Materialismo e Empiro-Criticismo
Notas e Críticas Sobre uma Filosofia Reacionária

V. I. Lênin

Capítulo III - A Teoria do Conhecimento do Empiro-Criticismo e do Materialismo Dialético
(Conclusão)


15. Da Causalidade e da Necessidade na Natureza


A questão da causalidade é de particular importância na definição da tendência dos "ismos" mais recentes. Vejamo-la, pois.

Consideremos, primeiramente, a concepção da teoria materialista do conhecimento. Em sua já mencionada resposta a R. Haym, L. Feuerbach expõe, com notável clareza, suas opiniões a respeito:

"A natureza e o espirito humano, diz Haym, divorciam-se completamente, na sua opinião (sua, de Feuerbach): um abismo intransponível para um e para o outro abre-se entre eles. Haym baseia essa crítica no parágrafo 48 da minha Essência da religião, onde está escrito:

"A natureza não pode ser compreendida senão por si mesma; sua necessidade não é uma necessidade humana ou lógica, metafísica; isolada, a natureza é o ser ao qual não se pode aplicar nenhuma medida humana, se bem que comparemos seus fenômenos a fenômenos humanos análogos e lhes apliquemos, afim de torná-la mais inteligível, expressões e concepções humanas, tais como ordem, fim, lei, forçados a isso que somos pela nossa própria linguagem."

Que significa isso? Quero dizer que não há nenhuma ordem na natureza, de modo que, por exemplo, o verão poderia seguir-se ao outono, o inverno à primavera ou o outono ao inverno? que não há fim da natureza, de maneira que, por exemplo, nenhuma coordenação exista entre os pulmões e o ar, entre a luz e a visão entre o som e o ouvido? que não há ordem na natureza, de modo que, por exemplo, a terra percorra ora uma órbita elíptica, ora uma órbita circular, completando sua revolução em torno do sol ora num ano, ora num quarto de hora? Que absurdo! Que queria eu dizer, então, no trecho citado? Pretendia apenas traçar uma linha de demarcação entre o que pertence à natureza e o que pertence ao homem. Eu não dizia que nada existe de real na natureza e que nada corresponde às palavras e às ideias sobre ordem, fim, lei; apenas negava a identidade do pensamento e do ser, negava que a ordem, o fim, etc. fossem, na natureza, os mesmos que no cérebro ou na sensibilidade do homem. A ordem, o fim, a lei não passam de palavras com auxilio das quais o homem traduz, em sua língua, afim de as compreender, as coisas da natureza; essas palavras não são destituídas nem de sentido e nem de conteúdo objetivo (nicht sinn —, d. h. gegendstandlose Worte); cumpre apenas distinguir o original da tradução. A ordem, o fim, a lei são expressões, no sentido humano.

O teísmo conclui diretamente do caráter fortuito da ordem do fim e das leis da natureza a sua origem arbitrária, a existência de um ser diferente da natureza, que traz a ordem, o fim e a lei à natureza caótica (dissolute) em si mesma (an sich), estranha a qualquer determinação. O espírito dos teístas...está em contradição com a natureza, de cuja essência nada, mas absolutamente nada, compreende. O espírito dos teístas divide a natureza em dois seres, um material e o outro formal, ou espiritual" (Werke, t. VII, pp. 518-520).

Feuerbach admite, portanto, na natureza, as leis objetivas, não se refletindo a causalidade objetiva nas ideias humanas sobre a ordem, as leis, etc. senão com uma exatidão aproximada. A admissão das leis objetivas na natureza está, para Feuerbach indissoluvelmente ligada à admissão da realidade objetiva do mundo exterior, das coisas, dos corpos, dos objetos refletidos pela nossa consciência. As ideias de Feuerbach são as de um materialista consequente. E Feuerbach considera, com razão, como relacionadas com a corrente fideísta todas aquelas ideias, ou, mais exatamente, a corrente filosófica que, em matéria de causalidade, preconiza a negação das leis, da causalidade e da necessidade objetivas na natureza. Realmente, é claro que, em matéria de causalidade, a corrente subjetiva, que atribui a origem da ordem e das leis da natureza, não ao mundo exterior objetivo, mas à consciência, ao espírito, à lógica, etc., destaca da natureza o espírito humano e, não se limitando a opor um ao outro, faz da natureza uma parte do espírito, em vez de considerar o espírito como uma parte da natureza. A tendência subjetiva reduz-se, na questão da causalidade, ao idealismo filosófico (de que as teorias da causalidade de Hume e de Kant não são senão variedades), isto é, a um fideísmo atenuado, diluído. O materialismo e a admissão das leis objetivas da natureza e da tradução aproximadamente exata dessas leis no cérebro humano.

Engels, se não me engano, não opôs particularmente sua concepção materialista da causalidade às outras correntes. Teria sido supérfluo, desde que se havia dessolidarizado de todos os agnósticos na questão mais importante da realidade objetiva do mundo exterior. Mas, para quem tenha lido atentamente as obras filosóficas de Engels, deve ter ficado bem claro que ele não admitia a menor dúvida sobre a existência das leis da causalidade e da necessidade objetivas da natureza. Limitemo-nos a alguns exemplos. Engels escreve no primeiro parágrafo do Anti-Dühring:

"Para conceber os aspectos parciais (ou as particularidades do quadro de conjunto dos fenômenos mundiais), devemos destacá-los de suas relações naturais ou históricas e estudá-los separadamente, de acordo com suas propriedades particulares, com as causas e os efeitos particulares de cada um deles" (p. 6).

É evidente que essas relações naturais, essas relações entre os fenômenos da natureza têm uma existência objetiva. Engels acentua notadamente a concepção dialética de causa e efeito:

"As noções de causa e efeito não têm valor, como tais, senão em sua aplicação a um caso particular; mas, desde que consideramos esse caso particular em suas relações gerais com o conjunto do universo, essas noções se concentram e se entrelaçam na interdependência universal, no seio da qual a causa e o efeito não param de variar de função: o que, aqui ou agora, é uma causa, torna-se, lá ou depois, um efeito, e inversamente" (p. 8).

Desse modo, a concepção humana da causa e do efeito sempre simplifica um pouco as relações objetivas dos fenômenos da natureza, que ela reflete apenas por aproximação, isolando artificialmente esse ou aquele processo universal único. Se constatamos a correspondência do pensamento em relação às leis da natureza, isso se torna compreensível, diz Engels, desde que se tome em consideração que o pensamento e a consciência são

"os produtos do cérebro humano, o próprio homem sendo um produto da natureza". Compreende-se que, "sendo os produtos do cérebro humano, eles mesmos, em última análise, produtos da natureza, longe de estarem em contradição com o conjunto da natureza (Naturzusammenhang), a ele correspondem" (p. 22).

As relações naturais, objetivas, entre os fenômenos do universo estão fora de dúvida. Engels fala constantemente das "leis da natureza", da "necessidade da natureza" (Naturnotwendigkeit), e não considera indispensável esclarecer mais especialmente a teses geralmente conhecidas do materialismo.

Podemos ler em seu Ludwig Feuerbach:

"As leis gerais do movimento do mundo exterior e do pensamento humano não são idênticas no fundo e não diferem, suas expressões, senão na medida em que o cérebro humano possa aplicar conscientemente; enquanto que, natureza — e até agora, frequentemente na história humana —, elas abrem inconscientemente seu caminho, em meio de uma multidão de acasos aparentes, sob a forma de necessidades exteriores" (p. 38).

Engels acusa a antiga filosofia por ter substituído a "relação real, que ela ainda não conhecia" (entre os fenômenos da natureza) pelas "relações ideais, fantasistas" (p. 42). A admissão das leis objetivas da causalidade e da necessidade na natureza é muito nitidamente expressa por Engels, que, alias, frisa o caráter relativo de nossas transcrições humanas, aproximadas de tais leis, nessas ou naquelas noções.

Passando a J. Dietzgen, devemos observar, antes de tudo, uma das inumeráveis maneiras de deformar o problema, familiares aos nossos partidários de Mach. Um dos autores dos Ensaios "de" filosofia marxista, Hellfond, afirma:

"Os pontos fundamentais da concepção de Dietzgen podem ser resumidos do seguinte modo:... 9) as relações de causalidade que atribuímos às coisas não estão contidas nelas, na realidade" (p. 248).

Eis um absurdo, de um polo a outro. O sr. Hellfond, cujas ideias representam uma salada de materialismo e agnosticismo, falsificou despudoradamente o pensamento de J. Dietzgen. Na verdade, podem-se encontrar, em J. Dietzgen, muitos erros, confusões e imprecisões, que alegam os discípulos de Mach e constrangem todo materialista a ver em Dietzgen um filósofo às vezes inconsequente. Mas somente os Hellfonds, discípulos russos de Mach, são capazes de atribuir a Dietzgen a negação pura e simples da concepção materialista da causalidade:

"O conhecimento científico objetivo — escreve Dietzgen na Essência do trabalho intelectual (edição alemã de 1903)investiga as causas, não na fé ou na especulação, mas na experiência, na indução; não a priori, mas a posteriori. As ciências naturais investigam as causas, não fora dos fenômenos e nem além dos fenômenos, mas dentro deles e em virtude deles" (pp. 94-95).

"As causas são produtos da faculdade de pensar. Mas não são produtos puros: nascem da união dessa faculdade com os dados dos sentidos. Os materiais fornecidos pela sensibilidade dão à causa assim engendrada uma existência objetiva. Do mesmo modo que exigimos que a verdade corresponda a um fenômeno objetivo, assim também exigimos que a causa seja real, que seja a causa do efeito objetivamente dado" (p. 99).

"A causa de uma coisa é a sua relação" (p. 100).

Conclui-se dai que a afirmação do sr. Hellfond é absolutamente contraria à realidade. A concepção materialista, exposta por Dietzgen, afirma que "as relações de causalidade" estão "no seio das próprias coisas". Para preparar sua salada de discípulo de Mach, o sr. Hellfond teve de confundir, a proposito da causalidade, as concepções materialista e idealista.

Passemos à segunda teoria.

Avenarius proporciona-nos, em sua primeira obra, A filosofia, concepção do mundo segundo o princípio do menor esforço, uma clara exposição dos pontos de partida de sua filosofia da causalidade. Podemos ler no § 81:

"Não conhecendo, pela experiência, a força como causa do movimento, ignoramos igualmente a necessidade do fenômeno movimento... Tudo quanto sabemos é que um segue o outro."

Eis a concepção de Hume em sua forma mais pura: a sensação, a experiência nada nos ensinam sobre a necessidade. O filósofo que afirma (baseando-se no princípio da "economia do pensamento") que nada existe independentemente da sensação, não pode chegar a nenhuma conclusão.

"Na medida em que a ideia de causalidade — podemos ler mais adiante — supõe, para a definição do efeito, uma força e a necessidade ou a coerção como partes integrantes, ela se dissipa com essas últimas noções" (§ 82).

"A necessidade permanece como um grau de probabilidade (certeza) na expectativa dos efeitos" (§ 83).

Eis, em matéria de causalidade, um subjetivismo bem determinado. E ninguém pode, sendo consequente, chegar a alguma conclusão se não vê na realidade objetiva a fonte das nossas sensações.

Vejamos Mach. Lemos em sua obra, no capítulo sobre "a causalidade e a explicação" (Wärmelehre, 2.ª ed., 1900, pp. 432-439):

"A critica de Hume (sobre a concepção da causalidade) conserva todo seu vigor".

Kant e Hume resolvem de maneira diferente o problema da causalidade (para Mach, os outros filósofos não existem); "nós nos colocamos" do lado de Hume.

"Não existe necessidade física, por exemplo, que não seja a necessidade lógica" (grifado por Mach).

É precisamente a concepção que Feuerbach combatia tão ardorosamente. Não vem sequer ao pensamento de Mach negar seu parentesco com Hume. Somente os discípulos russos de Mach chegaram a afirmar a "compatibilidade" do agnosticismo com o materialismo de Marx e Engels. Podemos ler na Mecânica, de Mach:

"Não há, na natureza, nem causa e nem efeito" (p. 474, 3ª edição, 1897).

"Expliquei muitas vezes que todas as formas da lei da causalidade decorrem das tendências (Trieben) subjetivas; nenhuma necessidade obriga a natureza a corresponder-lhes" (p. 495).

É necessário observar aqui que nossos discípulos russos de Mach substituem, com notável ingenuidade, a questão do caráter materialista ou idealista dos raciocínios sobre a lei da causalidade pela da fórmula mais ou menos acertada dessa lei. O professor empiro-criticista alemão fê-los supor que dizer "correlação funcional" é fazer uma descoberta própria do "mais moderno positivismo" e desembaraçar-se do "fetichismo" das expressões necessidade", "lei", etc... São bagatelas, evidentemente, e Wundt tinha razão ao afirmar que essa mudança de termos (pp. 383 e 388 do trabalho mencionado, publicado nos Philosophische Studien) nada mudava no fundo. O próprio Mach considera "todas as formas" a lei da causalidade e faz, em Conhecimento e erro (2.ª edição, p. 278), a restrição, bem compreensível de que a concepção de função não pode exprimir melhor a "dependência dos elementos" do que quando se chega a exprimir os resultados das pesquisas em grandezas mensuráveis, o que uma ciência como a química ainda não atingiu senão parcialmente. Cumpre acreditar que, do ponto de vista dos nossos partidários de Mach, penetrados de tamanha confiança nas descobertas professorais, Feuerbach (para não se falar em Engels) não sabia que as concepções de ordem, lei, etc. podiam, sob certas condições, ser matematicamente expressas pelas relações funcionalmente determinadas!

A questão, verdadeiramente importante, da teoria do conhecimento, que divide as correntes filosóficas, não é a de saber qual é o grau de precisão das nossas descrições das relações de causalidade e se essas descrições podem ser expressas em fórmulas matemáticas precisas, mas a de saber se a fonte do nosso conhecimento dessas relações está nas leis objetivas da natureza ou nas propriedades do nosso espírito, em sua faculdade de conhecer certas verdades a priori, etc... Eis o que separa para sempre os materialistas Feuerbach, Marx e Engels dos agnósticos Avenarius e Mach (discípulos de Hume).

Mach, que seria injuriado com a acusação de ser consequente, "esquece-se" frequentemente, em certas passagens de suas obras, da aquiescência que deu a Hume e à sua teoria subjetivista da causalidade, para raciocinar, muito simplesmente, como um materialista, isto é, de um ponto de vista instintivamente materialista. É assim que podemos ler na sua Mecânica:

"A natureza ensina-nos a encontrar a uniformidade em seus fenômenos" (p. 194, 4.a edição).

Se encontramos a uniformidade nos fenômenos da natureza, deve-se concluir que essa uniformidade tenha uma existência objetiva, independente do nosso espírito? Não. Mach exprime, a respeito dessa mesma questão da uniformidade da natureza, coisas como estas:

"A força que nos incita a completar pelo pensamento que só pudemos observar pela metade é a associação. Ela se desenvolve pela repetição. Ela se nos apresenta como uma força independente da nossa vontade e dos fatos isolados, dirigindo o pensamento e os fatos, mantendo uns e outros de conformidade com uma lei que os domina. Acreditamo-nos capazes de distinções com auxilio dessa lei; mas isso prova somente (!) a uniformidade suficiente do nosso meio e não a necessidade do exito das nossas previsões" (Wärmelehre, p. 383).

Conclui-se dai que se pode e se deve investigar não se sabe que outra necessidade independente da uniformidade do meio, isto é, da natureza! Aonde a buscar? Eis o segredo da filosofia idealista, que não ousa ver, na faculdade de compreensão do homem, o simples reflexo da natureza. Mach chegou mesmo a definir, em sua última obra, Conhecimento e erro, as leis da natureza como uma "limitação da expectativa" (2.ª edição, pp. 450 e seg.)!

O solipsismo também faz suas dívidas.

Vejamos qual é a posição de outros autores pertencentes a essa mesma corrente filosófica. O inglês Karl Pearson exprime-se com a clareza que lhe é peculiar:

"As leis da ciência resultam mais do espírito humano do que dos fatos do mundo exterior" (The Grammar of Science, 2.a ed., p. 36).

"Os poetas e os materialistas, que veem na natureza a soberana (sovereign) do homem, esquecem-se frequentemente que a ordem e a complexidade das coisas que admiram são tanto o produto da faculdade de compreensão do homem como suas próprias recordações e seus pensamentos" (p 185).

"O caráter tão amplo da lei da natureza é o produto da engenhosidade do espírito humano" (ibid.).

"O HOMEM É O CRIADOR DAS LEIS DA NATUREZA", está escrito no § 4 do capítulo II.

"A afirmação de que o homem dita leis à natureza é muito mais sensata do que a afirmação contraria, de acordo com a qual a natureza dita suas leis ao homem, se bem que (o respeitável professor confessa-o com amargura) esse último ponto de vista (o materialista) esteja, infelizmente, muito difundido em nossos dias" (p. 87).

No capítulo IV, consagrado à causalidade, a tese de Pearson é assim formulada (§ 11):

"A NECESSIDADE PERTENCE AO MUNDO DAS IDEIAS E NÃO ao mundo das percepções. (É necessário observar que as percepções ou as impressões dos sentidos "constituem precisamente", para Pearson, a realidade exterior.) Não existe nenhuma necessidade interior na uniformidade com a qual se repetem, nessa rotina de percepções, certas séries de percepções; mas a rotina das percepções é a condição indispensável da existência dos seres pensantes. A necessidade está, portanto, na natureza do ser pensante e não nas próprias percepções; é o produto da nossa faculdade de compreender" (p. 139).

O nosso discípulo de Mach, com quem o "próprio" Mach se solidariza muitas vezes, chega, desse modo, candidamente ao puro idealismo kantiano: o homem dita as leis à natureza e não a natureza ao homem! Não se trata de repetir, acompanhando Kant, a doutrina do caráter apriorístico do conhecimento, que caracteriza, não a corrente idealista da filosofia, mas uma fórmula particular dessa corrente; trata-se de reconhecer que o espírito, o pensamento, a consciência constituem o fator primário e a natureza o fator secundário. A razão não representa uma parcela da natureza, um de seus produtos, a imagem de seus processos; é a natureza que constitui uma parcela da razão, logo se tornando essa última, por extensão, procedendo da razão humana comum, familiar a todos, a razão misteriosa, divina, "excessiva", como dizia J. Dietzgen. A fórmula de KantMach "O homem dita suas leis à natureza" é uma das fórmulas do fideísmo. Se os nossos discípulos de Mach arregalam os olhos ao ler que a admissão do caráter primário da natureza, e não do espírito, constitui, por excelência, o princípio definidor do materialismo, isso demonstra somente o quanto são pouco capazes de distinguir as correntes filosóficas, verdadeiramente importantes, do jogo professoral da erudição e das palavras sabias.

J. Petzoldt, que, em seus dois volumes, expõe e desenvolve Avenarius, pode proporcionar-nos uma bela demonstração da escolástica reacionária da doutrina de Mach.

"Ainda em nossos dias — proclama —, cento e cinquenta anos depois de Hume, a substancialidade e a causalidade paralisam a coragem do pensamento" (Introdução à filosofia da experiência pura, t. I, p. 31).

Os solipsistas, que descobriram a sensação sem matéria orgânica, o pensamento sem cérebro, a natureza sem lei objetiva, são, certamente, os mais "corajosos"!

"A última definição, ainda não mencionada por nós, de causalidade, necessidade ou necessidade natural, tem qualquer coisa de vago e de místico... (como a ideia) do "fetichismo", do "antropomorfismo", etc." (pp. 32 e 34).

Pobres místicos Feuerbach, Marx e Engels! Falavam incessantemente da necessidade natural e consideravam os discípulos de Hume como teóricos reacionários. Petzoldt é, igualmente, superior a todo "antropomorfismo", descobriu a grande "lei da identidade", que põe fim a toda indecisão, elimina todo vestígio de "fetichismo", etc... Exemplo: o paralelogramo das forças. Não se pode "demonstrá-lo", cumpre admiti-lo como um "fato experimental". Não se pode admitir que um corpo se mova sob impulsos uniformes de maneiras variadas.

"Não podemos admitir tanta indeterminação e tanta arbitrariedade na natureza. Devemos exigir-lhe determinação e leis" (p. 35).

Muito bem, muito bem. Da natureza exigimos leis. A burguesia exige que os seus professores sejam reacionários.

"Nosso pensamento exige a determinação da natureza e a natureza sempre se submete a essa exigência; veremos mesmo que ela é, em certo sentido, fácil de se submeter" (p. 36).

Por que um corpo que recebe um impulso sobre a linha AB se move para C e não para D ou F, etc.?

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"Por que a natureza não adota outra direção entre as incontáveis direções possíveis?" (p. 37).

Porque haveria, então, Pluralidade", enquanto a grande descoberta empiro-criticista de Joseph Petzoldt exige identidade.

E os empiro-criticistas enchem dezenas de páginas com tão indescritível confusão!

"Observamos, muitas vezes, que nossa proposição não se baseia numa soma de experiências isoladas e nela exigimos, ao contrário, o reconhecimento (seine Geltung) pela natureza. Constitui realmente, para nós, antes de tornar-se lei, um princípio que aplicamos à realidade, isto é, um postulado. Seu valor é, por assim dizer, apriorístico, independente de toda experiência. Não é conveniente, à primeira vista, para a filosofia da experiência pura, preconizar verdades a priori e retornar desse modo, à metafísica mais estéril. Mas o nosso a priori é apenas um a priori lógico e não psicológico ou metafísico" (p 40).

Evidentemente, basta qualificar o a priori de lógico para que essa ideia perca tudo o que tem de reacionário e se eleve ao "mais moderno positivismo"!

Não pode haver, ensina-nos ainda Petzoldt, determinação em sentido único dos fenômenos psíquicos: o papel da imaginação, a importância dos grandes inventores, etc. fazem aqui exceção, enquanto a lei da natureza ou a lei do espírito não sofre "nenhuma exceção" (p. 65). Estamos diante do mais puro dos metafísicos, de um metafísico que não tem a menor ideia da relatividade da distinção entre o acidental e o necessário.

Invocarão talvez, continua Petzoldt, a explicação dos acontecimentos históricos ou os da evolução do caráter nas obras poéticas?

"Vendo as coisas de mais perto, perceberemos uma falta completa de determinação única. Nada de acontecimentos históricos, nada de dramas, onde não possamos representar os atores atuando diversamente sob as condições psíquicas dadas" (p. 76).

"Não apenas a determinação única faz falta ao psíquico, mas temos o direito de exigir que ela esteja ausente da realidade. Nesse doutrina eleva-se, desse modo, à categoria de um postulado, isto é, de uma condição necessária de cada experiência precedente de um "a priori logico".

Petzoldt continua a operar com esse "a priori lógico" nos dois volumes de sua Introdução e no seu opusculo O problema do universo do ponto de vista positivista(1), publicado em 1906. Nele ainda encontramos o exemplo de um conhecido empiro-criticista, caído, sem que o tenha percebido, no kantismo e servindo, com um tempero apenas modificado, as doutrinas mais reacionárias. E isso não é obra do acaso, porque a doutrina da causalidade de Mach e Avenarius é, em sua própria base, um embuste idealista, quaisquer que sejam as frases sobre o "positivismo" de que se revista. A diferença entre a teoria da causalidade de Hume e a de Kant é uma diferença de segunda ordem entre os agnósticos, que estão de acordo quanto ao essencial: a negação das leis objetivas da natureza, negação que os conduz fatalmente a conclusões idealistas.

Um empiro-criticista um pouco mais "consciencioso" do que Petzoldt e que se se peja de seu parentesco com os imanentes, Rudolf Willy, rejeita, por exemplo, toda a teoria da "determinação única" de Petzoldt, porque somente nos proporciona, a seu ver, um "formalismo lógico". Renegando Petzoldt, Willy consegue melhorar sua própria situação? De modo nenhum. Simplesmente porque não renega o agnosticismo de Kant senão em favor do de Hume:

"Sabemos, já há muito tempo, — escreve —, sabemos desde Hume, que a necessidade é um caráter (Merkmal) puramente lógico, não transcendental, ou, como eu dizia antes e como já disse, puramente verbal" (R. Willy, Gegen die Schulweisheit, 905, p. 91; comparar pp. 173-175).

O agnóstico qualifica de "transcendental" nossa concepção materialista da necessidade, porque, do ponto de vista da sapiência escolar de Hume e de Kant, que Willy depura em vez de renegar, todo reconhecimento da realidade objetiva é um transcensus ilegitimo.

Entre os autores franceses filiados à corrente filosófica que estamos estudando, o sr. Henri Poincaré, grande físico e medíocre filósofo, cujos erros naturalmente representam para P. Iuchkévitch a última palavra do positivismo moderno — a tal ponto "moderno" que houve necessidade de ser designado por um "ismo": empiro-simbolismo, também se desvia constantemente por esse caminho do agnosticismo. Para Poincaré (cujas ideias estudaremos no capítulo da física moderna), as leis da natureza são símbolos, convenções criadas pelo homem para sua "comodidade". "É, portanto, essa harmonia (a harmonia universal) a única realidade objetiva." É bom observar que, para Poincaré, o objetivo é que tem um valor geral, o que é admitido pela maioria ou pela totalidade dos homens(2); noutros termos, Poincaré suprime, de maneira puramente subjetivista, como todos os discípulos de Mach, a verdade objetiva, e à pergunta "A harmonia existe fora de nós?" ele responde que "não se pode duvidar do contrário". É bem evidente que as palavras novas em nada mudam a velha, muito velha corrente filosófica do agnosticismo, estando a teoria "original" de Poincaré apesar de certas inconsequências relacionada, no fundo, com a negação da realidade objetiva e das leis objetivas na natureza. É também muito natural que os kantistas alemães, ao contrário dos partidários russos de Mach que tomam as novas fórmulas dos antigos erros por descobertas modernas, tenham acolhido com entusiasmo essas ideias, como uma adoção de suas concepções sobre a questão filosófica essencial.

"O matemático francês Henri Poincaré -- podemos ler no kantista Philipp Frank — defende a opinião de que inúmeros postulados gerais das ciências naturais teóricas (lei da inércia, conservação da energia, etc.), dos quais é muito difícil dizer se provém do empirismo ou do apriorismo, não tem, na realidade, nem uma e nem a outra dessas origens, uma vez que representam apenas premissas convencionais dependentes do arbítrio humano... Desse modo — extasia-se o kantista —, a filosofia contemporânea da natureza restaura, de maneira inesperada, a concepção fundamental do idealismo crítico, consistente em que a experiência não faz mais do que preencher os quadros que o homem proporciona ao mundo."(3)

Citamos esse exemplo para mostrar ao leitor o grau de ingenuidade dos nossos Iuchkévitch e outros, que tomam uma "teoria do simbolismo" por uma novidade, enquanto os filósofos, por menos competentes que sejam, dizem clara e simplesmente: o autor passou-se para o idealismo crítico! Mesmo porque a essência dessa concepção não está na repetição obrigatória das fórmulas de Kant, mas na admissão de pensamento fundamental de Hume e de Kant, isto é, na negação das leis objetivas da natureza e na dedução dessas ou daquelas "condições da experiência", princípios, postulados ou premissas, do sujeito, da consciência humana e não da natureza. Engels tinha razão ao dizer que pouco importa que um filósofo se coloque nessa ou naquela das numerosas escolas do materialismo ou do idealismo; o importante é o que ele tenha por primordial: se a natureza, o mundo exterior, a matéria em movimento, ou, então, o espírito, a razão, a consciência, etc.

Outra definição da doutrina de Mach é dada, em contraste com as outras correntes filosóficas, por E. Lucka, competente kantista. "Mach ajusta-se inteiramente a Hume"(4), na questão da causalidade.

"P. Volkmann deduz a necessidade do pensamento da necessidade dos processos da natureza — opinião que, contrariamente à de Mach e de acordo com a de Kant, admite a necessidade— , mas, diversamente de Kant, ele vê a origem da necessidade nos processos naturais e não no pensamento" (p. 424).

Físico, P. Volkmann muito escreve sobre a gnoseologia e tende, como a maior parte dos naturalistas, para o materialismo, mas para um materialismo tímido, inconsequente, inacabado. Admitir a necessidade da natureza e daí concluir a necessidade do pensamento é professar o materialismo. Dizer que a necessidade, a causalidade, as leis naturais têm sua origem no pensamento é professar o idealismo. A única inexatidão que existe no trecho citado é a atribuição a Mach na negação completa de toda necessidade. Já vimos que isso é inexato em relação a Mach, como em relação a toda a corrente empiro-criticista, que, tendo afastado resolutamente o materialismo, se encaminha fatalmente para o idealismo.

Resta-nos somente dizer algumas palavras sobre os discipulos russos de Mach. Eles pretendem ser marxistas. Todos eles leram em Engels a nítida discriminação do materialismo e da corrente de Hume; não puderam deixar de ouvir do próprio Mach e de toda pessoa, por pouco informada de sua filosofia estivesse, que Mach e Avenarius caminhavam nas pegadas Hume; mas todos eles se esforçam por não proferir uma sílaba sobre a concepção da causalidade professada pelos materialistas e sobre a professada por Hume! A confusão mais completa reina entre eles. Vejamos alguns exemplos. O sr. P. Iuchkévitch prega o "novo" empiro-simbolismo.

"As sensações de azul, de duro, etc., esses pretensos dados da experiência pura... (e) as criações da razão chamada pura, tais como as quimeras e o jogo de xadrez... (tudo isso não é mais do que) empiro-simbolismo" (Ensaios, p. 179).

"O conhecimento é empiro-simbolista e encaminha-se, desenvolvendo-se, para os empiro-símbolos de um grau cada vez mais elevado de simbolização... As pretensas leis da natureza... não passam de empiro-símbolos" (loc. cit.).

"A pretendida realidade autentica, a existência em si, constitui o sistema infinito (esse sr. Iuchkévitch é terrivelmente sábio!) de empiro-símbolos a que aspira o nosso conhecimento" p. 188).

"A torrente do dado (que está na base do nosso conhecimento) é irracional... ilógica (pp. 187-194). A energia é não mais uma coisa, uma substância, do que o tempo, o espaço, a massa e as outras noções fundamentais das ciências naturais: a energia é uma constante, um empiro-símbolo como todos os outros empiro-símbolos que satisfazem, ainda melhor, a aspiração essencial do homem de introduzir o espírito, o Logos, na torrente irracional do elemento dado" (p. 209).

Estamos diante de um idealista subjetivo, para quem o mundo exterior, a natureza, suas leis não são senão símbolos do nosso conhecimento; ele vestiu-o com a fantasia de Arlequim de uma terminologia bizarra, gritante, "das mais novas". A torrente do elemento dado é destituída de razão, de ordem, de leis: nosso conhecimento é que nele introduz a razão. Os corpos celestes, a terra inclusive, são símbolos do conhecimento humano. As ciências naturais têm-nos ensinado que a terra já existia bem antes que a matéria orgânica e o homem nela pudessem aparecer, e nós mudamos tudo isso! Nós é que pomos ordem no movimento dos planetas e essa ordem é o produto do nosso conhecimento. Mas, verificando que essa filosofia amplia a razão humana até torná-la o responsável, o criador da natureza, Iuchkévitch coloca ao lado da nossa razão o Logos, isto é, a razão abstrata: não a razão, mas a Razão; não a função do cérebro humano, mas qualquer coisa de anterior a todo cérebro, alguma coisa de divino. A última palavra do "mais moderno positivismo" não é outra coisa senão a velha fórmula do fideísmo já refutada por Feuerbach.

Vejamos A. Bogdanov. Em 1899, ainda meio materialista e apenas abalado por Wilhelm Ostwald, tão confuso filósofo quão grande químico, Bogdanov escrevia:

"A universal relação de causalidade dos fenômenos é o mais recente, o melhor dos frutos do conhecimento humano; é uma lei geral, a mais sublime das leis, que, segundo a expressão de um filósofo, o espírito humano atribui à natureza" (Elementos fundamentais da concepção histórica da natureza, p. 41).

Alá sabe de que mãos Bogdanov tirou essa citação. Mas o fato é que essa "expressão de um filósofo", repetida com desenvoltura por esse marxista, pertence a Kant. Desagradável ocorrência!

Tanto mais desagradável uma vez que não pode ser explicada "simplesmente" pela influência de Ostwald.

Em 1904, já abandonados Ostwald e o materialismo das ciências naturais, Bogdanov escrevia:

"O positivismo contemporâneo não vê na lei da causalidade senão um meio de encadear os fenômenos, no conhecimento, numa série ininterrupta; nela não vê senão uma forma da coordenação da experiência" (Psicologia social, p. 207).

Que esse positivismo contemporâneo não era outra coisa senão o agnosticismo que nega a necessidade objetiva da natureza anterior e exterior a todo "conhecimento" e a todo homem, Bogdanov o ignorava ou fingia ignorá-lo. Ele tomava, em confiança, aos professores alemães o que chamavam de "positivismo contemporâneo". Finalmente, em 1905, já atingida a etapa "empiro-monista", depois de haver transposto todas as etapas precedentes, inclusive a empiro-criticista, Bogdanov escrevia:

"As leis não pertencem, absolutamente, à esfera da experiência... não lhe são próprias, são criadas pelo pensamento como um meio de organizar a experiência, de coordená-la harmoniosamente num conjunto arquitetural" (Empiro-monismo, t. I, p. 40).

"As leis são abstrações do conhecimento; as leis físicas não têm mais propriedades físicas do que as leis psicológicas tem propriedades psíquicas" (loc. cit.).

Nesse caso, a lei segundo a qual o inverno segue o outono e a primavera segue o inverno não nos é proporcionada pela experiência, mas é criada pelo pensamento como um meio de organizar, harmonizar, coordenar... o que e com que, camarada Bogdanov?

"O empiro-monismo não é possível senão porque o conhecimento harmoniza ativamente a experiência, eliminando-lhe as inúmeras contradições, criando-lhe formas organizadoras universais, substituindo o caótico mundo primitivo dos elementos pelo mundo derivado, ordenado, das relações" (p. 57).

Isso não é verdade. A ideia de que o conhecimento pode "criar" formas universais, substituir o caos primitivo pela ordem, etc. pertence à filosofia idealista. O universo é um movimento da matéria, regido por leis, e não passando o nosso conhecimento de um produto superior da natureza, não pode senão refletir essas leis.

Em suma, nossos discípulos de Mach, induzidos pela confiança cega que depositam nos "mais modernos" professores reacionários, repetem, relativamente ao problema da causalidade, os erros do agnosticismo de Kant e de Hume, sem perceber a contradição absoluta dessa concepção com o marxismo, isto e, com o materialismo, e nem mesmo o fato de que deslisam sobre o plano inclinado do idealismo.


Notas de rodapé:

(1) J. Petzoldt, Das Weltproblem von positivistichen Standpunkte aus, Leipzig, pág. 139: "Pode haver igualmente um a priori lógico do ponto de vista empírico: a causalidade constitui um a priori lógico para a constância experimental (erfahrungsmässig) do nosso meio". — N. L. (retornar ao texto)

(2) Henri Poincaré, La valeur de la science, Paris, 1905, páginas 7-9. — N. L. (retornar ao texto)

(3) Annalen der Naturphilosophie, t. VI, pags. 443 e 447. — N. L. (retornar ao texto)

(4) E. Lucka, Das Erkenntnisproblem und Mach's Analyse der Empfindungen, em Kantstudien, t. VIII, pág. 409.— N. L. (retornar ao texto)

Inclusão 17/09/2014