Materialismo e Empiro-Criticismo
Notas e Críticas Sobre uma Filosofia Reacionária

V. I. Lênin

Capítulo III - A Teoria do Conhecimento do Empiro-Criticismo e do Materialismo Dialético
(Conclusão)


13. Que é a Matéria e que é a experiência?


A primeira dessas questões é a que os idealistas e os agnósticos, inclusive os discípulos de Mach, colocam com mais insistência diante dos materialistas; a segunda é a que os materialistas dirigem aos partidários de Mach. Tentemos nelas nos definir.

Avenarius diz da matéria:

"Não existe "físico" no seio da "experiência completa", pura mas "matéria" no sentido metafísico absoluto do termo, porque a matéria, nesse sentido, não passa de abstração: seria a soma dos contra-termos, abstração feita de todo fator central. Do mesmo modo que, na coordenação de princípio, isto é, na "experiência completa", o contra-termo é inconcebível (undenkbar) sem o fator central, assim também a matéria é, na concepção metafísica absoluta, um completo contra-senso (Unding)" (Bemerkungen, pp. 234 e 235, § 19).

O que se concui dessa embrulhada é que Avenarius qualifica de absoluto ou de metafísico a matéria ou o físico, uma vez que sua teoria da coordenação de princípio (ou, ainda, em novas palavras: da "experiência completa") pretende que o contra-termo seja inseparável do fator central, o meio inseparável do eu, o não-eu inseparável do eu (como dizia J. G. Fichte). Que essa teoria não passa de nova roupagem do idealismo subjetivo, já o dissemos, e a natureza dos ataques de Avenarius contra a "matéria" é bem clara: o idealista nega a existência do físico independentemente do psíquico e rejeita, por esse motivo a concepção elaborada pela filosofia para designar essa especie de existência. Que aquela seja "física" (o que há de mais conhecido e mais diretamente ligado ao homem, de que ninguém dúvida, a não ser os beneficiários de fontes suspeitas), Avenarius não o nega; limita-se a exigir a adoção de "sua" teoria da relação indissolúvel entre o meio e o eu.

Mach exprime esse pensamento com um pouco mais de simplicidade, sem subterfúgios filosóficos:

"O que chamamos de matéria não é senão certa relação regular entre os elementos (sensações)" (Análise das sensações, p. 270).

Mach acredita realizar, com essa afirmação, uma "revolução radical" nas concepções comuns. Na realidade, estamos diante de um idealismo subjetivo velho como o mundo, mas com sua nudez coberta pela palavra "elemento".

Por fim, o discípulo inglês de Mach, Pearson, lutando encarniçadamente contra os materialistas, escreve:

"Não pode haver objeção, do ponto de vista científico, a que certos grupos, mais ou menos constantes, de percepções dos sentidos sejam classificados numa categoria única chamada matéria; nós nos aproximamos estreitamente, nesse caso, da definição de J. St. Mill: "A matéria é uma possibilidade constante de sensações"; mas essa definição da matéria em nada parece com a que afirma que a matéria é uma coisa em movimento" (The Grammar of Science, 1900, 2.a edição, p.249).

O idealista não se cobre aqui de "elementos" como de uma folha de parreira e estende decididamente a mão ao agnóstico.

Vê o leitor que todos esses raciocínios dos fundadores do empiro-criticismo gravitam inteira e exclusivamente em torno do velho problema gnoseológico das relações entre o pensamento e o ser, entre as sensações e o físico. Foi necessária a incomensurável ingenuidade dos discípulos russos de Mach para aí encontrar alguma coisa que se relacionasse, por pouco que fosse, com as "mais modernas ciências naturais" ou com o "mais moderno positivismo". Todos os filósofos a que acabamos de nos referir substituem, uns decididamente, outros tortuosamente, a tendência fundamental do materialismo (do ser para o pensamento, da matéria para a sensação) pela tendência oposta do idealismo. Sua negação da matéria constitui apenas a mais antiga solução dos problemas da teoria do conhecimento pela negação da fonte exterior, objetiva, das nossas sensações. A admissão da tendência filosófica negada pelos idealistas e pelos agnósticos encontra sua expressão, ao contrário, nas definições: a matéria é o que, atuando sobre nossos órgãos dos sentidos, produz a sensação; a matéria é a realidade objetiva que nos é proporcionada através da sensação; etc.

Simulando criticar apenas Beltov e silenciando sobre Engels, Bogdanov indigna-se com essas definições, que não são parece-lhe, "mais do que repetições" (Empiro-monismo, t. IIL, p. XVI) da "fórmula" (de Engels: o nosso "marxista" esqueceu-se de acrescentar) segundo a qual a matéria constitui o elemento primordial e o espirito o elemento secundário, para uma corrente filosófica, sendo que a outra corrente professa o contrário. E todos os partidários russos de Mach a repetir, extasiados, a "refutação" feita por Bogdanov! A menor reflexão provar-lhes-ia, entretanto, que só se pode definir as duas noções últimas da teoria do conhecimento indicando-se a que, dentre elas, se considera como o primário. Que é dar uma "definição’? É, antes de tudo, levar uma concepção dada a uma outra mais ampla. Quando formulo, por exemplo, esta definição: o asno é um animal, levo a concepção "asno" a uma concepção mais geral. Trata-se, agora, de saber se existem concepções mais amplas do que as do ser e do pensamento, da matéria e sensação, do físico e do psíquico, com as quais a teoria do conhecimento possa operar. Não. São concepções últimas, as mais gerais, que a gnoseologia não ultrapassou até o presente (abstração feita das nossas modificações, sempre possíveis, da terminologia). Somente o charlatanismo ou a indigência intelectual podem exigir, para essas duas "séries" de concepções últimas, infinitamente amplas, definições que sejam outra coisa além de "simples repetições": ou uma ou a outra é considerada como o primário. Consideremos os três mencionados raciocínios a respeito da matéria. A que se referem? A que os filósofos procedem do psíquico ou do eu para o físico ou o meio como do fator central para o contra-termo, ou da percepção dos sentidos para a matéria. Avenarius, Mach e Pearson poderiam, no fundo, "definir" as concepções fundamentais de outro modo senão indicando sua tendência filosófica? Puderam definir de outra maneira, de um modo novo, o eu, a sensação, a percepção dos sentidos? Basta colocar claramente a questão para compreender em que clamoroso absurdo caem os partidários de Mach, quando exigem dos materialistas uma definição da matéria que não se reduza a repetir que a matéria, a natureza, o ser, o físico constituem o fator primário e o espirito, a consciência, a sensação, o psíquico o fator secundário.

O gênio de Marx e Engels manifestou-se, entre outras coisas, pelo desdem para com o jogo pedante dos termos novos, dos termos complicados, dos "ismos" sutis, e pela linguagem simples e franca: há duas correntes em filosofia, a do materialismo e a do idealismo; entre elas, estendem-se as nuanças do agnosticismo. As afanosas tentativas feitas para se encontrar um "novo" ponto de vista em filosofia revelam a mesma indigência espiritual que a de criar uma "nova" teoria do valor, uma "nova" teoria da renda, etc.

Carstanjen, aluno de Avenarius, relata que esse último disse, um dia, no decorrer de uma conversação particular:

"Não conheço nem o físico e nem o psíquico; conheço apenas um terceiro elemento".

Respondendo a um escritor que havia observado que Avenarius não definia esse terceiro elemento, Petzoldt escreveu:

"Sabemos por que ele não pôde formular essa conccpção. Porque o terceiro elemento não tem contra-termo (Gegebegriff, concepção antinômica)... A pergunta "Qual é o terceiro elemento?" carece de lógica" (Einführung in die Philosophie der reinen Erfahrung, t. II, p. 329).

Que essa última concepção não possa ser definida, Petzoldt compreende. Mas não compreende que a referencia ao "terceiro elemento" não passa de simples subterfúgio, quando cada um de nós sabe muito bem que é o físico e que é o psíquico, quando cada um de nós sabe ainda que é o "terceiro elemento". Avenarius somente usa esse subterfúgio para ludibriar e, na realidade, afirma que o eu (fator central) é o primário diante da natureza (o meio: contra-termo).

Certamente, a oposição entre a matéria e a consciência só tem significação absoluta em limites muito restritos; no caso, unicamente nos da questão gnoseológica fundamental: que é o primordial? que é o secundário? Fora desses limites, a relatividade dessa oposição não suscita qualquer dúvida.

Vejamos, agora, que uso a filosofia empiro-criticista faz da palavra "experiência". A suposição seguinte é feita no primeiro paragrafo da Crítica da experiência pura:

"Todo elemento do nosso meio está em relações tais com os indivíduos humanos que, quando o elemento é dado, o indivíduo afirma sua experiência: aprendo essa ou aquela coisa pela experiência; essa ou aquela coisa é minha experiência, ou vem da experiência, ou dela depende."

Desse modo, continua-se a definir a experiência com auxilio das mesmas concepções: o eu e o meio; e quanto à "doutrina de sua relação "indissolúvel", fica obscurecida. Continuemos: "Concepção sintética da experiência pura", precisa da experiência "como asserção exclusivamente condicionada, em sua integridade, por partes do meio" (pp. 3 e 4). Se se admite a existência do meio independentemente das "asserções" e dos "julgamentos" do homem, torna-se possível a interpretação materialista da experiência! "Concepção analítica da experiência pura", "precisamente como asserção purificada de toda mistura com tudo que não seja experiência, e não representando, portanto, senão a experiência" (p. 5). A experiência é a experiência. E existem pessoas que tomam essa embrulhada pretensamente científica por profundeza!

Cumpre acrescentar que, no tomo II de sua "Critica da experiência pura", Avenarius considera a "experiência" como "um caso especial" do psíquico e a divide em valor material (sachhafte Werke) e valor mental (gedankenhafte Werke); a "experiência completa" identifica-se com a coordenação de princípio (Bemerkungen). Numa palavra: "Se o queres, assim seja". A "experiência" encobre, em filosofia, tanto a corrente materialista como a corrente idealista, e consagra sua confusão. Se os nossos discípulos de Mach aceitam, em confiança, a "experiência pura" por ouro puro, outros autores, pertencentes a diversas escolas filosóficas, revelam o abuso que Avenarius faz dessa concepção.

"Avenarius não definiu de maneira precisa a experiência pura —escreve A. Riehl —, e sua afirmação "A experiência pura é uma experiência purificada de toda mistura com tudo que não seja experiência" cai evidentemente num círculo vicioso" (Systematische Philosophie, em Die Kultur der Gegenwart, Leipzig, 1907, p. 102).

Para Avenarius, escreve Wundt, a experiência pura significa, ora a fantasia que vos apraz, ora julgamentos que têm uma feição de "materialismo" (Philosophische Studien, t. XIII, pp. 92-93). Avenarius amplia a concepção da experiência (p. 382).

"O sentido de toda essa filosofia depende da definição precisa dos termos experiência e experiência pura — escreve Couwelaert. Avenarius não dá essas definições precisas" (Revue néo-scholastique, fevereiro de 1907, p. 61).

"A indeterminação do termo experiência presta relevantes serviços a Avenarius, permitindo-lhe introduzir em sua filosofia o idealismo que simula combater" diz Norman Smith (Mind, vol. XV, p. 29).

"Eu afirmo solenemente: o sentido profundo, a alma de minha filosofia é que o homem nada tem, em geral, fora da experiência; a nada chega senão pela experiência".

Que rigoroso zelador da experiência pura é esse filósofo não é verdade? Essas linhas são do idealista subjetivo J. G. Fichte (Sonnenklarer Bericht usw., p. 15). A história da filosofia ensina-nos que a interpretação da noção de "experiência" divide os materialistas e os idealistas clássicos. A filosofia professoral de todas as nuanças reveste, hoje, seu fundo reacionário de variadas declamações sobre a "experiência". É para a experiência que apelam os imanentes. No prefácio à 2.ª edição de "Conhecimento e erro", Mach elogia o livro do professor W. Jerusalém, onde podemos ler:

"A admissão do ser primeiro, divino, não contradiz nenhuma experiência" (Der kritische Idealismns usw., p. 222).

Não se pode senão lastimar que tenha havido pessoas que acreditaram, de acordo com Avenarius & Cia., na possibilidade de eliminar, com auxilio de palavra "experiência", a distinção "antiquada" entre materialismo e idealismo. Se Valentinov e Iuchkévitch acusam Bogdanov que se desviou ligeiramente da pura doutrina de Mach de abusar do termo "experiência", esses senhores apenas manifestam, no caso, sua ignorância. Bogdanov "não é culpado" nesse ponto. Ele não fez mais do que copiar servilmente a confusão de Mach e Avenarius. Quando ele diz: "A consciência e a experiência psíquicas diretas são concepções idênticas" (Empiromonismo. t. II, p. 53), ou: a matéria "não é a experiência", mas "o desconhecido de que nasce tudo que é conhecido" (Empiromonismo, t. III, p. VIII), considera a experiência, como idealista. Certamente, não é o primeiro(1) e não será o último a elaborar tais sistemas idealizados, especulando sobre o termo "experiência". Quando, respondendo aos filósofos reacionários, ele diz que as tentativas de transpor os limites da experiência conduzem somente "a abstrações ocas e a imagens contraditórias cujos elementos são, entretanto, esgotados na experiência" (t. I. p. 48), ele opõe às ocas abstrações da consciência humana o que existe fora do homem e independentemente de sua consciência; noutros termos, considera a experiência, como materialista.

Mach também, tomando como ponto de partida o idealismo (os corpos são complexos de sensações ou de "elementos"), desvia-se muitas vezes para a interpretação materialista da palavra "experiência".

"É preciso tirar a filosofia, não de nós mesmos (nicht aus uns herausphilosophieren) — diz em sua Mecânica (3.ª edição alemã, 1897, p. 14) —, mas da experiência!"

A experiência é aqui contraposta à oca filosofia tirada de nós mesmos; isso quer dizer que é considerada como alguma coisa de objetivo, de proporcionado ao homem de fora, que é considerada de maneira materialista.

Um exemplo ainda:

"O que observamos na natureza grava-se em nossas representações mentais, mesmo que não o compreendamos ou não o analisemos, e essas representações logo imitam (nachnahmen), em suas características mais gerais e mais estáveis (stärsksten), os processos da natureza. Possuímos nessa experiência um tesouro (Schaz) que sempre guardamos à nossa disposição" (loc. cit., p. 27).

Aqui, a natureza é considerada como o primordial e a sensação e a experiência como o secundário. Se Mach, nas questões fundamentais de gnoseologia, se tivesse limitado, com espirito consequente, a essa concepção, muitos tolos "complexos" idealistas se teriam evitado à humanidade. Um terceiro exemplo:

"Da estreita relação entre o pensamento e a experiência nascem as com as ciências naturais contemporâneas. A experiência engendra o pensamento. Esse último desenvolve-se cada vez mais, confronta-se novamente com a experiência e modifica-se de acordo com ela" (Conhecimento e erro, p. 200).

A "filosofia" pessoal de Mach é colocada à margem e o autor adota, instintivamente, a maneira de pensar dos naturalistas, que consideram a experiência como materialistas.

Em suma: o termo "experiência", sobre o qual os discípulos de Mach há muito baseiam seu sistema, há tempos que vem servindo de roupagem aos sistemas idealistas; Avenarius & Cia. usam-no, agora, para passar, com ecletismo, do idealismo para o materialismo e inversamente. As variadas "definições" dessa noção apenas traduzem as duas correntes fundamentais da filosofia, tão nitidamente reveladas por Engels.


Notas de rodapé:

(1) Exercícios desse tipo são, há muito, realizados na Inglaterra pelo camarada Belfort-Bax, de quem o crítico francês de seu livro The Roots of Reality dizia recentemente, não sem perfídia: "A experiência não passa de uma palavra substituindo outra palavra, consciência; sede, então, francamente idealista". (Revue de Philosophie, 1907, n. 10, pág. 399). — N. L. (retornar ao texto)

Inclusão 18/08/2014