Discurso sobre a Dissolução da Assembleia Constituinte na Reunião do CECR

V. I. Lénine

6 (19) de Janeiro de 1918

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Publicado:

Fonte: Obras Escolhidas em seis tomos, Edições "Avante!", 1985, t3, pp 367-371.

Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.35, pp. 56-59.

Transcrição e HTML: Manuel Gouveia

Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo.


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Camaradas! O choque entre o poder soviético e a Assembleia Constituinte foi preparado por toda a história da revolução russa, que foi colocada perante as tarefas sem precedentes da reconstrução socialista da sociedade. Depois dos acontecimentos de 1905 não havia nenhuma dúvida de que o tsarismo vivia os seus últimos dias, e foi só graças ao atraso e ignorância do campo que ele conseguiu escapar do abismo. A revolução de 1917 foi acompanhada pelo fenómeno de, por um lado, o partido burguês imperialista se ter transformado pela força dos acontecimentos em partido republicano, e, por outro lado, terem surgido organizações democráticas, os sovietes, que já tinham sido criados em 1905, porque já então os socialistas compreendiam que com a organização destes sovietes se criava algo de grande, de novo e sem precedentes na história da revolução mundial. Os sovietes, que o povo soube criar de modo completamente independente, são uma forma de democracia que não tem igual em nenhum país.

A revolução produziu duas forças - a união das massas com o objectivo de derrubar o tsarismo e a organização do povo trabalhador. Quando oiço aos adversários da Revolução de Outubro gritos sobre o carácter irrealizável e utópico das ideias do socialismo, habitualmente nesses casos faço-lhes uma pergunta simples e clara: que fenómeno são os sovietes? O surgimento destas organizações populares sem precedentes na história do desenvolvimento da revolução mundial é resultado de quê? E não recebi nem podia receber de ninguém uma resposta definida a esta pergunta. Por uma defesa rotineira do sistema burguês eles vão contra estas poderosas organizações, cujo aparecimento não se observou ainda em nenhuma das revoluções do mundo. Quem luta contra os latifundiários vai para os sovietes de deputados camponeses. Os sovietes abarcam todos e cada um que, não querendo ficar inactivos, seguem o caminho do trabalho criador. Eles cobriram com uma rede todo o país, e quanto mais densa for essa rede de sovietes populares menos possível será a exploração dos representantes do povo trabalhador, porque a existência dos sovietes é incompatível com o florescimento do sistema burguês; é nisso que reside a fonte de todas estas contradições dos representantes da burguesia, que travam a sua luta contra os nossos sovietes exclusivamente em nome dos seus interesses.

A passagem do capitalismo para o sistema socialista é acompanhada de uma luta longa e encarniçada. A revolução russa, depois de derrubar o tsarismo, teve irrevogavelmente de avançar, não se limitando ao triunfo da revolução burguesa, porque a guerra e as inauditas calamidades por ela causadas aos povos esgotados criaram o terreno para a eclosão da revolução social. E por isso não há nada mais risível do que dizer que o avanço da revolução, o aumento da indignação das massas, foi causado por um qualquer partido, por um indivíduo ou, como gritam, pela vontade de um «ditador». O incêndio da revolução inflamou-se exclusivamente devido aos incríveis sofrimentos da Rússia e a todas as condições criadas pela guerra, que colocou aguda e decididamente a seguinte questão ao povo trabalhador: ou um passo audacioso, desesperado e intrépido ou o perecimento devido à fome.

E o fogo revolucionário manifestou-se no facto de os sovietes - esse esteio da revolução dos trabalhadores - terem sido criados. O povo russo deu um salto gigantesco - o salto do tsarismo para os sovietes. É um facto irrefutável e sem precedentes em parte alguma. E enquanto os parlamentos burgueses de todos os países e Estados, amarrados pelos limites do capitalismo e da propriedade, nunca nem em parte nenhuma prestaram qualquer apoio ao movimento revolucionário, os sovietes, avivando o incêndio da revolução, ditam imperativamente ao povo: luta, toma tudo nas tuas mãos e organiza-te. Não há dúvidas de que no processo de desenvolvimento da revolução suscitado pela força dos sovietes se encontrarão uma série de erros e falhas de toda a espécie - mas não é segredo para ninguém que qualquer movimento revolucionário é sempre invariavelmente acompanhado por uma manifestação temporária de caos, de desorganização económica e de desordens. A sociedade burguesa é a mesma guerra, o mesmo massacre, e este facto provocou e agudizou o conflito entre a Assembleia Constituinte e os sovietes, e todos os que nos apontam que nós em tempos defendemos a Assembleia Constituinte mas agora a «dissolvemos», esses não têm nem um grão de pensamento e apenas frases pomposas e ocas. Porque outrora, em comparação com o tsarismo e com a república de Kérenski, a Assembleia Constituinte era para nós melhor do que os seus famigerados órgãos de poder, mas, à medida que os sovietes foram surgindo, estes últimos, como organizações revolucionárias de todo o povo, naturalmente tornaram-se incomparavelmente superiores a todos os parlamentos de todo o mundo, e eu sublinhei este fenómeno já no mês de Abril. Os sovietes, realizando a destruição radical da propriedade burguesa e latifundiária, favorecendo a reviravolta definitiva que está a varrer todos os vestígios do sistema burguês, impeliram-nos para o caminho que conduziu o povo à construção da sua vida. Lançámo-nos já a esta grandiosa construção e ainda bem que o fizemos. Não há dúvida de que a revolução socialista não pode ser de repente apresentada ao povo numa forma limpinha, arranjadinha, irrepreensível, não pode deixar de ser acompanhada pela guerra civil e pela manifestação da sabotagem e da resistência. E aqueles que tentam provar-vos o contrário ou são estúpidos ou são homens enconchados(N188). [Aplausos clamorosos.] Os acontecimentos de 20 de Abril, quando o povo, de modo independente, sem quaisquer ordens de «ditadores» ou de partidos, se manifestou sozinho contra o governo de conciliação - este fenómeno mostrou já então toda a fraqueza e falta de base dos pilares da burguesia. As massas sentiram a sua força, e para lhes agradar começou o famoso jogo do salto ao eixo ministerial com o objectivo de enganar o povo, que, contudo, em breve viu claro, particularmente depois de Kérenski, com os dois bolsos cheios de tratados secretos de rapina com os imperialistas, ter lançado as tropas à ofensiva. Toda a actividade dos conciliadores foi gradualmente compreendida pelo povo enganado, cuja paciência começou a esgotar-se, e o resultado de tudo isto foi a Revolução de Outubro. O povo aprendeu com a experiência, passando pelas torturas, pelas penas de morte e pelos espingardeamentos em massa, e é em vão que os carrascos lhe afirmam que são os bolcheviques ou uns quaisquer «ditadores» os culpados pela insurreição dos trabalhadores. Isto é provado pela cisão no seio das massas populares, nos congressos, assembleias, conferências, etc. Ainda não terminou a assimilação da Revolução de Outubro pelo povo. Esta revolução mostrou de facto como é que o povo deve tomar nas suas mãos as terras e as riquezas naturais e os meios de transporte e de produção, nas mãos do Estado operário e camponês. Todo o poder aos sovietes, dizíamos nós, e lutamos por isso. O povo quis convocar a Assembleia Constituinte - e nós convocámo-la. Mas ele sentiu imediatamente o que representa esta famosa Assembleia Constituinte. E agora nós aplicámos a vontade do povo, vontade que é: todo o poder aos sovietes. E esmagaremos os sabotadores. Quando vim do Smólni, que jorra vida, para o palácio de Táurida(N189), senti-me como se estivesse entre cadáveres e múmias sem vida. Lançando mão, para lutarem contra o socialismo, de todos os meios existentes, empregando a força e a sabotagem, eles até transformaram o grande orgulho da humanidade - o saber - num instrumento de exploração do povo trabalhador, e embora com isto tenham minado um pouco as medidas visando a revolução socialista, não conseguiram nem nunca conseguirão detê-la. Porque é demasiado forte o poderio dos sovietes, que se lançaram à destruição dos velhos pilares caducos do sistema burguês não à maneira senhorial, mas à maneira proletária, à maneira camponesa.

E a entrega de todo o poder à Assembleia Constituinte seria novamente a conciliação com a burguesia maligna. Os sovietes russos colocam os interesses das massas trabalhadoras muito acima dos interesses da conciliação traidora mascarada com novas vestimentas. Dos discursos de Tchernov e Tsereteli, essas personagens caducas que continuam como antes a lamuriar fastidiosamente sobre o fim da guerra civil, vem um cheiro bolorento de tempos antigos. Mas enquanto existir Kalédine e sob a palavra de ordem de «todo o poder à Assembleia Constituinte» se esconder a palavra de ordem de «abaixo o poder soviético», não fugiremos à guerra civil, pois por nada deste mundo desistiremos do poder soviético! [Aplausos clamorosos.] E quando a Assembleia Constituinte novamente manifestou a disposição de pôr de lado todas as questões e tarefas dolorosas e urgentes que lhe foram apresentadas pelos sovietes, nós respondemos-lhes que não pode haver nem um minuto de adiamento. E por vontade do poder soviético a Assembleia Constituinte, que não reconheceu o poder do povo, é dissolvida. A aposta dos Riabuchínski falhou, e a resistência deles só agudizará e provocará uma nova explosão da guerra civil.

A Assembleia Constituinte é dissolvida, e a república revolucionária soviética triunfará custe o que custar [Aplausos clamorosos que se transformam em longa ovação.]


Notas de rodapé:

(1) O Homem Enconchado: herói do conto homónimo do escritor russo A. Tchékov. Tipo de filisteu limitado, que temo qualquer novidade e iniciativa. (retornar ao texto)

(2) No Smólni em 1917 encontrava-se o Soviete de Petrogrado e o Comité Militar Revolucionário de Petrogrado e, nos dias da insurreição armada de Outubro, o quartel-general das forças revolucionárias. No Palácio de Táurida realizavam-se, em 1906-1917, as sessões da Duma de Estado. (retornar ao texto)

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Inclusão 12/12/2018