Cartas sobre a Táctica

V. I. Lénine

26 de Abril de 1917

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Transcrição autorizada

Escrito: em 8-13 (21-26) de Abril de 1917
Fonte: Obras Escolhidas em seis tomos, Edições "Avante!", 1986, t3, pp 120-131.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.31, pp. 131-144.
Transcrição e HTML: Manuel Gouveia
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" — Edições Progresso Lisboa — Moscovo.

Prefácio

capa

Em 4 de Abril de 1917 tive de apresentar em Petrogrado um relatório sobre o tema indicado no título, primeiramente numa assembleia de bolcheviques. Eram delegados à conferência de toda a Rússia dos sovietes de deputados operários e soldados, delegados que tinham de partir e por isso não me podiam conceder nenhum adiamento. No fim da assembleia o seu presidente, camarada G. Zinóviev, propôs-me em nome de toda a assembleia que repetisse de imediato o meu relatório numa assembleia dos delegados bolcheviques e mencheviques que queriam discutir a questão da unificação do Partido Operário Social-Democrata da Rússia.

Por mais difícil que me fosse repetir imediatamente o meu relatório, não me considerei no direito de recusar, uma vez que o reclamavam tanto os meus correligionários como os mencheviques, que, devido à sua partida, realmente não me podiam conceder um adiamento.

No relatório li as minhas teses, publicadas no n.° 26 do Pravda(N58), de 7 de Abril de 1917(1*).

Tanto as teses como o meu relatório suscitaram divergências no seio dos próprios bolcheviques e da própria redacção do Pravda. Depois de uma série de reuniões, chegámos unanimemente à conclusão de que o mais adequado era discutir abertamente estas divergências, dando desse modo material para a conferência de toda a Rússia do nosso partido (o Partido Operário Social-Democrata da Rússia, unificado pelo Comité Central), que se iria reunir em 20 de Abril de 1917 em Petrogrado.

É em cumprimento desta decisão sobre a discussão que publico as cartas seguintes, sem pretender estudar nelas a questão em todos os aspectos, mas desejando apenas apontar os argumentos principais, particularmente essenciais para as tarefas práticas do movimento da classe operária.

Carta I
Apreciação do Momento

O marxismo exige de nós que tenhamos em conta do modo mais preciso e objectivamente verificável a correlação das classes e as particularidades concretas de cada momento histórico. Nós, bolcheviques, sempre nos esforçámos por ser fiéis a esta exigência, absolutamente obrigatória do ponto de vista de qualquer fundamentação científica de uma política.

«A nossa doutrina não é um dogma, mas um guia para a acção»(N59), disseram sempre Marx e Engels, zombando com razão com a aprendizagem de cor e a simples repetição de «fórmulas», capazes, no melhor dos casos, de apontar apenas tarefas gerais, necessariamente modificáveis pela situação económica e política concreta de cada fase particular do processo histórico.

Mas por que factos precisamente estabelecidos e objectivos deve o partido do proletariado revolucionário guiar-se agora para definir as tarefas e as formas da sua actuação?

Tanto na minha primeira Carta de Longe («A primeira etapa da primeira revolução»), publicada no Pravda n.°s 14 e 15, de 21 e 22 de Março de 1917, como nas minhas teses defini «a peculiaridade do momento actual na Rússia» como fase de transição da primeira etapa da revolução para a segunda. E por isso eu considerava que a palavra de ordem fundamental, a «tarefa do dia» neste momento, é: «operários, vós realizastes prodígios de heroísmo proletário e popular na guerra civil contra o tsarismo, deveis agora realizar prodígios de organização proletária e de todo o povo para preparar a vossa vitória na segunda etapa da revolução» (Pravda, n.° 15)(2*).

Mas em que consiste a primeira etapa?

Na passagem do poder de Estado para a burguesia.

Antes da revolução de Fevereiro-Março de 1917 o poder de Estado na Rússia estava nas mãos de uma velha classe, a saber: a classe da nobreza feudal latifundiária, encabeçada por Nicolau Románov.

Depois desta revolução o poder está nas mãos de outra classe, de uma classe nova, a saber: a burguesia.

A passagem do poder de Estado das mãos de uma classe para as mãos de outra é o sinal primeiro, principal, fundamental, de uma revolução, tanto no significado rigorosamente científico como no significado político prático deste conceito.

Nessa medida a revolução burguesa ou democrática burguesa na Rússia está terminada.

Aqui ouvimos um clamor de objecções de pessoas que gostam de se intitular «velhos bolcheviques»: acaso não dissemos nós sempre que a revolução democrática burguesa só é terminada pela «ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato»? acaso a revolução agrária, também democrática burguesa, terminou, acaso não é um facto, pelo contrário, que ela ainda não começou?

Respondo: as palavras de ordem e as ideias bolcheviques no geral foram plenamente confirmadas pela história, mas concretamente as coisas apresentaram-se diferentemente daquilo que podia (quem quer que seja), esperar, mais originais, mais peculiares, mais variegadas.

Ignorar, esquecer este facto significaria igualar-se aos «velhos bolcheviques» que já mais de uma vez desempenharam um triste papel na história do nosso partido, repetindo uma fórmula insensatamente aprendida de cor em vez de estudar a peculiaridade da realidade nova e viva.

A «ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato» se realizou(3*) na revolução russa, porque esta «fórmula» prevê apenas uma correlação de classes e não uma instituição política concreta que realize esta correlação, esta cooperação. O «soviete de deputados operários e soldados» — eis a «ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato» já realizada pela vida.

Esta fórmula já está caduca. A vida fê-la passar do reino das fórmulas para o reino da realidade, revestiu-a de carne e sangue, concretizou-a e desse modo transformou-a.

Na ordem do dia está já uma tarefa diferente, nova: a cisão entre os elementos proletários (antidefensistas, internacionalistas, «comunistas», que são pela passagem à comuna) no seio desta ditadura e os elementos pequeno-proprietários ou pequeno-burgueses (Tchkheídze, Tsereteli, Steklov, os socialistas-revolucionários e muitos outros defensistas revolucionários, adversários do avanço na via da comuna, partidários do «apoio» à burguesia e ao governo burguês).

Quem fala agora apenas de «ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato» está atrasado em relação à vida, devido a isso passou de facto para a pequena burguesia contra a luta de classe proletária, e é preciso mandá-lo para o arquivo das raridades «bolcheviques» pré-revolucionárias (poder-se-ia chamar arquivo dos «velhos bolcheviques»).

A ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato já foi realizada, mas de modo extraordinariamente original, com uma série de modificações extremamente importantes. Delas falarei em particular numa das cartas seguintes. Agora é necessário assimilar a verdade indiscutível de que um marxista deve ter em conta a vida viva, os factos precisos da realidade, e não continuar a agarrar-se a uma teoria de ontem, que, como qualquer teoria, no melhor dos casos apenas indica o fundamental, o geral, apenas se aproxima da apreensão da complexidade da vida.

«A teoria, meu amigo, é cinzenta, mas é verde a árvore eterna da vida.»(N60)

Quem coloca a questão da «terminação» da revolução burguesa à velha maneira sacrifica o marxismo vivo à letra morta.

À velha maneira as coisas apresentam-se assim: a dominação da burguesia pode e deve ser seguida pela dominação do proletariado e do campesinato, pela sua ditadura.

Mas na vida viva as coisas se apresentaram de modo diferente: aconteceu um entrelaçamento de uma e da outra extraordinariamente original, novo, sem precedentes. Existem lado a lado, juntas, ao mesmo tempo, tanto a dominação da burguesia (o governo de Lvov e Gutchkov) como a ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato, que entrega voluntariamente o poder à burguesia, que se transforma voluntariamente em apêndice dela.

Porque não se pode esquecer que de facto em Petrogrado o poder está nas mãos dos operários e soldados; o novo governo não exerce nem pode exercer violência sobre eles, porque não existe nem polícia, nem um exército separado do povo, nem um funcionalismo que esteja omnipotentemente acima do povo. Isto é um facto. Isto é precisamente um facto que é característico do Estado do tipo da Comuna de Paris. Este facto não se encaixa nos velhos esquemas. É preciso saber adaptar os esquemas à vida, e não repetir palavras que perderam o sentido sobre a «ditadura do proletariado e do campesinato» em geral.

Abordemos a questão de outro lado para melhor a esclarecer.

Um marxista não deve abandonar o terreno preciso da análise das relações de classe. No poder está a burguesia. Mas a massa dos camponeses acaso não constitui também uma burguesia de outra camada, de outro tipo, de outro carácter? De onde é que decorre que esta camada não pode chegar ao poder, «terminando» a revolução democrática burguesa? Porque é que isso é impossível?

É assim que frequentemente raciocinam os velhos bolcheviques.

Respondo — isso é plenamente possível. Mas um marxista, ao considerar o momento, não deve partir do possível mas do real.

A realidade mostra-nos o facto de que deputados soldados e camponeses livremente eleitos entram livremente para o segundo governo, o governo paralelo, completam-no, desenvolvem-no e concluem-no livremente. E com igual liberdade entregam o poder à burguesia — fenómeno que de modo nenhum «infringe» a teoria do marxismo, pois nós sempre soubemos e indicámos repetidamente que a burguesia não se mantém apenas pela violência, mas também pela falta de consciência, pela rotina, pelo embrutecimento, pela desorganização das massas.

E perante esta realidade de hoje é perfeitamente ridículo eludir o facto e falar de «possibilidades».

É possível que o campesinato tome toda a terra e todo o poder. Não só não esqueço esta possibilidade, não limito o meu horizonte apenas ao dia de hoje, mas formulo directa e precisamente o programa agrário tendo em conta um fenómeno novo: uma cisão mais profunda entre os assalariados agrícolas e camponeses mais pobres e os camponeses proprietários.

Mas também é possível uma coisa diferente: é possível que os camponeses dêem ouvidos aos conselhos do partido pequeno-burguês dos socialistas-revolucionários, que se sujeitou à influência dos burgueses, passou para o defensismo e aconselha a esperar até à Assembleia Constituinte(N61), embora até agora nem sequer ter sido marcada a data da sua convocação!(4*)

É possível que os camponeses mantenham, prossigam o seu acordo com a burguesia, acordo que eles agora concluíram através dos sovietes de deputados operários e soldados não só formalmente mas também de facto.

São possíveis diversas coisas. Seria o maior dos erros esquecer o movimento agrário e o programa agrário. Mas seria também um erro esquecer a realidade, que nos mostra o facto do entendimento — ou, empregando uma expressão mais precisa, menos jurídica, de maior sentido económico de classe -, o facto da colaboração de classes entre a burguesia e o campesinato.

Quando este facto deixar de ser um facto, quando o campesinato se separar da burguesia, tomar a terra contra ela, tomar o poder contra ela — então isso será uma nova etapa da revolução democrática burguesa, e dela falaremos à parte.

Um marxista que, devido à possibilidade dessa etapa futura, esquecesse os seus deveres agora, quando o campesinato tem um entendimento com a burguesia, transformar-se-ia num pequeno burguês. Porque ele de facto estaria a pregar ao proletariado a confiança na pequena burguesia («ela, esta pequena burguesia, este campesinato, deve separar-se da burguesia ainda nos limites da revolução democrática burguesa»). Devido à «possibilidade» de um agradável e doce futuro, quando o campesinato não for a cauda da burguesia, quando os socialistas-revolucionários, os Tchkheídze, os Tsereteli, os Steklov, não forem um apêndice do governo burguês — devido à «possibilidade» de um agradável futuro ele esqueceria o desagradável presente, em que o campesinato ainda é a cauda da burguesia, em que os socialistas-revolucionários e os sociais-democratas ainda não abandonaram o papel de apêndice do governo burguês, de oposição «de sua majestade»(N62) Lvov.

Esta pessoa hipotética assemelhar-se-ia a um adocicado Louis Blanc, a um kautskista malífluo, mas de modo nenhum a um marxista revolucionário.

Mas não nos ameaçará o perigo de cair no subjectivismo, no desejo de «saltar por cima» da revolução de carácter democrático burguês não concluída — que ainda não esgotou o movimento camponês — para a revolução socialista?

Se eu dissesse «não o tsar, mas um governo operário»(N63) esse perigo ameaçar-me-ia. Mas eu não disse isso, disse outra coisa. Disse que na Rússia não pode haver outro governo (sem contar o burguês) que não sejam os sovietes de deputados operários, assalariados agrícolas, soldados e camponeses. Disse que agora na Rússia o poder pode passar de Gutchkov e Lvov para estes sovietes, e neles predomina exactamente o campesinato, predominam os soldados, predomina a pequena burguesia, para nos exprimirmos com um termo científico, marxista, para não utilizar uma caracterização corrente, filistina, profissional, mas uma caracterização de classe.

Nas minhas teses assegurei-me absolutamente contra qualquer ideia de saltar por cima do movimento camponês ou pequeno-burguês em geral, que não se esgotou, contra qualquer jogo à «tomada do poder» por um governo operário, contra qualquer aventura blanquista(N64), pois apontei directamente a experiência da Comuna de Paris. E esta experiência, como é sabido e como Marx mostrou em 1871 e Engels em 1891(N65), excluiu absolutamente o blanquismo, garantiu absolutamente a dominação directa, imediata, incondicional, da maioria e a actividade das massas apenas na medida da actuação consciente da própria maioria.

Nas teses eu reduzi a questão do modo mais definido à luta pela influência dentro dos sovietes de deputados operários, assalariados agrícolas, camponeses e soldados. Para não permitir nem sombra de dúvida a este respeito sublinhei duas vezes nas teses a necessidade de um trabalho de «explicação» paciente, persistente, «adaptado às necessidades práticas das massas».

Pessoas ignorantes ou renegados do marxismo, como o Sr. Plekhánov, etc., podem gritar acerca do anarquismo, do blanquismo, etc. Quem quiser pensar e aprender não pode deixar de compreender que o blanquismo é a tomada do poder por uma minoria, enquanto os sovietes de deputados operários, etc., são notoriamente a organização directa e imediata da maioria do povo. Um trabalho reduzido à luta pela influência dentro desses sovietes não pode, simplesmente não pode, cair no pântano do blanquismo. E não pode cair no pântano do anarquismo porque o anarquismo é a negação da necessidade do Estado e do poder de Estado para a época da passagem da dominação da burguesia para a dominação do proletariado. E eu, com uma clareza que exclui qualquer possibilidade de mal-entendidos, defendo a necessidade do Estado para esta época, mas, de acordo com Marx e a experiência da Comuna de Paris, não do Estado parlamentar burguês habitual, mas de um Estado sem exército permanente, sem uma polícia oposta ao povo, sem um funcionalismo colocado acima do povo.

Se o Sr. Plekhánov grita com todas as forças no seu Edinstvó(N66) sobre o anarquismo, isso apenas prova mais uma vez a sua ruptura com o marxismo. Ao meu convite no Pravda (n.° 26) para dizer o que ensinaram Marx e Engels sobre o Estado em 1871, 1872 e 1875 tem e terá o Sr. Plekhánov de responder com o silêncio sobre a essência da questão e com gritos à maneira da burguesia enraivecida.

O ex-marxista Sr. Plekhánov não compreendeu de todo em todo a doutrina do marxismo sobre o Estado. Aliás, os germes desta incompreensão notam-se também na sua brochura em alemão sobre o anarquismo(N67).

Vejamos agora como é que o camarada I. Kámenev, numa nota no n.° 27 do Pravda, formula as suas «divergências» com as minhas teses e com as concepções expostas acima. Isso ajudar-nos-á a esclarecê-las melhor.

«No que diz respeito ao esquema geral do camarada Lénine», escreve o camarada Kámenev, «ele apresenta-se-nos como inaceitável, visto que parte do reconhecimento de que a revolução democrática burguesa está terminada e conta com a imediata transformação desta revolução em revolução socialista...»

Há aqui dois grandes erros.

Primeiro. A questão da «terminação» da revolução democrática burguesa não é correctamente colocada. Esta questão é colocada de um modo abstracto, simples, unicolor, se assim nos podemos exprimir, que não corresponde à realidade objectiva. Quem coloca a questão assim, quem pergunta agora se «terá terminado a revolução democrática burguesa», sem mais, priva-se da possibilidade de compreender uma realidade extraordinariamente complexa, pelo menos «bicolor». Isto em teoria. E na prática — rende-se irremediavelmente ao revolucionarismo pequeno-burguês.

Com efeito, a realidade mostra-nos tanto a passagem do poder para a burguesia (uma revolução democrática burguesa de tipo habitual «terminada») como a existência, ao lado do verdadeiro governo, de um governo paralelo, que representa a «ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato». Este último «também-governo» cedeu ele próprio o poder à burguesia, amarrou-se ele próprio ao governo burguês.

Será esta realidade abarcada pela fórmula velho-bolchevique do camarada Kámenev: «a revolução democrática burguesa não está terminada»?

Não, a fórmula está ultrapassada. Não serve para nada. É morta. Serão vãos os esforços para a ressuscitar.

Segundo. Uma questão prática. Não se sabe se actualmente ainda pode existir na Rússia uma «ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato» independente, separada do governo burguês. Não se pode basear no desconhecido uma táctica marxista.

Mas se isso puder ainda acontecer, o caminho para isso é um e só um: a separação imediata, decidida e irrevogável dos elementos comunistas do movimento dos elementos pequeno-burgueses. Porquê?

Porque toda a pequena burguesia, não por acaso mas necessariamente, se voltou para o chauvinismo ( = defensismo(N68)), para o «apoio» à burguesia, para a dependência em relação a ela, para o medo de passar sem ela, etc. etc.

Como é que se pode «empurrar» a pequena burguesia para o poder se esta pequena burguesia já hoje pode mas não quer tomá-lo?

Só pela separação do partido proletário, comunista, pela luta de classe proletária, liberta da timidez destes pequenos burgueses. Só a coesão dos proletários livres, de facto e não em palavras, da influência da pequena burguesia é capaz de tornar tão «quente» o chão debaixo dos pés da pequena burguesia que, em certas condições, ela tenha de tomar o poder; não está mesmo excluído que Gutchkov e Miliukov sejam — mais uma vez em certas circunstâncias — favoráveis ao poder absoluto, ao poder único de Tchkheídze, de Tsereteli, dos socialistas-revolucionários, de Steklov, pois, apesar de tudo, eles são «defensistas»!

Quem separar desde já, imediata e irrevogavelmente, os elementos proletários dos sovietes (isto é, o partido proletário, comunista) dos elementos pequeno-burgueses exprime correctamente os interesses do movimento em ambos os casos possíveis: tanto no caso de a Rússia viver ainda uma «ditadura do proletariado e do campesinato» particular, independente, não subordinada à burguesia, como no caso de a pequena burguesia não ser capaz de se separar da burguesia e vacilar eternamente (isto é, até ao socialismo) entre ela e nós.

Quem se guiar na sua actividade apenas pela simples fórmula «a revolução democrática burguesa não está terminada» assume desse modo como que a garantia de que a pequena burguesia é seguramente capaz de ser independente da burguesia. Isso é pôr-se irremediavelmente neste momento à mercê da pequena burguesia.

A propósito. Acerca da «fórmula» ditadura do proletariado e do campesinato, apesar de tudo será oportuno recordar que em Duas Tácticas (Julho de 1905) eu sublinhava especialmente (p. 435 de Em 12 Anos):

«A ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato tem, como tudo no mundo, o seu passado e o seu futuro. O seu passado é a autocracia, o regime de servidão, a monarquia, os privilégios... O seu futuro é a luta contra a propriedade privada, a luta do trabalhador assalariado contra o patrão, a luta pelo socialismo...»(5*)

O erro do camarada Kámenev consiste em que em 1917 ele só olha para o passado da ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato. Mas para ela de facto já começou o futuro, porque os interesses e a política do operário assalariado e do pequeno patrão de facto já divergiram, e sobre uma questão tão importante como o «defensismo», como a atitude em relação à guerra imperialista.

E aqui abordo o segundo erro no raciocínio citado do camarada Kámenev. Ele censura-me por o meu esquema «contar» com a «imediata transformação desta revolução (democrática burguesa) em revolução socialista».

Isto é falso. Eu não só não «conto» com a «imediata transformação» da nossa revolução em revolução socialista como previno directamente contra isso, declaro directamente na tese n° 8: «... Não "introdução" do socialismo como nossa tarefa imediata...»

Não será claro que uma pessoa que conta com a transformação imediata da nossa revolução em revolução socialista não poderia erguer-se contra a tarefa imediata de introduzir o socialismo?

Mais ainda. É mesmo impossível introduzir «imediatamente» na Rússia o «Estado-comuna» (isto é, um Estado organizado segundo o tipo da Comuna de Paris), porque para isso é necessário que a maioria dos deputados em todos (ou na maioria) dos sovietes tenha clara consciência de toda a falsidade e de todo o dano da táctica e da política dos socialistas-revolucionários, de Tchkheídze, Tsereteli, Steklov, etc. E eu declarei de modo perfeitamente preciso que neste domínio só «conto» com uma explicação «paciente» (será necessário ser paciente para alcançar uma modificação que é possível realizar «imediatamente»?)!

O camarada Kámenev agitou-se de modo um bocadinho «impaciente» e repetiu o preconceito burguês acerca da Comuna de Paris, que teria querido introduzir «imediatamente» o socialismo. Não é assim. A Comuna, infelizmente, foi demasiado lenta a introduzir o socialismo. A essência real da Comuna não consiste naquilo em que habitualmente a procuram os burgueses mas na criação de um tipo particular de Estado. E na Rússia esse Estado nasceu, são os sovietes de deputados operários e soldados!

O camarada Kámenev não reflectiu sobre o facto, sobre o significado dos sovietes existentes, sobre a sua identidade de tipo e de carácter sociopolítico com o Estado da Comuna e, em vez de estudar o facto, pôs-se a falar de uma coisa com que eu «contaria» como um futuro «imediato». Daí resultou, infelizmente, a repetição do método de muitos burgueses: da questão de saber o que são os sovietes de deputados operários e soldados, se não de um tipo superior à república parlamentar, se eles são mais úteis para o povo, se eles são mais democráticos, se eles são mais adequados para lutar, por exemplo, contra a falta de cereais, etc., desvia-se a atenção desta questão vital, real, colocada pela vida na ordem do dia, para a questão oca, pretensamente científica, na realidade desprovida de conteúdo, professoralmente-morta, do «contar com uma transformação imediata».

É uma questão oca e falsamente colocada. Eu «conto» apenas que, exclusivamente que, os operários, soldados e camponeses resolverão melhor do que os funcionários, melhor do que os polícias, as difíceis questões práticas do aumento da produção de cereais, da sua melhor distribuição, do melhor abastecimento dos soldados, etc., etc.

Estou profundamente convencido de que os sovietes de deputados operários e soldados tornarão realidade mais rapidamente e melhor a independência da massa do povo do que a república parlamentar (noutra carta falarei mais em pormenor da comparação de ambos os tipos de Estado). Eles resolverão melhor, de modo mais prático e seguro, como é que se pode dar e quais precisamente os passos que se pode dar para o socialismo. O controlo do banco, a fusão de todos os bancos num só, isso ainda não é o socialismo, mas é um passo para o socialismo. Hoje esses passos são dados pelos Junkers e pelos burgueses da Alemanha contra o povo. Amanhã o soviete de deputados operários e soldados saberá dá-los muito melhor em benefício do povo se tiver nas mãos todo o poder de Estado.

E que é que obriga a esses passos?

A fome. A desorganização da economia. A bancarrota que nos ameaça. Os horrores da guerra. Os horrores das feridas causadas à humanidade pela guerra.

O camarada Kámenev conclui a sua nota com a declaração de que «numa ampla discussão espera defender o seu ponto de vista como único possível para a social-democracia revolucionária na medida em que ela queira e deva manter-se até ao fim o partido das massas revolucionárias do proletariado e não transformar- se num grupo de propagandistas comunistas».

Parece-me que nestas palavras é visível uma apreciação profundamente errada do momento. O camarada Kámenev opõe o «partido das massas» ao «grupo de propagandistas». Mas precisamente agora as massas cederam à embriaguez do defensismo «revolucionário». Não será mais decoroso também para os internacionalistas neste momento saber resistir à embriaguês «de massas» do que «querer permanecer» com as massas, isto é, ceder à epidemia geral? Não vimos nós em todos os países europeus beligerantes como os chauvinistas se justificaram com o desejo de «permanecer com as massas»? Não será obrigatório saber durante um certo tempo estar em minoria contra a embriaguês «de massas»? Não será o trabalho precisamente dos propagandistas exactamente no momento actual um ponto central para libertar a linha proletária da embriaguês defensista e pequeno-burguesa «de massas»? Foi precisamente a fusão das massas, tanto proletárias como não proletárias, sem examinar as diferenças de classe no seio das massas, que foi uma das condições da epidemia defensista. Não é certamente muito próprio falar com desprezo de um «grupo de propagandistas» da linha proletária.


Notas de rodapé:

(N58) Pravda (A Verdade): jornal diário legal bolchevique; o primeiro número do jornal publicou-se em Petersburgo em 22 de Abril (5 de Maio) de 1912. O jornal era publicado com fundos recolhidos pelos próprios operários. Era Lénine que dirigia o Pravda. Escrevia quase diariamente para o jornal, dava indicações à sua redacção, procurava que o jornal tivesse um espírito combativo e revolucionário. Lénine definia a publicação de um diário operário como uma grande obra histórica realizada pelos operários de Petersburgo.
O Pravda foi submetido a constantes perseguições policiais. Em 8 (21) de Julho de 1914 o jornal foi encerrado.
A publicação do Pravda foi retomada depois da revolução democrática burguesa de Fevereiro de 1917. A partir de Março de 1917o jornal começou a ser publicado como órgão dos Comités Central e de Petrogrado do POSDR. Neste período o Pravda desenvolveu uma luta pelo plano leninista de passagem da revolução democrática burguesa à revolução socialista. Em Julho-Outubro de 1917 o Pravda, perseguido pelo Governo Provisório contra-revolucionário, mudou repetidamente de nome. Depois da vitória da revolução socialista de Outubro de 1917 o jornal voltou a publicar-se com o seu antigo nome: Pravda.
É excepcional a importância do Pravda na história do partido bolchevique e da revolução socialista. O jornal foi um propagandista, agitador e organizador colectivo na luta pela aplicação da política do partido, travou uma luta decidida contra diferentes grupos e correntes antipartido e desmascarou o seu papel de traidores. O Pravda lutou contra o oportunismo e o centrismo internacionais. O jornal educava os operários no espírito do marxismo revolucionário, contribuiu para um grande crescimento do partido, para a coesão das suas fileiras, para o reforço da sua ligação com as massas. A geração de operários de vanguarda educados pelo Pravda desempenhou um destacado papel na revolução socialista de Outubro e na construção do socialismo.
O Pravda ocupa um lugar importantíssimo na história da imprensa bolchevique. Foi o primeiro jornal operário de massas legal e marcou uma nova etapa no desenvolvimento da imprensa da classe operária da Rússia e do proletariado internacional. Desde 1922 o dia da publicação do primeiro número do Pravda é o dia da imprensa operária. (retornar ao texto)

(1*) Em apêndice à presente carta reproduzo essas teses, juntamente com breves notas explicativas, deste número do Pravda. [Ver Sobre as Tarefas do Proletariado na Presente Revolução (Teses de Abril), in V. I. Lénine, Obras Escolhidas em três tomos, Edições «Avante!» — Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1978, t. 2, pp. 11-16. (N. Ed.)] (retornar ao texto)

(N59) Carta de F. Engels a Sorge de 29 de Novembro de 1886. (retornar ao texto)

(2*) Ver Obras Escolhidas de Lénine em Seis Tomos, p. 87. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(N60) Em certa forma e em certa medida. (Nota do Autor) (retornar ao texto)

(3*) Lénine cita aqui palavras de Mefistófeles, da tragédia Fausto de Goethe. (retornar ao texto)

(N61) Assembleia Constituinte: instituição parlamentar na Rússia. Antes da revolução socialista de Outubro a burguesia travou a formação desta instituição da legalidade democrática burguesa. As eleições realizaram-se em Novembro de 1917 segundo listas constituídas antes da Revolução de Outubro, numa situação em que uma importante parte dos trabalhadores, e em primeiro lugar o campesinato, não tinha ainda tido tempo para compreender verdadeiramente o significado da Grande Revolução Socialista de Outubro. As forças contra-revolucionárias (socialistas-revolucionários de direita, mencheviques, democratas-constitucionalistas), que tinham tido a maioria dos votos nas eleições, tentaram utilizar a Assembleia Constituinte para se apoderarem do poder de Estado. Na sessão da Assembleia Constituinte realizada em Petrogrado em 5(18) de Janeiro de 1918 a maioria contra-revolucionária pronunciou-se abertamente contra o reconhecimento do poder soviético e dos seus decretos. Na noite de 6 (19) para 7 (20) de Janeiro o Comité Executivo Central dos Sovietes de Toda a Rússia adoptou um decreto sobre a dissolução da Assembleia Constituinte. (retornar ao texto)

(4*) Para que as minhas palavras não sejam mal interpretadas, direi imediatamente, adiantando-me: sou absolutamente favorável a que os sovietes de assalariados agrícolas e de camponeses tomem imediatamente toda a terra, mas observem eles próprios muito estritamente a ordem e a disciplina, não admitam nem a menor deterioração dos edifícios, construções, gado, não desorganizem de nenhum modo a economia e a produção de cereais, antes a reforcem, pois os soldados precisam do dobro do pão e o povo não deve passar fome. (Nota do Autor) (retornar ao texto)

(N62) A expressão «oposição de sua majestade» pertence ao dirigente do partido democrata-constitucionalista P. Miliukov. Num discurso num almoço do Lord-Mayor de Londres em 19 de Junho (2 de Julho) de 1909 Miliukov declarou: «... enquanto na Rússia existir uma câmara legislativa que controla o orçamento, a oposição russa permanece oposição de sua majestade e não oposição a sua majestade» [Retch n.° 167, 21 de Junho (4 de Julho) de 1909]. (retornar ao texto)

(N63) «Não o tsar, mas um governo operário»: palavra de ordem antibolchevique lançada pela primeira vez pelo menchevique Parvus em 1905. Esta palavra de ordem era uma das teses principais da «teoria» trotskista da revolução permanente — uma revolução sem o campesinato, oposta à teoria leninista da transformação da revolução democrática burguesa em revolução socialista com hegemonia do proletariado no movimento popular. (retornar ao texto)

(N64) Blanquismo: corrente política ligada ao nome de Louiis Auguste Blanqui, eminente revolucionário francês e representante do comunismo utópico. Os blanquistas negavam a luta de classes e consideravam que, mesmo não existindo uma situação revolucionária, um reduzido grupo de conspiradores não ligado à classe revolucionária podia levar a cabo uma insurreição vitoriosa. (retornar ao texto)

(N65) K. Marx, A Guerra Civil em França. Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, in Obras Escolhidas em três tomos, t. 2, pp. 220-266. F. Engels, «Introdução» à obra de K. Marx A Guerra Civil em França, in Obras Escolhidas em três tomos, t. 2, pp. 195-206. (retornar ao texto)

(N66) Edinstvó (Unidade): jornal legal publicado em Petersburgo em Maio-Junho de 1914 por um grupo de mencheviques partidistas encabeçado por Plekhánov. Os plekhanovistas, ao mesmo tempo que continuavam a adoptar as posições do menchevismo, pronunciavam-se pela conservação e reforço da organização partidária ilegal e, com este objectivo, formaram bloco com os bolcheviques. (retornar ao texto)

(N67) Lénine refere-se à obra de Plekhánov Anarquismo e Socialismo, editada pela primeira vez em alemão, em Berlim, em 1894. (retornar ao texto)

(N68) Durante a Primeira Guerra Mundial os mencheviques, encabeçados por Plekhánov, assumiram posições defensistas. Advogavam a ideia na «não oposição à guerra», exortavam ao apoio ao governo tsarista nos seus esforços de guerra, defendiam que a Rússia travasse a guerra até à vitória final, considerando inadmissíveis em tempo de guerra quaisquer acções revolucionárias do proletariado contra o governo. (retornar ao texto)

(5*) Ver Obras Escolhidas de Lénine em Seis Tomos, t. l, p. 229. (N. Ed.) (retornar ao texto)

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Inclusão 22/05/2018