Sobre as Ilusões Constitucionais

V. I. Lénine

8 de Agosto de 1917

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Escrito: em 26 de Julho (8 de Agosto) de 1917
Fonte: Obras Escolhidas em seis tomos, Edições "Avante!", 1984, t3, pp 298-311.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.34, pp. 33-37.
Transcrição e HTML: Manuel Gouveia
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo.

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Chama-se ilusões constitucionais ao erro político que consiste em que as pessoas aceitam como existente um sistema normal, jurídico, ordenado, legal, numa palavra, «constitucional», embora na realidade ele não exista. Pode parecer à primeira vista que na Rússia actual, em Julho de 1917, quando ainda não foi elaborada qualquer constituição, nem sequer se pode falar do aparecimento de ilusões constitucionais. Mas isso é um profundo erro. De facto, todo o fulcro de toda a situação política actual na Rússia consiste em que massas extraordinariamente amplas da população estão imbuídas de ilusões constitucionais. Não se pode compreender absolutamente nada da situação política actual da Rússia sem compreender isto. Não se pode dar absolutamente nem um passo no sentido de uma formulação correcta das tarefas tácticas na Rússia actual sem dar uma importância primordial ao desmascaramento sistemático e implacável das ilusões constitucionais, à revelação de todas as suas raízes, ao restabelecimento de uma perspectiva política correcta.

Tomemos três ideias, as mais típicas das ilusões constitucionais actuais, e examinemo-las atentamente.

Primeira ideia: o nosso país vive a véspera da Assembleia Constituinte; por isso, tudo o que se passa agora tem um carácter temporário, passageiro, não muito essencial, não decisivo, tudo será em breve revisto e definitivamente decidido pela Assembleia Constituinte. Segunda ideia: certos partidos - por exemplo, os socialistas-revolucionários ou os mencheviques ou a sua aliança - têm uma clara e indubitável maioria no povo ou nas instituições «mais influentes», como os sovietes; por isso a vontade destes partidos, destas instituições, tal como em geral a vontade da maioria do povo, não pode ser eludida ou, mais ainda, violada na Rússia republicana, democrática, revolucionária. Terceira ideia: uma certa medida, por exemplo o fecho do jornal Pravda, não foi legalizada nem pelo Governo Provisório nem pelos sovietes; por isso ela é apenas um episódio, um fenómeno casual, não pode de modo nenhum ser encarada como algo de decisivo.

Passemos à análise de cada uma destas ideias.

I

A convocação da Assembleia Constituinte foi prometida pelo Governo Provisório ainda na sua primeira composição. Ele reconheceu como sua principal tarefa conduzir o país até à Assembleia Constituinte. O Governo Provisório da segunda composição marcou a data da convocação da Assembleia Constituinte para 30 de Setembro. O Governo Provisório da 3ª composição, depois de 4 de Julho, confirmou solenemente esta data.

E entretanto há 99 probabilidades em 100 de que a Assembleia Constituinte não seja convocada nessa data. Se ela for convocada nessa data, há novamente 99 probabilidades em 100 de que ela seja tão impotente e inútil como a primeira Duma, enquanto uma segunda revolução não triunfar na Rússia. Para nos convencermos disso basta abstrairmo-nos por um momento do alvoroço das frases, promessas e ninharias do dia, que entope o cérebro, e olhar para aquilo que é fundamental, que determina tudo na vida social: a luta de classes.

Que a burguesia na Rússia se fundiu do modo mais estreito com os latifundiários, isso é claro. Toda a imprensa, todas as eleições, toda a política do partido democrata-constitucionalista e dos partidos à sua direita, todas as intervenções dos «congressos» das pessoas «interessadas», o provam. A burguesia compreende perfeitamente o que não compreendem os palradores pequeno-burgueses dos socialistas-revolucionários e mencheviques «de esquerda», a saber, que é impossível abolir a propriedade privada da terra na Rússia, e abolir sem resgate, sem uma gigantesca revolução económica, sem colocar os bancos sob o controlo popular, sem nacionalizar os consórcios, sem uma série das medidas mais implacáveis contra o capital. A burguesia compreende isto perfeitamente. E ao mesmo tempo ela não pode deixar de saber, de ver, de sentir, que a imensa maioria dos camponeses da Rússia não só se pronunciará actualmente pela confiscação das terras dos latifundiários como estará muito à esquerda de Tchernov. Porque a burguesia sabe melhor do que nós quantas concessõezinhas parciais lhe fez Tchernov, pelos menos de 6 de Maio a 2 de Julho, nas questões do protelamento e cerceamento das diferentes reivindicações camponesas, e sabe do mesmo modo quanto trabalho deu aos socialistas-revolucionários de direita (é que Tchernov é considerado «de centro» entre os socialistas-revolucionários!) no congresso camponês(N147) e no CE do Soviete de Toda a Rússia de Deputados Camponeses «tranquilizar» os camponeses e alimentá-los com promessas.

A burguesia distingue-se da pequena burguesia pelo facto de ter extraído da sua experiência económica e política a compreensão das condições da conservação da «ordem» (isto é, da escravização das massas) no sistema capitalista. Os burgueses são homens de negócios, homens que fazem grandes transacções comerciais, habituados a abordar também as questões políticas de modo estritamente prático, desconfiando das palavras, sabendo pegar o touro pelos cornos.

A Assembleia Constituinte na Rússia actual dará a maioria aos camponeses mais à esquerda do que os socialistas-revolucionários. A burguesia sabe-o. Sabendo-o, ela não pode deixar de lutar do modo mais decidido contra a rápida convocação da Assembleia Constituinte. Conduzir a guerra imperialista no espírito dos tratados secretos concluídos por Nicolau II, defender a propriedade latifundiária da terra ou o resgate, tudo isso é coisa impossível ou incrivelmente difícil existindo uma Assembleia Constituinte. A guerra não espera. A luta de classes não espera. Mesmo o breve intervalo de tempo entre 28 de Fevereiro e 21 de Abril o mostrou claramente.

Logo desde o início da revolução observaram-se duas concepções sobre a Assembleia Constituinte. Os socialistas-revolucionários e os mencheviques, inteiramente imbuídos de ilusões constitucionais, encaravam o caso com a credulidade do pequeno-burguês que não quer conhecer a luta de classes: a Assembleia Constituinte foi proclamada, haverá Assembleia Constituinte, e pronto! Tudo o resto é obra do diabo! Mas os bolcheviques disseram: só na medida em que se consolidar a força e o poder dos sovietes é que a convocação da Assembleia Constituinte e o seu êxito estão assegurados. Os mencheviques e os socialistas-revolucionários transferiram o centro de gravidade para o acto jurídico: a proclamação, a promessa, a declaração da convocação da Assembleia Constituinte. Os bolcheviques transferiram o centro de gravidade para a luta de classes: se os sovietes triunfarem, a Assembleia Constituinte estará assegurada, se não, ela não estará assegurada.

Assim aconteceu. A burguesia travou sempre uma luta, ora encoberta ora aberta, mas ininterrupta e tenaz, contra a convocação da Assembleia Constituinte. Esta luta manifestou-se no desejo de adiar a sua convocação até ao fim da guerra. Esta luta manifestou-se numa série de protelamentos da marcação da data de convocação da Assembleia Constituinte. Quando, finalmente, depois do 18 de Junho, mais de um mês depois da formação do governo de coligação, foi marcada a data da convocação da Assembleia Constituinte, um jornal burguês de Moscovo declarou que isso fora feito sob a influência da agitação dos bolcheviques. No Pravda foi publicada uma citação exacta deste jornal.

Depois de 4 de Julho, quando o servilismo e o medo dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques deram a «vitória» à contra-revolução, o Retch deixou escapar uma expressão curta mas altamente significativa: «é impossível a rápida» convocação da Assembleia Constituinte!! E em 16 de Julho no Vólia Naroda(N148) e no Rússkaia Vólia(N149) foi publicada uma nota segundo a qual os democratas-constitucionalistas exigiam o adiamento da convocação da Assembleia Constituinte com o pretexto de que era «impossível» convocá-la com um prazo tão «curto», e o menchevique Tsereteli, lacaio da contra-revolução, já consentiu, de acordo com esta nota, num adiamento para 20 de Novembro!

Não há dúvida de que semelhante nota só pôde escapar contra a vontade da burguesia. Não lhe convêm essas «revelações». Mas o azeite vem sempre ao de cima. A contra-revolução, desenfreada depois de 4 de Julho, deixou escapar a verdade. Logo a primeira tomada do poder pela burguesia contra-revolucionária depois de 4 de Julho é acompanhada imediatamente por uma medida (e uma medida muito séria) contra a convocação da Assembleia Constituinte.

Isto é um facto. E este facto revela como são ocas as ilusões constitucionais. Sem uma nova revolução na Rússia, sem o derrubamento do poder da burguesia contra-revolucionária (em primeiro lugar dos democratas-constitucionalistas), sem que o povo recuse a confiança aos partidos socialista-revolucionário e menchevique, partidos do entendimento com a burguesia, a Assembleia Constituinte ou não será convocada de todo em todo ou será um «parlatório de Frankfurt»(N150), assembleia impotente e inútil de pequenos burgueses, com um medo de morte da guerra e da perspectiva de um «boicote do poder» pela burguesia, irremediavelmente divididos entre a ânsia de governar sem a burguesia e o medo de passar sem a burguesia.

A questão da Assembleia Constituinte está subordinada à questão do curso e do desfecho da luta de classes entre a burguesia e o proletariado. Estamos lembrados de que o Rabótchaia Gazeta(N151) deixou escapar uma vez que a Assembleia Constituinte seria uma Convenção. Este é um dos exemplos da fanfarronice oca, miserável e desprezível dos nossos lacaios mencheviques da burguesia contra-revolucionária. Para não ser um «parlatório de Frankfurt» ou uma primeira Duma, para ser uma Convenção, para isso é necessário ousar, saber e ter a força para desferir golpes implacáveis à contra-revolução e não entender-se com ela. Para isso é necessário que o poder esteja nas mãos da classe mais avançada, mais decidida, mais revolucionária da época actual. Para isso é necessário que ela seja apoiada por toda a massa dos pobres da cidade e do campo (semiproletários). Para isso é necessário reprimir implacavelmente a burguesia contra-revolucionária, isto é, antes de mais os democratas-constitucionalistas e as cúpulas de comando do exército. São essas as condições reais, de classe, materiais, da Convenção. Basta enumerar com precisão e clareza estas condições para compreender como é ridícula a fanfarronice do Rabótchaia Gazeta, como são insondavelmente estúpidas as ilusões constitucionais dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques acerca da Assembleia Constituinte na Rússia actual.

II

Fustigando os «sociais-democratas» pequeno-burgueses de 1848, Marx estigmatizou de modo particularmente áspero a sua incontida fraseologia acerca do «povo» e da maioria do povo em geral(N152). É oportuno recordar precisamente isto ao examinar a segunda ideia, ao analisar as ilusões constitucionais acerca da «maioria».

Para que seja realmente a maioria a decidir no Estado são necessárias determinadas condições reais. A saber: deve estar firmemente estabelecida uma ordem estatal, um poder de Estado, que dê a possibilidade de resolver as coisas por maioria e assegure a transformação desta possibilidade em realidade. Isto por um lado. Por outro lado, é necessário que esta maioria, pela sua composição de classe, pela correlação destas ou daquelas classes dentro desta maioria (e fora dela), possa conduzir unida e com êxito o carro do Estado. Está claro para qualquer marxista que estas duas condições reais desempenham um papel decisivo na questão da maioria do povo e da marcha dos assuntos de Estado de acordo com a vontade desta maioria. E entretanto toda a literatura política dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques, e ainda mais todo o seu comportamento político, revela a mais completa incompreensão destas condições.

Se o poder político do Estado se encontrar nas mãos de uma classe cujos interesses coincidem com os interesses da maioria, então é possível a governação do Estado realmente de acordo com a vontade da maioria. Mas se o poder político se encontra nas mãos de uma classe cujos interesses divergem dos interesses da maioria, então qualquer governação segundo a maioria se transforma em logro ou em repressão desta maioria. Qualquer república burguesa nos mostra centenas e milhares de exemplos disso. Na Rússia a burguesia domina tanto económica como politicamente. Os seus interesses, particularmente durante a guerra imperialista, divergem do modo mais agudo dos interesses da maioria. Por isso todo o fulcro da questão, se ela for colocada de modo materialista, marxista, e não formal-jurídico, consiste em revelar esta divergência, em lutar contra o logro das massas pela burguesia.

Os nossos socialistas-revolucionários e mencheviques, pelo contrário, demonstraram e mostraram completamente o seu papel real como instrumentos de logro das massas (da «maioria») pela burguesia, veículos e cúmplices desse logro. Por mais sinceros que sejam determinados socialistas-revolucionários e mencheviques tomados individualmente, as suas ideias políticas fundamentais - de que é possível arrancar-se à guerra imperialista e passar a uma «paz sem anexações nem indemnizações» sem a ditadura do proletariado e a vitória do socialismo, de que é possível a passagem da terra para o povo sem resgate e o «controlo» da produção no interesse do povo sem essa mesma condição -, estas ideias políticas (e económicas, claro) fundamentais dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques constituem objectivamente ou um auto-engano pequeno-burguês ou, o que é o mesmo, um logro das massas (da «maioria») pela burguesia.

Eis a nossa primeira e principal «correcção» à maneira como colocam a questão os democratas pequeno-burgueses, os socialistas do tipo de Louis Blanc, os socialistas-revolucionários e mencheviques: que vale de facto a «maioria» quando a maioria em si é apenas um elemento formal, enquanto materialmente, na realidade, esta maioria é a maioria dos partidos que levam à prática o logro desta maioria pela burguesia?

E é claro - abordamos aqui a segunda «correcção», a segunda das circunstâncias fundamentais acima mencionadas -, é claro que só se pode compreender correctamente este logro esclarecendo as suas raízes de classe e o seu significado de classe. Isto não é um logro pessoal, não é uma «trapaça» (para falar grosseiramente), é uma ideia ilusória decorrente da situação económica da classe. O pequeno burguês encontra-se numa situação económica tal, as suas condições de vida são tais que ele não pode deixar de se enganar, ele pende involuntária e inevitavelmente ora para a burguesia ora para o proletariado. Economicamente ele não pode ter uma «linha» independente.

O seu passado arrasta-o para a burguesia, o seu futuro para o proletariado. O seu juízo pende para o último, o seu pré-juízo (segundo a conhecida expressão de Marx) para a primeira(N153). Para que a maioria do povo possa tornar-se a maioria efectiva na governação do Estado, servir efectivamente os interesses da maioria, tornar-se um efectivo protector dos seus direitos, etc., para isso é necessária uma determinada condição de classe. Essa condição é a junção da maioria da pequena burguesia, pelo menos no momento decisivo e no lugar decisivo, com o proletariado revolucionário.

Sem isso a maioria é uma ficção, que pode manter-se durante algum tempo, brilhar, reluzir, fazer barulho, colher louros, mas que no entanto está, de modo absolutamente inevitável, condenada ao fracasso. Foi precisamente esse, aliás, o fracasso da maioria detida pelos socialistas-revolucionários e mencheviques que se revelou na revolução russa em Julho de 1917.

Continuemos. Uma revolução distingue-se da situação «habitual» no Estado precisamente pelo facto de as questões controversas da vida estatal serem resolvidas directamente pela luta das classes e pela luta das massas, indo até à luta armada. Não pode ser de outra maneira, uma vez que as massas são livres e estão armadas. Deste facto fundamental decorre que em tempo de revolução não basta mostrar a «vontade da maioria» - não, é preciso ser mais forte no momento decisivo no lugar decisivo, é preciso vencer. A começar pela «guerra camponesa» medieval na Alemanha e continuando com todos os grandes movimentos e épocas revolucionários, até 1848 e 1871, até 1905, vemos incontáveis exemplos de como a minoria mais organizada, mais consciente, mais bem armada, impôs a sua vontade à maioria, a venceu.

F. Engels sublinhou particularmente a lição da experiência, que em certa medida unifica a insurreição camponesa do século XVI e a revolução de 1848 na Alemanha, a saber: a desunião das acções, a ausência de centralização das massas oprimidas, ligada à sua situação pequeno-burguesa na vida(N154). Abordando a questão deste lado, também chegamos à mesma conclusão: a simples maioria das massas pequeno-burguesas nada resolve nem pode resolver por si, pois a organização, a consciência política das acções, a sua centralização (necessária para a vitória), tudo isto a direcção ou da burguesia ou do proletariado o pode dar aos milhões de pequenos proprietários rurais dispersos.

No fim de contas, como é sabido, o que resolve as questões da vida social é a luta de classes na sua forma mais violenta e mais aguda, a saber, na forma de guerra civil. E nesta guerra, como em qualquer guerra, aquilo que decide - este também é um facto conhecido e em princípio não contestado por ninguém - é a economia. É extremamente característico e significativo que nem os socialistas-revolucionários nem os mencheviques, não negando isto «em princípio» e tendo perfeita consciência do carácter capitalista da Rússia actual, se decidam a encarar sensatamente a verdade de frente. Eles têm medo de reconhecer a verdade, a saber: a divisão fundamental de qualquer país capitalista, incluindo a Rússia, em três forças fundamentais, principais, a burguesia, a pequena burguesia e o proletariado. Da primeira e da terceira todos falam, todos as reconhecem. A segunda - isto é, exactamente a maioria quanto ao número - não a querem avaliar sensatamente nem do ponto de vista económico, nem político, nem militar.

Nem todas as verdades agradam - é a isto que se reduz o medo dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques de se conhecerem a si próprios.

III

O encerramento do Pravda, quando começámos este artigo, era apenas um facto «casual», ainda não confirmado pelo poder de Estado. Agora, depois de 16 de Julho, este poder encerrou formalmente o Pravda.

Este encerramento, se o encararmos historicamente, no seu conjunto, em todo o processo de preparação e realização desta medida, lança uma luz notavelmente clara sobre a «essência da constituição» na Rússia e sobre o perigo das ilusões constitucionais.

É sabido que o partido democrata-constitucionalista, encabeçado por Miliukov e pelo jornal Retch, já exige desde Abril medidas repressivas contra os bolcheviques. Nas formas mais diversas, dos artigos «de Estado» do Retch até às repetidas exclamações de Miliukov de «prendam-nos» (Lénine e outros bolcheviques), esta exigência de medidas repressivas constituiu uma das principais, se não a principal, parte do programa político dos democratas-constitucionalistas na revolução.

Muito antes da acusação repugnantemente caluniosa, inventada e fabricada por Aléxinski e Cª em Junho e Julho, de espionagem a favor dos alemães ou de receber dinheiro dos alemães, muito antes da acusação, igualmente caluniosa e em contradição com factos de todos conhecidos e com documentos publicados, de «insurreição armada» ou de «rebelião» - muito antes disto todo o partido democrata-constitucionalista exige sistemática, incansável e continuamente medidas repressivas contra os bolcheviques. Se agora esta exigência foi realizada, que opinião se deve ter sobre a honestidade ou a perspicácia daqueles que esquecem ou fingem esquecer a verdadeira origem de classe e partidária desta exigência? E como deixar de chamar grosseiríssima falsificação ou estupidez incrível em política ao facto de os socialistas-revolucionários e os mencheviques se esforçarem por apresentar as coisas como se acreditassem no «motivo» «acidental» ou «isolado», surgido em 4 de Julho, para as medidas repressivas contra os bolcheviques? Mas devem existir limites para a deturpação de verdades históricas incontestáveis!

Basta comparar o movimento de 20-21 de Abril com o movimento de 3-4 de Julho para de imediato nos convencermos do seu carácter similar: explosão espontânea do descontentamento, impaciência e indignação das massas, tiros provocatórios da direita, mortos na Avenida Névski, uivos caluniosos da burguesia, e em particular dos democratas-constitucionalistas, de que «os leninistas dispararam na Avenida Névski», exacerbamento e agudização extremos da luta entre a massa proletária e a burguesia, completa desorientação dos partidos pequeno-burgueses, os socialistas-revolucionários e os mencheviques, dimensão gigantesca das vacilações na sua política e na questão do poder de Estado em geral - todos estes factos objectivos caracterizam ambos os movimentos. E o 9-10 e o 18 de Junho, numa outra forma, apresentam-nos exactamente o mesmo quadro de classe.

O curso dos acontecimentos é claríssimo: cada vez maior crescimento do descontentamento, impaciência e indignação das massas, cada vez maior agudização da luta entre o proletariado e a burguesia, particularmente pela influência sobre as massas pequeno-burguesas, e em ligação com isso dois importantíssimos acontecimentos históricos, que prepararam a dependência dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques em relação aos democratas-constitucionalistas contra-revolucionários. Esses acontecimentos: o governo de coligação de 6 de Maio, no qual os socialistas-revolucionários e os mencheviques ficaram como servidores da burguesia, enredando-se cada vez mais em acordos e entendimentos com ela, em mil «serviços» a ela, no adiamento das medidas revolucionárias mais necessárias, e depois a ofensiva na frente. A ofensiva significou inevitavelmente o reatamento da guerra imperialista, um gigantesco reforço da influência, do peso e do papel da burguesia imperialista, uma difusão muito ampla do chauvinismo entre as massas, e finalmente - last but not least (último na enumeração mas não em importância) - a transferência do poder, inicialmente militar e depois estatal em geral, para as mãos das cúpulas de comando contra-revolucionárias do exército.

Tal é o curso dos acontecimentos históricos, que aprofundou e agudizou as contradições de classe de 20-21 de Abril a 3-4 de Julho e permitiu à burguesia contra-revolucionária, depois de 4 de Julho, realizar aquilo que já em 20-21 de Abril se desenhava com toda a clareza como seu programa e táctica, seu objectivo imediato e seus meios «limpos» para conduzir ao objectivo.

Não há nada mais desprovido de conteúdo do ponto de vista histórico, não há nada mais pobre no plano teórico e mais ridículo no plano prático do que os queixumes filisteus a propósito do 4 de Julho (repetidos, aliás, por L. Mártov) dizendo que os bolcheviques «arranjaram maneira» de se infligir uma derrota a si próprios, que ela foi causada pelo seu «aventureirismo», etc., etc. Todos estes queixumes, todos estes arrazoados no sentido de que «não se devia» ter participado (numa tentativa de conferir um carácter «pacífico e organizado» ao arquilegítimo descontentamento e indignação das massas!!) ou se reduzem a renegação, se partem de bolcheviques, ou são uma manifestação habitual no pequeno burguês do seu medo e confusão habituais. De facto, o movimento de 3-4 de Julho surgiu do movimento de 20-21 de Abril e depois dele de modo tão inevitável como o Verão se segue à Primavera. O dever incondicional do partido proletário era permanecer com as massas, esforçando-se por conferir um carácter mais pacífico e organizado às suas justas acções, não se pôr à margem, não lavar as mãos como Pilatos com o argumento pedante de que a massa não estava organizada até ao último homem e de que no seu movimento pode haver excessos (como se não houvesse excessos em 20-21 de Abril! como se na história houvesse um só movimento de massas sério sem excessos!).

E a derrota dos bolcheviques depois de 4 de Julho decorreu de modo historicamente inevitável de todo o curso precedente dos acontecimentos precisamente porque a massa pequeno-burguesa e os seus chefes, os socialistas-revolucionários e os mencheviques, em 20-21 de Abril ainda não estavam atados pela ofensiva, ainda não estavam enredados num «governo de coligação» pelos acordozinhos com a burguesia, e até 4 de Julho tinham-se atado e enredado tanto que não podiam deixar de deslizar para a colaboração (nas medidas repressivas, nas calúnias, no massacre) com os democratas-constitucionalistas contra-revolucionários. Em 4 de Julho os socialistas-revolucionários e os mencheviques resvalaram definitivamente para o monturo do contra-revolucionarismo, porque vinham a resvalar continuamente para esse monturo em Maio e Junho, no governo de coligação e na aprovação da política de ofensiva.

Aparentemente desviámo-nos um pouco do nosso tema, da questão do encerramento do Pravda para a questão da apreciação histórica do 4 de Julho. Mas só aparentemente. Porque não se pode compreender um sem a outra. Vimos que o encerramento do Pravda, as prisões de bolcheviques e outras perseguições a eles não constituem senão - se olharmos para o fundo da questão e para a ligação dos acontecimentos - a realização do programa de há longo tempo da contra-revolução e em particular dos democratas-constitucionalistas.

É agora extremamente instrutivo ver quem precisamente e por que meios aplicou este programa.

Vejamos os factos. Em 2 e 3 de Julho o movimento cresce, as massas fervem, indignadas com a inacção do governo, com a carestia, com a desorganização económica, com a ofensiva. Os democratas-constitucionalistas saem, jogando ao «ganha-perde» e lançando um ultimato aos socialistas-revolucionários e mencheviques, deixando-os a eles, amarrados ao poder mas sem ter poder, pagar pela derrota e pela indignação das massas.

Em 2 e 3 de Julho os bolcheviques tentam deter a acção. Isto foi reconhecido mesmo por uma testemunha do Delo Naroda ao contar o que aconteceu em 2 de Julho no regimento de granadeiros. No dia 3 à noite o movimento transborda e os bolcheviques redigem um apelo sobre a necessidade de conferir ao movimento um carácter «pacífico e organizado». Em 4 de Julho os tiros provocatórios da direita aumentam o número de vítimas dos disparos de ambos os lados: é necessário sublinhar que a promessa do Comité Executivo de investigar os acontecimentos, de publicar um boletim duas vezes por dia, etc., etc., permaneceram uma promessa oca! Os socialistas-revolucionários e os mencheviques não fizeram absolutamente nada, nem sequer publicaram uma lista completa dos mortos de ambos os lados!!

No dia 4 durante a noite os bolcheviques redigiram um apelo sobre a interrupção das acções e nessa mesma noite ele foi publicado no Pravda. Mas nessa mesma noite começa, em primeiro lugar, a chegada de tropas contra-revolucionárias a Petrogrado (aparentemente por chamada ou com o consentimento dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques e dos seus sovietes, e além disso, naturalmente, ainda hoje se guarda o mais estrito silêncio sobre este ponto «delicado», apesar de já ter passado a menor necessidade de segredo!). Em segundo lugar, nessa mesma noite começam pogromes contra os bolcheviques realizados por destacamentos de cadetes e outros semelhantes, actuando claramente por encargo do comandante das tropas, Polovtsev, e do Estado-Maior. Na noite de 4 para 5 assaltam o Pravda, em 5 e 6 assaltam a sua tipografia, Trud, matam o operário Vóinov em plena luz do dia por ele levar o Listok Pravdi da tipografia, realizam buscas e prisões de bolcheviques, desarmam os regimentos revolucionários.

Quem é que começou a aplicar tudo isto? Não foi o governo nem foi o soviete mas a camarilha militar contra-revolucionária concentrada em torno do Estado-Maior, actuando em nome da «contra-espionagem», pondo em circulação as invenções de Perevérzev e Aléxinski, para «suscitar a fúria» das tropas, etc.

O governo está ausente. Os sovietes estão ausentes; eles tremem pela sua própria sorte, recebem uma série de informações de que os cossacos podem chegar e devastá-los. A imprensa cem-negrista e democrata-constitucionalista, que conduziu a caça contra os bolcheviques, inicia a caça contra os sovietes.

Os socialistas-revolucionários e os mencheviques amarraram-se de pés e mãos com toda a sua política. Como gente amarrada, chamaram (ou toleraram a chamada) de tropas contra-revolucionárias a Petrogrado. E isto amarrou-os ainda mais. Resvalaram para o mais fundo do repugnante monturo contra-revolucionário. Dissolvem cobardemente a sua própria comissão nomeada para investigar o «caso» dos bolcheviques. Entregam vilmente os bolcheviques à contra-revolução. Participam humildemente no cortejo funerário dos cossacos mortos, beijando desse modo a mão dos contra-revolucionários.

São homens amarrados. Estão no fundo do monturo.

Eles agitam-se, entregando uma pasta a Kérenski, indo a Canossa(N155) aos democratas-constitucionalistas, organizando um «Zemski Sobor»(N156) ou uma «coroação» do governo contra-revolucionário em Moscovo. Kérenski demite Polovtsev.

Mas todas estas agitações continuam a ser agitações, não modificando em nada o fundo da questão. Kérenski demite Polovtsev e ao mesmo tempo formaliza, legaliza, as medidas de Polovtsev, a sua política, encerra o Pravda, introduz a pena de morte para os soldados, a proibição dos comícios na frente, prossegue as prisões de bolcheviques (até Kollontai!) segundo o programa de Aléxinski.

A «essência da constituição» na Rússia está a definir-se com surpreendente clareza: a ofensiva na frente e a coligação com os democratas-constitucionalistas na retaguarda atiram os socialistas-revolucionários e os mencheviques para o monturo da contra-revolução. De facto o poder de Estado está a passar para as mãos dela, para as mãos da camarilha militar. Kérenski e o governo de Tsereteli e Tchernov são apenas um biombo que a esconde, são obrigados a legalizar a posteriori as suas medidas, as suas acções, a sua política.

O regateio de Kérenski, Tsereteli e Tchernov com os democratas-constitucionalistas tem uma importância de segunda ordem, se não de décima ordem. Quer vençam os democratas-constitucionalistas neste regateio quer Tsereteli e Tchernov se mantenham ainda «sozinhos», nem por isso se modifica o fundo da questão, a viragem dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários para a contra-revolução (viragem imposta por toda a sua política desde 6 de Maio) permanece o facto fundamental, principal, decisivo.

O ciclo do desenvolvimento partidário completou-se. Os socialistas-revolucionários e os mencheviques deslizaram de degrau em degrau, da «confiança» em Kérenski de 28 de Fevereiro a 6 de Maio, que os amarrou à contra-revolução, até ao 5 de Julho, quando deslizaram até ao fundo em direcção a ela.

Começa uma nova fase. A vitória da contra-revolução provoca que as massas se desiludam dos partidos socialista-revolucionário e menchevique e abre o caminho para a sua passagem à política de apoio ao proletariado revolucionário.


Notas de rodapé:

(N147) Trata-se do Congresso dos Deputados Camponeses de Toda a Rússia, realizado entre 4 e 28 de Maio (17 de Maio-10 de Junho) de 1917 em Petrogrado. Os socialistas-revolucionários tinham uma considerável maioria no congresso. Quanto à sua composição social, a maioria dos delegados ao congresso pertencia ao campesinato abastado, sendo o campesinato pobre representado pelos delegados militares. O congresso tornou-se arena de uma luta dos bolchevi-ques contra os socialistas-revolucionários pela conquista das massas camponesas. Lénine pronunciou no congresso um discurso sobre a questão agrária e, em nome da fracção bolchevique, apresentou um projecto de resolução por ele escrito em que se propunha que a terra fosse declarada propriedade de todo o povo e que se procedesse imediata-mente à distribuição gratuita aos camponeses das terras latifundiárias, sem esperar pela reunião da Assembleia Constituinte. Contudo, os dirigentes dos socialistas-revolucionários conseguiram fazer aprovar as suas resoluções no congresso. O congresso aprovou a política do Governo Provisório burguês e a entrada nele de «socialistas» e pronunciou-se pela continuação da guerra até à vitória e pela ofensiva na frente. O congresso adiou até à Assembleia Constituinte a resolução da questão agrária. As resoluções aprovadas pelo congresso exprimiam os interesses da burguesia rural, os kulaques. (retornar ao texto)

(N148) Vólia Naroda (A Vontade do Povo): jornal diário, órgão da ala direita do partido socialista-revolucionário. Publicou-se em Petrogrado entre Abril e Novembro de 1917. (retornar ao texto)

(N149) Rússkaia Vólia (A Liberdade Russa): jornal diário burguês que subsistia com fundos dos grandes bancos. Publicou-se em Petrogrado em 1916-1917. Depois da revolução democrática burguesa de Fevereiro levou a cabo uma campanha de calúnias contra os bolcheviques. (retornar ao texto)

(N150) Lénine refere-se ao Parlamento de Frankfurt, assembleia nacional alemã criada depois da revolução de Março de 1848 na Alemanha. Em vez de organizar as massas para lutar decididamente contra o absolutismo e o fraccionamento da Alemanha, o Parlamento reduziu toda a sua actividade a estéreis discussões sobre a Constituição imperial. (retornar ao texto)

(N151) Rabótchaia Gazeta (Jornal Operário): jornal diário dos mencheviques publicado em Petrogrado de Março a Novembro de 1917. (retornar ao texto)

(N152) Lénine refere-se à obra de Marx O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. (retornar ao texto)

(N153) Ver K. Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, in K. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas, t. l, p. 504. (retornar ao texto)

(N154) F. Engels, A Guerra dos Camponeses Alemães. (retornar ao texto)

(N155) Canossa: castelo no Norte de Itália. Em 1077 o imperador alemão Henrique IV, depois de sofrer uma derrota na luta contra o papa Gregório VII, foi obrigado a fazer penitência e esteve três dias, com as roupas de pecador arrependido, diante das portas do castelo, implorando ser recebido pelo papa para que este lhe retirasse a excomunhão e devolvesse o poder de imperador. Daí surgiu a expressão «ir a Canossa» - penitenciar-se, reconhecer-se culpado, aceitar a humilhação perante o adversário. (retornar ao texto)

(N156) Lénine refere-se à Conferência de Estado preparada pelo Governo Provisório com o objectivo de mobilizar as forças contra-revolucionárias para esmagar a revolução. A ideia da convocação dessa conferência teve o inteiro apoio dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques. Por temor, a burguesia decidiu realizar a conferência em Moscovo. A conferência realizou-se em 12-15 (25-28) de Agosto de 1917. Nela participaram representantes dos latifundiários e da burguesia, as cúpulas de comando do exército, antigos membros da Duma de Estado, dirigentes do partido democrata-constitucionalista; as delegações dos sovietes e de alguns sindicatos eram constituídas por mencheviques e socialistas-revolucionários. Nas intervenções do general Kornílov, do general Kalédine e de outros foi formulado o programa de esmagamento da revolução. Eles exigiam a liquidação dos sovietes, a supressão das organizações sociais no exército, o restabelecimento da pena de morte na frente, a condução da guerra até à vitória. (retornar ao texto)

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Inclusão 04/12/2018