Carta aos Operários Americanos

V. I. Lénine

22 de Agosto de 1918

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Publicado: Pravda, n° 178, 22 de Agosto de 1918
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Edições "Avante!", 1977, t2, pp 669-679.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.37, pp. 48-64.
Transcrição e HTML: Manuel Gouveia
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" — Edições Progresso Lisboa — Moscovo.

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Camaradas! Um bolchevique russo que participou na revolução de 1905 e depois passou muitos anos no vosso país, propôs-me encarregar-se da entrega da minha carta para vós(N333). Aceitei a sua proposta com prazer tanto maior quanto é certo que os proletários revolucionários americanos são chamados precisamente agora a desempenhar um papel especialmente importante como inimigos irreconciliáveis do imperialismo americano, o mais recente, o mais forte, o último a participar na matança mundial dos povos por causa da partilha dos lucros dos capitalistas. Precisamente agora, os multimilionários americanos, esses modernos proprietários de escravos, abriram uma página especialmente trágica na história sangrenta do sangrento imperialismo, tendo dado o seu acordo — não importa se directo ou indirecto, aberto ou hipocritamente velado - à campanha armada das feras anglo-japonesas com o objectivo de estrangular a primeira república socialista.

A História da América moderna, civilizada, foi aberta por uma das grandes guerras, verdadeiramente libertadoras, verdadeiramente revolucionárias, que foram tão poucas entre a quantidade enorme de guerras de rapina provocadas, como a actual guerra imperialista, por uma luta entre os reis, latifundiários e capitalistas para partilhar as terras conquistadas ou os lucros saqueados. Foi uma guerra do povo americano contra os bandidos ingleses que oprimiam a América e a mantinham na escravidão colonial, do mesmo modo que esses vampiros «civilizados» oprimem e mantêm ainda hoje na escravidão colonial centenas de milhões de pessoas na Índia, no Egipto e em todo os confins do mundo.

Passaram-se desde então cerca de 150 anos. A civilização burguesa deu todos os seus esplêndidos frutos. A América ocupou o primeiro lugar entre os países livres e cultos no que diz respeito ao nível de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho humano colectivo, no que diz respeito ao emprego de máquinas e de todas as maravilhas da técnica moderna. Ao mesmo tempo, a América tornou-se um dos primeiros países quanto à profundidade do abismo entre um punhado de multimilionários insolentes e que se afogam na imundície e no luxo, por um lado, e milhões de trabalhadores que vivem constantemente na fronteira da miséria, por outro. O povo americano, que deu ao mundo um exemplo de guerra revolucionária contra a escravidão feudal, encontrou-se na escravidão moderna, capitalista, assalariada, dum punhado de multimilionários, encontrou-se a desempenhar o papel de carrasco assalariado que em 1898 estrangulou, para satisfação de ricos canalhas, as Filipinas, sob o pretexto da sua «libertação»(N334), e em 1918 estrangula a República Socialista da Rússia, sob o pretexto da sua «defesa» contra os alemães.

Mas os quatro anos do massacre imperialista dos povos não passaram em vão. O engano do povo pelos miseráveis de ambos os grupos de bandidos, tanto do inglês como do alemão, foi desmascarado até ao fim pelos factos incontestáveis e evidentes. Os quatro anos da guerra mostraram, na base dos seus resultados, a lei geral do capitalismo aplicada à guerra entre bandidos por causa da partilha da sua presa: quem era mais rico e mais forte, ganhou e pilhou mais do que ninguém; quem era mais fraco, foi saqueado, dilacerado, esmagado e estrangulado até ao fim.

Os bandidos do imperialismo inglês foram mais fortes do que ninguém quanto à quantidade dos seus «escravos coloniais». Os capitalistas ingleses não perderam nem um só palmo da «sua» (isto é, pilhada por eles no decurso de séculos) terra, e apoderaram-se de todos as colónias alemãs em África, apoderaram-se da Mesopotâmia e da Palestina, estrangularam a Grécia e começaram a pilhar a Rússia.

Os bandidos do imperialismo alemão foram mais fortes do que ninguém quanto à organização e à disciplina das “suas” tropas, mas mais fracos quanto às colônias. Eles perderam todas as colônias, mas saquearam metade da Europa, estrangularam o maior número de países pequenos e de povos fracos. Que grande guerra “libertadora” de ambos os lados! Que bem “defenderam a pátria” os bandidos de ambos os grupos, os capitalistas anglo-franceses e alemães, em conjunto com os seus lacaios, os sociais-chauvinistas, isto é, os socialistas que se passaram para o lado da “sua” burguesia!

Os multimilionários americanos eram talvez os mais ricos, encontravam-se na situação geográfica mais segura. Ganharam mais do ninguém. Converteram todos os países, mesmo os mais ricos, em tributários. Roubaram centenas de milhares de milhões de dólares. Em cada dólar vêem-se marcas de imundície: dos sujos acordos secretos entre a Inglaterra e os seus «aliados», entre a Alemanha e os seus vassalos, dos acordos sobre a partilha da presa roubada, dos acordos sobre a «ajuda» mútua na opressão dos operários e na perseguição aos socialistas-internacionalistas. Em cada dólar há uma mancha de imundície dos «lucrativos» fornecimentos militares, que em cada país enriqueciam os ricos e arruinavam os pobres. Em cada dólar há vestígios de sangue — daquele mar de sangue que derramaram 10 milhões de mortos e 20 milhões de mutilados numa luta grande, nobre, libertadora e sagrada para saber quem, o bandido inglês ou o alemão, obterá uma parte maior da presa, quem serão os primeiros, os carrascos ingleses ou os alemães, no esmagamento dos povos fracos de todo o mundo.

Se os bandidos alemães bateram o recorde quanto à ferocidade das suas repressões militares, os ingleses bateram o recorde não só quanto à quantidade de colónias acumuladas mas também quanto ao requinte da sua hipocrisia repugnante. É precisamente agora que a imprensa burguesa anglo-francesa e americana difundem em milhões e milhões de exemplares a mentira e a calúnia sobre a Rússia, justificando de maneira hipócrita a sua campanha de rapina contra ela com o pretenso desejo de «defender» a Rússia dos alemães!

Para se refutar essa mentira vil e ignominiosa não é preciso gastar muitas palavras: basta assinalar um facto universalmente conhecido. Quando em Outubro de 1917 os operários da Rússia derrubaram o seu governo imperialista, o Poder Soviético, o poder dos operários e camponeses revolucionários propôs abertamente uma paz justa, sem anexações nem contribuições, uma paz com observância completa da igualdade de direitos de todas as nações — propôs tal paz a todos os países beligerantes.

Foi precisamente a burguesia anglo-francesa e americana que não aceitou a nossa proposta, foi precisamente ela que se negou mesmo a negociar connosco uma paz geral! Foi precisamente ela que actuou de modo traiçoeiro em relação aos interesses de todos os povos, foi precisamente ela que prolongou o massacre imperialista!

Foi precisamente ela que, especulando com a possibilidade de voltar a arrastar a Rússia para a guerra imperialista, se esquivou às negociações de paz, deixando assim as mãos livres aos bandidos capitalistas da Alemanha, os quais impuseram pela violência à Rússia a paz anexionista de Brest!

É difícil imaginar uma hipocrisia mais asquerosa do que aquela com que a burguesia anglo-francesa e americana atira a «culpa» pela Paz de Brest para cima de nós. São exactamente os capitalistas dos países dos quais dependia a possibilidade de transformar as negociações de Brest em negociações gerais de uma paz geral que se apresentam como nossos «acusadores»! Os abutres do imperialismo anglo-francês, que enriqueceram com a pilhagem das colónias e com o massacre dos povos, prolongaram a guerra há quase um ano depois de Brest, e são eles que nos «acusam», a nós, bolcheviques, que propusemos uma paz justa a todos os países, a nós que rompemos, publicámos e expusemos à reprovação geral os criminosos acordos secretos entre o ex-tsar e os capitalistas anglo-franceses.

Os operários de todo o mundo, qualquer que seja o país em que vivam, saúdam-nos, simpatizam connosco, aplaudem-nos por termos rompido os elos de ferro dos laços imperialistas, dos sujos acordos imperialistas, das correntes imperialistas, por termos alcançado a liberdade tendo feito para isso os mais duros sacrifícios, por nos termos mantido, como república socialista, ainda que dilacerada e saqueada pelos imperialistas, fora da guerra imperialista, e por termos levantado perante todo o mundo a bandeira da paz, a bandeira do socialismo.

Não é de admirar que o bando de imperialistas internacionais nos odeie por isso, que eles nos «acusem», que todos os lacaios dos imperialistas, incluindo os nossos socialistas-revolucionários de direita e mencheviques, também nos «acusem». O ódio desses cães de guarda do imperialismo para com os bolcheviques, bem como a simpatia dos operários conscientes de todos os países, dão-nos nova confiança na justeza da nossa causa.

Não é socialista quem não compreende que em nome da vitória sobre a burguesia, em nome da passagem do poder para os operários, em nome do começo da revolução proletária internacional, não podemos nem devemos deter-nos perante quaisquer sacrifícios, incluindo perante o sacrifício de uma parte do território, perante o sacrifício de duras derrotas infligidas pelo imperialismo. Não é socialista quem não provou com actos a sua disposição para os maiores sacrifícios por parte da «sua» pátria, contanto que avance de facto a causa da revolução socialista.

Em nome da «sua» causa, isto é, em nome da conquista do domínio mundial, os imperialistas da Inglaterra e da Alemanha não se detiveram perante a ruína e o estrangulamento completo de toda uma série de países, começando pela Bélgica e pela Sérvia e continuando pela Palestina e pela Mesopotâmia. Quanto aos socialistas, em nome da «sua» causa, em nome da libertação dos trabalhadores de todo o mundo do jugo do capital, em nome da conquista de uma paz geral, duradoura, deverão eles esperar que se encontre um caminho sem sacrifícios, devem eles temer começar o combate enquanto não estiver «garantido» um êxito fácil, devem eles colocar a segurança e a integridade da «sua pátria», criada pela burguesia, acima dos interesses da revolução socialista mundial? Os miseráveis do socialismo mundial, os lacaios da moral burguesa que pensam assim merecem um triplo desprezo.

As feras rapaces do imperialismo anglo-francês e americano «acusam-nos» de «acordo» com o imperialismo alemão. Oh, hipócritas! Oh, canalhas que caluniam o governo operário, tremendo de medo perante a simpatia que têm para connosco os operários dos «seus» próprios países! Mas a sua hipocrisia será desmascarada. Eles fingem não compreender as diferenças entre um acordo dos «socialistas» com a burguesia (sua e estrangeira) contra os operários, contra os trabalhadores, e um acordo para proteger os operários que venceram a sua própria burguesia, com a burguesia de uma cor contra a burguesia de outra cor nacional, em nome da utilização pelo proletariado da contradição entre os diferentes grupos de burguesia.

Mas, de facto, qualquer europeu conhece perfeitamente essa diferença, e o povo americano, como o vou mostrar agora, «viveu-a» de modo especialmente patente na sua própria história. Há acordos e acordos, há fagots et fagots, como dizem os franceses.

Quando os abutres do imperialismo alemão lançaram, em Fevereiro de 1918, as suas tropas contra a Rússia desarmada, que tinha desmobilizado o seu exército e que tinha confiado na solidariedade internacional do proletariado antes de que amadurecesse completamente a revolução internacional, não vacilei minimamente em entrar num certo «acordo» com os monárquicos franceses. O capitão francês Sadoul, que em palavras simpatizava com os bolcheviques mas de facto servia de corpo e alma o imperialismo francês, levou junto de mim o oficial francês de Lubersac. «Sou monárquico, o meu único objectivo é a derrota da Alemanha» — declarou-me de Lubersac. Nem é preciso dizer, respondi eu (cela vá sans dire). Isso não me impediu minimamente que eu «chegasse a um acordo» com de Lubersac no que respeitava aos serviços que nos queriam prestar os oficiais franceses especialistas em explosivos, para fazer saltar vias férreas a fim de entravar a invasão dos alemães. Esse foi um exemplo de um «acordo» que qualquer operário consciente aprovará, de um acordo no interesse do socialismo. Eu e o monárquico francês apertámos a mão, sabendo que cada um de nós enforcaria de bom grado o seu «parceiro». Mas os nossos interesses coincidiam temporariamente. Contra os abutres que nos atacavam, nós aproveitámos, no interesse da revolução socialista russa e internacional, os interesses opostos igualmente rapaces de outros imperialistas. Servimos deste modo os interesses da classe operária da Rússia e dos outros países, reforçámos o proletariado e enfraquecemos a burguesia de todo o mundo, recorremos à manobra, ao estratagema, ao recuo perfeitamente legítimo e obrigatório em qualquer guerra, esperando pelo momento em que amadureça completamente a revolução proletária que amadurece rapidamente numa série de países avançados.

Por mais que uivem de raiva os tubarões do imperialismo anglo-francês e americano, por mais que nos caluniem, por mais milhões que gastem para subornar os jornais socialistas-revolucionários de direita, mencheviques e outros jornais sociais-patriotas, não vacilarei nem por um segundo em concluir o mesmo «acordo» com os abutres do imperialismo alemão, caso o exija a ofensiva das tropas anglo-francesas sobre a Rússia. E eu sei perfeitamente que o proletariado consciente da Rússia, da Alemanha, da França, da Inglaterra, da América, numa palavra, de todo o mundo civilizado, aprovará a minha táctica. Uma tal táctica facilitará a causa da revolução socialista, acelerará a sua chegada, enfraquecerá a burguesia internacional, reforçará as posições da classe operária que a está a vencer.

E o povo americano empregou há já muito, e com proveito para a revolução, esta táctica. Quando travou a sua grande guerra libertadora contra os opressores ingleses, contra eles estavam também os opressores franceses e espanhóis, aos quais pertencia uma parte dos actuais Estados Unidos da América do Norte. Na sua difícil luta pela libertação, o povo americano também concluiu «acordos» com uns opressores contra os outros, no interesse do enfraquecimento dos opressores e do reforço daqueles que lutavam revolucionariamente contra a opressão, no interesse da massa dos oprimidos. O povo americano utilizou a dissensão entre os franceses, espanhóis e ingleses, lutou mesmo por vezes juntamente com as tropas dos opressores franceses e espanhóis contra os opressores ingleses, venceu primeiro os ingleses, e depois libertou-se (em parte por meio de resgate) dos franceses e dos espanhóis.

A actividade histórica não é o passeio da avenida Névski, dizia o grande revolucionário russo Tchernichévski. Quem «admite» uma revolução do proletariado apenas «sob a condição» de que se desenvolva de modo fácil e sem transtornos, de que haja imediatamente uma acção conjunta dos proletários de diferentes países, de que seja dada de antemão uma garantia contra as derrotas, de que o caminho da revolução seja largo, livre, direito, de que para vencer não seja temporariamente necessário aceitar os sacrifícios mais duros, «ocultar-se numa fortaleza assediada» ou meter-se pelos atalhos montanhosos mais estreitos, intransitáveis, sinuosos e perigosos — não é um revolucionário, não se libertou do pedantismo da intelectualidade burguesa, escorregará de facto constantemente para o campo da burguesia contra-revolucionária, como os nossos socialistas-revolucionários de direita, mencheviques e até (se bem que mais raramente) socialistas-revolucionários de esquerda.

Seguindo a burguesia, estes senhores gostam de nos acusar do «caos» da revolução, da «destruição» da indústria, do desemprego e da falta de pão. Como são hipócritas estas acusações por parte dos que saudaram e apoiaram a guerra imperialista ou «estavam de acordo» com Kérenski que prosseguiu esta guerra! É precisamente a guerra imperialista que é culpada de todas essas calamidades. Uma revolução engendrada pela guerra não pode deixar de passar pelas dificuldades e tormentos incríveis que lhe deixou em herança o massacre dos povos, destruidor e reaccionário, de muitos anos. Acusar-nos da «destruição» da indústria ou de «terror» significa ser hipócrita ou dar provas de um pedantismo obtuso, de incapacidade de compreender as condições fundamentais dessa furiosa luta de classes agudizada ao extremo que se chama revolução.

No fundo, os «acusadores» de semelhante espécie, se é que «reconhecem» a luta de classes, limitam-se a reconhecê-la em palavras, mas de facto caem constantemente na utopia pequeno-burguesa da «conciliação» e da «colaboração» de classes. Porque em época de revolução, a luta de classes tomou sempre e em todos os países, inevitável e necessariamente, a forma da guerra civil, e a guerra civil é inconcebível sem as mais pesadas destruições, sem terror, sem a limitação da democracia formal no interesse da guerra. Só padres melífluos — quer sejam cristãos ou «laicos» nas pessoas dos socialistas de salão, parlamentares — podem não ver, não compreender, não sentir esta necessidade. Só «homens enconchados», sem vida, são capazes de se afastar por isto da revolução em vez de se lançarem ao combate com toda a paixão e decisão quando a história exige que as maiores questões da humanidade sejam resolvidas pela luta e pela guerra.

O povo americano tem uma tradição revolucionária que foi assimilada pelos melhores representantes do proletariado americano, que repetidamente expressaram a sua plena simpatia por nós, os bolcheviques. Essa tradição é a guerra da libertação contra os ingleses no século XVIII, depois a guerra civil no século XIX. Em 1870, a América estava, em alguns aspectos, se tomarmos apenas a «destruição» de alguns ramos da indústria e da economia nacional, atrasada em comparação com 1860. Mas que pedante, que idiota seria o homem que nessa base passasse a negar o maior significado histórico mundial, progressista e revolucionário da guerra civil de 1863-1865 na América!

Os representantes da burguesia compreendem que para o derrubamento da escravidão dos negros e o derrubamento do poder dos proprietários de escravos valia a pena que todo o país passasse por longos anos de guerra civil, por abismos de ruína, de destruições, de terror, que estão ligados a qualquer guerra. Mas agora, quando se trata da tarefa incomensuravelmente maior de derrubamento da escravidão assalariada, capitalista, do derrubamento do poder da burguesia, agora os representantes e os defensores da burguesia, bem como os socialistas-reformistas, assustados pela burguesia, que se esquivam da revolução, não podem e não querem compreender a necessidade e a legitimidade da guerra civil.

Os operários americanos não seguirão a burguesia. Estarão connosco, a favor da guerra civil contra a burguesia. Toda a história do movimento operário mundial e americano reforça em mim esta convicção. Lembro também as palavras dum dos chefes mais queridos do proletariado americano, Eugene Debs, que escreveu no Apelo à Razão (Appeal to Reason)(N335), parece-me que nos fins de 1915, no artigo What shall I fight for (Por Que Combaterei) — «citei este artigo no começo de 1916, numa reunião operária pública em Berna, na Suíça(1*)) — que ele, Debs, antes se deixaria fuzilar do que votar a favor dos créditos para a criminosa e reaccionária guerra actual; que ele, Debs, só conhece uma guerra sagrada, legítima, do ponto de vista dos proletários, a saber: a guerra contra os capitalistas, a guerra para libertar a humanidade da escravidão assalariada.

Não me admira que Wilson, chefe dos multimilionários americanos, criado dos tubarões capitalistas, tenha metido Debs na prisão. Que a burguesia cometa atrocidades contra os verdadeiros internacionalistas, contra os verdadeiros representantes do proletariado revolucionário! Quanto maiores forem o encarniçamento e as brutalidades da sua parte tanto mais próximo está o dia da revolução proletária vitoriosa.

Acusam-nos das destruições criadas pela nossa revolução ... E quem são os acusadores? São os sequazes da burguesia, daquela mesma burguesia que em quatro anos de guerra imperialista, tendo destruído quase toda a cultura europeia, levou a Europa à barbárie, ao embrutecimento, à fome. Esta burguesia exige agora de nós que façamos a revolução não na base destas destruições, não entre os destroços da cultura, destroços e ruínas criados pela guerra, não com as pessoas embrutecidas pela guerra. Oh, como é humana e justa esta burguesia!

Os seus servidores acusam-nos de terror ... Os burgueses ingleses esqueceram o seu 1649, os franceses o seu 1793. O terror era justo e legítimo quando era empregado pela burguesia em seu proveito, contra os feudais. O terror tornou-se monstruoso e criminoso quando os operários e os camponeses pobres se atreveram a empregá-lo contra a burguesia! O terror foi justo e legítimo quando era empregado no interesse da substituição de uma minoria exploradora por outra minoria exploradora. O terror tornou-se monstruoso e criminoso quando passou a ser empregado no interesse do derrubamento de todas as minorias exploradoras, no interesse duma maioria verdadeiramente enorme, no interesse do proletariado e do semiproletariado, da classe operária e do campesinato pobre!

A burguesia do imperialismo internacional exterminou 10 milhões de homens, mutilou 20 milhões na «sua» guerra, guerra essa conduzida para saber quem, os abutres ingleses ou os alemães, dominará todo o mundo.

Se a nossa guerra, a guerra dos oprimidos e dos explorados contra os opressores e exploradores, custar meio milhão ou um milhão de vítimas em todos os países, a burguesia dirá que as primeiras vítimas são legítimas, as segundas criminosas.

O proletariado dirá uma coisa totalmente diferente.

O proletariado assimila agora, entre os horrores da guerra imperialista, de forma completa e evidente, a grande verdade que ensinam todas as revoluções, a verdade legada aos operários pelos seus melhores mestres, os fundadores do socialismo moderno. Esta verdade consiste em que não pode haver uma revolução com êxito sem esmagar a resistência dos exploradores. O nosso dever, quando nós, os operários e camponeses trabalhadores, tomámos o poder de Estado, era esmagar a resistência dos exploradores. Orgulhamo-nos porque o fizemos e continuamos a fazê-lo. Lamentamos não o termos feito com suficiente firmeza e decisão.

Nós sabemos que em todos os países é inevitável uma resistência raivosa da burguesia contra a revolução socialista e que ela crescerá à medida que cresce esta revolução. O proletariado quebrará esta resistência, ele amadurecerá definitivamente para a vitória e para o poder no decurso da luta contra a burguesia que opõe resistência.

Que a imprensa burguesa corrupta grite aos quatro ventos acerca de cada erro cometido pela nossa revolução. Não temos medo dos nossos erros. Pelo facto de a revolução ter começado, os homens não se tornam santos. As classes que durante séculos foram oprimidas, embrutecidas e mantidas pela violência nas garras da miséria, da ignorância e do asselvajamento não podem fazer a revolução sem erros. E é impossível, como já tive uma vez ocasião de assinalar, fechar o cadáver da sociedade burguesa num caixão e enterrá-lo(2*). O capitalismo morto apodrece e decompõe-se entre nós, contaminando o ar com miasmas, envenenando a nossa vida, envolvendo aquilo que é novo, recente, jovem e vivo com milhares de fios e laços daquilo que é velho, podre e morto.

Por cada cem erros nossos, sobre os quais gritam aos quatro ventos a burguesia e os seus lacaios (incluindo os nossos mencheviques e socialistas-revolucionários de direita) há 10 000 actos grandiosos e heróicos — tanto mais grandiosos e heróicos quanto são simples, invisíveis, ocultos na vida quotidiana dum bairro fabril ou duma aldeia perdida, são realizados por pessoas que não estão acostumadas (e não têm a possibilidade) a gritar aos quatro ventos sobre cada êxito seu.

Mas ainda que fosse o contrário — embora eu saiba que tal suposição não é verdadeira — ainda que por 100 actos justos nossos houvesse 10 000 erros, mesmo assim a nossa revolução seria, e será perante a história mundial, grande e invencível, pois pela primeira vez não é a minoria, não são apenas os ricos, não são apenas as pessoas instruídas, mas uma verdadeira massa, uma enorme maioria dos trabalhadores, que constroem eles próprios a nova vida, resolvem as questões mais difíceis da organização socialista com a sua experiência.

Cada erro neste trabalho, neste trabalho sincero e consciencioso de dezenas de milhões de simples operários e camponeses para reestruturar toda a sua vida, cada erro desses vale milhares e milhões dos êxitos «sem erros» da minoria exploradora, dos êxitos em lograr e iludir os trabalhadores. Pois só através de tais erros os operários e camponeses aprenderão a construir a nova vida, aprenderão a passar sem os capitalistas, só assim eles abrirão o caminho — através de milhares de obstáculos — para o socialismo vitorioso.

Cometem erros ao fazer o seu trabalho revolucionário, os nossos camponeses, que de um só golpe, numa só noite, de 25 a 26 de Outubro (velho estilo) de 1917, aboliram toda a propriedade privada da terra e estão agora, de mês para mês, superando dificuldades imensas, corrigindo-se a si próprios, a cumprir na prática a tarefa dificílima de organizar novas condições de vida económica, de lutar contra os kulaques, de garantir a terra para os trabalhadores (e não para os ricos), de passar à grande agricultura comunista.

Cometem erros ao fazer o seu trabalho revolucionário os nossos operários, que nacionalizaram agora, em alguns meses, quase todas as grandes fábricas, e estudam, através de um duro trabalho quotidiano, a nova obra de gestão de ramos inteiros da indústria, que organizam as empresas nacionalizadas, superando a gigantesca resistência da rotina, do espírito pequeno-burguês, do egoísmo, que lançam, pedra a pedra, os alicerces de novas relações sociais, de uma nova disciplina do trabalho, de um novo poder dos sindicatos operários sobre os seus membros.

Cometem erros ao fazer o seu trabalho revolucionário os nossos Sovietes, criados já em 1905 pelo poderoso ascenso das massas. Os Sovietes de operários e camponeses são um novo tipo de Estado, um novo tipo, superior, de democracia, são a forma da ditadura do proletariado, o meio de administrar o Estado sem a burguesia e contra a burguesia. Pela primeira vez a democracia serve aqui para as mas-sas, para os trabalhadores, deixando de ser uma democracia para os ricos, como continua a ser a demo-cracia em todas as repúblicas burguesas, mesmo nas mais democráticas. Pela primeira vez as massas populares cumprem a tarefa, à escala de centenas de milhões de pessoas, da realização da ditadura dos proletários e semiproletários — tarefa sem cujo cumprimento não se pode sequer falar de socialismo.

Que os pedantes ou os homens incuravelmente cheios de preconceitos democrático-burgueses ou parlamentares abanem perplexamente a cabeça a propósito dos nossos Sovietes de Deputados, detendo-se, por exemplo, na ausência de eleições directas. Essas pessoas não esqueceram nem aprenderam nada no período das grandes viragens de 1914-1918. A união da ditadura do proletariado com a nova democracia para os trabalhadores, da guerra civil com a mais ampla participação das massas na política — tal união não pode ser conseguida imediatamente e não cabe nas formas triviais do democratismo parlamentar rotineiro. Um novo mundo, o mundo do socialismo — eis o que se nos apresenta nos seus contornos sob a forma de República Soviética. E não admira que este mundo não nasça já pronto, não saia de uma vez, como Minerva da cabeça de Júpiter(N336).

Enquanto as velhas constituições democrático-burguesas exaltavam, por exemplo, a igualdade formal e o direito de reunião, a nossa Constituição Soviética proletária e camponesa rejeita a hipocrisia da igualdade formal. Quando os republicanos burgueses derrubavam tronos, então não se preocupavam com a igualdade formal dos monárquicos com os republicanos. Quando se trata de derrubamento da burguesia, só traidores ou idiotas podem reclamar uma igualdade formal de direitos para a burguesia. Não vale um tostão a «liberdade de reunião» para os operários e camponeses se todos os melhores edifícios estão em poder da burguesia. Os nossos Sovietes tiraram aos ricos todos os bons edifícios, tanto nas cidades como nas aldeias, entregando todos estes edifícios aos operários e camponeses para as suas uniões e assembleias. Eis a nossa liberdade de reunião --- para os trabalhadores! Eis o sentido e o conteúdo da nossa Constituição Soviética, da nossa Constituição Socialista!

E eis porque todos nós estamos tão profundamente convencidos de que, quaisquer que sejam as desgraças que caiam sobre a nossa República dos Sovietes, ela é invencível.

Ela é invencível porque cada golpe do imperialismo enraivecido, cada derrota que a burguesia internacional nos inflige, levantam para a luta novas e novas camadas de operários e camponeses, ensinam-nos ao preço dos maiores sacrifícios, temperam-nos, geram um novo heroísmo de massas.

Nós sabemos que a vossa ajuda, camaradas operários americanos, não chegará, talvez, muito rapidamente, pois o desenvolvimento da revolução nos diversos países se realiza sob formas diferentes e a ritmos diferentes (e não pode realizar-se de outra maneira). Nós sabemos que a revolução proletária europeia pode não eclodir ainda nas próximas semanas, por mais rapidamente que tenha amadurecido nos últimos tempos. Nós apostamos na inevitabilidade da revolução internacional, mas isso não significa de modo algum que apostemos como tontos na inevitabilidade da revolução num período determinado e curto. Nós vimos as duas grandes revoluções de 1905 e de 1917 no nosso país e sabemos que as revoluções não se fazem por encomenda nem por acordo. Nós sabemos que as circunstâncias lançaram para a frente o nosso destacamento, o destacamento da Rússia do proletariado socialista, não devido aos nossos méritos, mas devido a um atraso especial da Rússia, e que antes que rebente a revolução internacional é possível uma série de derrotas de diferentes revoluções.

Apesar disso, sabemos firmemente que somos invencíveis, porque a humanidade não será quebrada pelo massacre imperialista, mas superá-lo-á. E o primeiro país que quebrou as grilhetas da guerra imperialista foi o nosso país. Suportámos duríssimos sacrifícios na luta pela destruição dessas grilhetas, mas quebrámo-las. Estamos fora de dependências imperialistas, levantámos perante todo o mundo a bandeira da luta pelo derrubamento completo do imperialismo.

Encontramo-nos como que numa fortaleza assediada, enquanto não chegarem em nossa ajuda outros destacamentos da revolução socialista internacional. Mas esses destacamentos existem, são mais numerosos do que os nossos, eles amadurecem, crescem, reforçam-se à medida que prosseguem as atrocidades do imperialismo. Os operários rompem com os seus sociais-traidores, os Gompers, Henderson, Renaudel, Scheidemann, Renner. Os operários avançam devagar, mas firmemente, para a táctica comunista, bolchevique, para a revolução proletária, a única que está em condições de salvar a cultura e a humanidade que se afundam.

Numa palavra, somos invencíveis, pois é invencível a revolução proletária mundial.

20 de Agosto de 1918.
N. Lénine


Notas de rodapé:

(N333) O envio da Carta aos Operários Americanos para os EUA foi organizado pelo bolchevique M. M. Borondine, recém-chegado da América. Quem levou a Carta para os EUA foi P. I. Trávine (Sletov). Juntamente com a Carta foram enviados a Constituição da RSFR e o texto da nota do governo soviético para o Presidente Wilson exigindo que pusesse fim à intervenção. A Carta aos Operários Americanos foi publicada em inglês (com poucas reduções) em Dezembro de 1918 nos órgãos da ala esquerda do Partido Socialista da América: a revista The Classe Struggle (A Luta de Classes), que se publicava em Nova Iorque, e o semanário The Revolutionary Age (A Época Revolucionária), que se editava em Boston, com a participação de Jonh Reed e Sen Katayama. Posteriormente a Carta foi editada em folheto e publicada diversas vezes na imprensa americana e da Europa Ocidental. (retornar ao texto)

(N334) Em Abril de 1898 os imperialistas americanos, procurando aproveitar no seu interesse o movimento de libertação nacional contra os colonizadores em Cuba e nas Filipinas, começaram uma guerra contra a Espanha. Sob o pretexto de prestar «ajuda» ao povo das Filipinas, que acabava de proclamar no seu país a República das Filipinas, desembarcaram nas ilhas as suas tropas. A Espanha, em conformidade com o tratado de paz assinado em Dezembro de 1898 em Paris, renunciava às Filipinas a favor dos EUA. Em Fevereiro de 1899 os imperialistas americanos iniciaram perfidamente operações militares contra a República das Filipinas. No território deste país desenvolveu-se uma ampla luta de guerrilhas contra os invasores. A oligarquia dos latifundiários e dos burgueses, assustada com o facto de que os camponeses, juntamente com a luta pela independência, lutavam também pela terra e pelo melhoramento das suas condições de vida, entraram em conciliação com os imperialistas. E 1901 o movimento de libertação nacional das Filipinas foi esmagado e o país caiu na dependência colonial dos EUA. (retornar ao texto)

(N335) Appeal to Reason (Apelo à Razão): jornal dos socialistas americanos fundado em 1895. O jornal dedicava-se à propaganda das ideias socialistas e tinha grande êxito junto dos operários. O artigo de Debs foi publicado a 11 de Setembro de 1915. O título exacto do artigo, que Lénine provavelmente cita de memória é When I shall fight (Quando eu Lutar). (retornar ao texto)

(1*) V.I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 27 pp. 233-234. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(2*) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 36, p. 409. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(N336) Júpiter e Minerva: deuses da mitologia romana. Júpiter era considerado inicialmente como deus do céu, da luz e da chuva, e, posteriormente, como divindade suprema do Estado Romano. Minerva era considerada deusa da guerra e protectora das ciências e das artes. Minerva, segundo o mito, nasceu da cabeça de Júpiter. (retornar ao texto)


Fonte:

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Inclusão 20/07/2018