto na medida em que eles, os técnicos, não são capazes de se fazer compreender».

A demotecnocracia, a tal mirífica democracia sem povo — resposta burguesa à crise do capitalismo após a primeira guerra mundial, e agente do capital com os seus «milagres económicos» de após a segunda — só representou, ao nível social, uma progressiva desumanização. Uma democracia de técnicos verte-se em aridez social de competências geométricas e laboratoriais. Daí a revolta contra a era tecnológica avançada (ou pós-industrial, como certos sociólogos lhe chamam). Com efeito, a demotecnocracia tem sido, a nível puramente social e político, contestada pelos jovens e pelos intelectuais não só da América, mas também da Europa. Porém, no campo económico a verdadeira contestação da demotecnocracia é operada através da planificação socialista, de que vamos falar no próximo capítulo.

continua>>>


Inclusão 15/12/2014