A descer no elevador da História
O fim da sociedade de bem-estar alemã e a crise da União Europeia

Robert Kurz

Julho de 2005


Primeira Edição: Original ABWÄRTS IM FAHRSTUHL DER GESCHICHTE em http://www.exit-online.org , 7/2005. Publicado em versão abreviada na Folha de S. Paulo de 18.09.2005 com o título A RESSACA DO FORDISMO.

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Durante muito tempo pareciam bem definidas as fronteiras mundiais entre a miséria em massa e o relativo bem-estar em massa. A linha de demarcação separava essencialmente o Norte do Sul do planeta. Essa constelação no entanto foi apenas um produto da história posterior à Segunda Guerra Mundial. Nos centros capitalistas, a mobilização das indústrias fordistas desencadeou um impulso sem precedentes de trabalho em massa e acumulação de capital, ligados à ascensão dos sindicatos e da social-democracia. A "automobilização" da sociedade ia de par com a construção crescente de uma rede de segurança social (o Estado do bem-estar), especialmente profunda na Alemanha Ocidental e em parte na França. Até mesmo no espaço anglo-saxónico de tradicional liberalismo económico os governos trabalhistas no Reino Unido e a "grande sociedade" do presidente Lyndon Johnson nos USA, na tradição do "New Deal", criavam novas estruturas sociais. O sociólogo alemão Ulrich Beck descreveu a ascensão social na era fordista do pós-guerra como "efeito elevador": apesar da continuação das diferenciações sociais, a sociedade como um todo era elevada a um patamar superior. Os salários reais se multiplicavam, enquanto o tempo de trabalho pelo contrário diminuía constantemente. A esperança geral de vida aumentava por meio de um sistema médico melhorado para todos.

Foi essa prosperidade sem precedentes do Norte que se tornou o paradigma extremamente atractivo do "desenvolvimento" para os países do Sul. "Desenvolvimento" significava nem mais nem menos que fazer da perspectiva da modernização recuperadora e da industrialização nas categorias capitalistas um programa social, para poder tomar parte no mercado mundial como economia nacional independente. Aqui se manifestava um paradoxo histórico. Pois enquanto ainda eclodiam as últimas guerras de libertação da descolonização no Sul da Ásia e na África e simultaneamente nos países já descolonizados articulavam-se os movimentos de libertação contra a dependência económica da Europa Ocidental e dos USA, o paradigma do "desenvolvimento" seguia contudo o modelo dos centros capitalistas. Os ex-colonizados desejavam crescer nas formas sociais dos ex-colonizadores.

Descolonização e esforços de independência económica eram determinados pelo desejo de atingir, por conta própria, a almejada prosperidade fordista e o consumo de massas a ela associado, mesmo quando, contra o gosto da superpotência americana, eram frequentemente preferidos mecanismos de capitalismo de Estado em moldes soviéticos. No entanto não foi considerada em lado nenhum uma alternativa histórica à mobilização do "trabalho abstracto" e da "riqueza abstracta", como Marx denominara a lógica do moderno sistema produtor de mercadorias. Enquanto os centros capitalistas, em especial os USA, superficialmente forneciam a imagem política do inimigo para os movimentos sociais do Sul, ao mesmo tempo importava-se as estruturas da reprodução capitalista: o moderno trabalho assalariado e a relação burguesa apenas aparentemente igualitária entre os sexos, bem como os padrões e a imaginação do consumo ou o modelo do Estado do bem-estar. Independentemente da orientação política, durante a guerra-fria o "milagre económico" no Japão e sobretudo na Alemanha funcionava como o modelo secreto.

Mas a época dourada da era fordista do pós-guerra permaneceu no entanto uma miragem para os países pós-coloniais do Sul. A tarefa de criar uma industrialização recuperadora, um consumo de massas e um Estado do bem-estar deu certo apenas por um curto período e em fórmulas de segunda mão. A distância dos centros económicos já era muito grande, os custos prévios do "desenvolvimento" revelaram-se muito altos. O resultado foi um endividamento externo crescente. Quando a terceira revolução industrial da microelectrónica substituiu o fordismo, os custos operacionais e sociais da inovação aumentaram de tal forma que não apenas os modelos de desenvolvimento nacionais do Sul quebraram, mas já nem sequer a parte socialista de Estado do Norte a pôde acompanhar.

De facto, essa tendência ruinosa poderia ter-se tornado claramente visível de duas maneiras: em primeiro lugar, a tentativa de imitação de formas industriais, socioeconómicas e políticas da Europa Ocidental e da América do Norte já fracassara para a maior parte da humanidade; em segundo lugar, com o fim da União Soviética e da Alemanha Oriental, a crise deste tipo de sociedade já havia penetrado o Norte de globo e também tinha que atingir os seus próprios centros. Em vez disso, a expansão da crise foi apreendida exactamente de modo invertido, com os óculos dos velhos antagonismos, como se o capitalismo originário fosse o grande vencedor da história e todos os outros tivessem que duplicar ou triplicar esforços na imitação desse modelo. Na perspectiva das regiões em colapso e crise global, vigoravam ainda, nos centros do capitalismo da Europa Ocidental e da América do Norte, as supostas condições "paradisíacas" de prosperidade fordista, pelo menos se confrontadas com a sua própria miséria. Mas isto já era uma ilusão de óptica.

Na realidade, a crise da terceira revolução industrial há muito que vinha minando profundamente o corpo social do próprio capitalismo originário. Já nos anos oitenta o "pleno emprego" fordista convertera-se em desemprego estrutural em massa. Com os novos potenciais de inovação, o patamar desse desemprego estrutural aumentava de ciclo em ciclo. Rápida destruição de postos de trabalho e crescente sufocação constituem apenas o reverso de uma acumulação insuficiente de capital, do qual em última instância depende o Estado do bem-estar. As redes sociais expandidas no boom fordista começavam a romper, executadas pelas contra-reformas neoliberais. Não admira que os USA e a Grã-Bretanha, com a "reaganomics" e o "thatcherismo", tenham sido os pioneiros e tenham assim retornado apenas às suas respectivas tradições radicais de mercado. Mas na Europa continental essas contra-reformas encontravam ainda resistência. As raízes do Estado do bem-estar vêm em França da grande revolução e na Alemanha das reformas sociais de Bismarck no império do kaiser Guilherme. Ainda nos anos noventa o modelo de estado social francês e alemão, o chamado "capitalismo renano", era considerado uma alternativa à "revolução neoliberal" anglo-saxónica.

O processo de crise da terceira revolução industrial ultrapassa contudo facilmente todas as fronteiras nacionais, históricas e culturais. A lógica geral capitalista assenta mais fundo do que qualquer "modelo" político-económico específico. Mesmo o particularmente marcado estado social alemão, que parecia construído para a eternidade, desgastou-se irreversivelmente já na era do chanceler conservador Helmut Kohl, nos anos 80 e 90. Nesse período o desemprego atingia sobretudo as camadas pouco qualificadas, pessoas sem formação e trabalhadores fabris indiferenciados. As prestações sociais só foram reduzidas ou canceladas para as categorias sociais mais baixas da sociedade, ou seja, para pessoas sem rendimentos ou sem segurança social, pessoas com deficiência física ou psíquica, etc. Foram atingidas sobretudo as "mães sozinhas com crianças". Desde os anos 80, para parte da população a família burguesa foi reduzida a um resíduo de mãe e filho através do processo de "individualização" (Ulrich Beck). A nova pobreza era envergonhada e antes de mais feminina e invisível.

Quando a coligação vermelho-verde do chanceler Gerhard Schröder chegou ao comando, muitos acreditavam que o novo governo iria levar a sério as velhas reivindicações da geração de 68 e deter a desmontagem social, ou mesmo em parte revertê-la. Mas foi exactamente o contrário que aconteceu. Perante sempre novos recordes de desemprego e sob a pressão da globalização, a coligação vermelho-verde revelou-se precisamente como a vanguarda dos cortes mais radicais e extensivos já empreendidos no sistema social. Um programa completo deste tipo de medidas foi assumido sob a designação de "Agenda 2010". O núcleo central é constituído pelas chamadas "Reformas Hartz", do nome do seu inspirador Peter Hartz, que como presidente da comissão da reforma adquiriu uma famigerada notoriedade. Sendo das mais conhecidas imposições do "Hartz IV", entradas em vigor no início de 2005, as prestações do subsídio de desemprego foram drasticamente reduzidas em tempo como nos países anglo-saxónicos, e o segundo nível de subvenção até aqui em vigor, o "apoio no desemprego" proporcional ao salário anterior, foi fundido com o nível mais baixo do chamado "apoio social", na base de um mínimo de existência bem reduzido.

Milhões de pessoas estão agora condenadas a este mínimo, que no passado se aplicava apenas a uma camada minoritária. Decisiva, porém, é ainda a novidade de que estas prestações apenas serão pagas quando os beneficiários previamente tiverem utilizado as sua próprias poupanças até ao fim. A aplicação deste critério significa um até agora desconhecido sistema de controlo degradante: os atingidos são coagidos a facultar sem reservas as suas relações pessoais às autoridades. Até as cadernetas de poupança das crianças têm que ser mostradas.

Para se compreender o que está aqui em causa é preciso tornar claro o pano de fundo social. O desemprego atinge na Alemanha, como em outros centros capitalistas, partes cada vez maiores das camadas qualificadas: técnicos, professores, assistentes sociais, advogados, médicos e parte dos médios gestores. É a derrocada das "novas classes médias". O colapso da New Economy em 2000/2001 e a deslocalização da produção de software para a Europa oriental, Índia, etc. lançou também os especialistas em informática e Internet no turbilhão da decadência social. Pessoas que ainda no fim dos anos 90, sob o signo da economia das bolhas financeiras, sonhavam com riqueza rápida vêem-se de repente irremediavelmente confrontadas com a perspectiva de empobrecimento. A quebra da acumulação de capital actua igualmente no domínio cultural: jornalistas, publicistas freelancers, redactores radiofónicos, artistas, livreiros, editores e grande parte da estrutura académica média perderam a sua base de existência.

O desemprego crescente das camadas médias já não pode ser amortecido pelo estado social. A administração da crise capitalista obriga a lançar mão de todas as formas de poupança privada, herança, etc. e até património imobiliário. Vivendas são leiloadas, melhores habitações têm que ser trocadas por outras. A "gordura fordista" é consumida. Para dizer de maneira drástica: como no Terceiro Mundo, uma grande parte das camadas qualificadas e da intelligentsia vai sendo sucessivamente "africanizada". Relações de trabalho precárias, empresariado de miséria e prestação de serviços de miséria alastram. Cada vez mais pessoas são empurradas da produção e da cultura para a esfera da circulação: vende qualquer coisa de qualquer maneira ou morre! — esta é a palavra de ordem.

É verdade que há protestos contra estes desenvolvimentos, mas sem uma solidariedade geral. Em vez disso agudiza-se a luta concorrencial em defesa do respectivo estatuto. As próprias "Reformas Hartz" são uma expressão disso. Peter Hartz, o spiritus rector destas medidas desenvolveu a sua agenda como director de pessoal da Volkswagen-SA, e membro do partido social-democrata e do IG Metall [Sindicato dos Metalúrgicos]. Ao mesmo tempo, precisamente a Volkswagen como conglomerado internacional tinha representado sempre o modelo da "Alemanha-SA". Esta serviu de modelo para integração nacional de capital financeiro, sindicatos, consumo de massas e estado social numa base que não pode ser designada senão de racista. Não por acaso foi a Volkswagen uma criação do nacional-socialismo de Hitler. A mobilização e "automobilização" fordistas da sociedade tiveram lugar aqui em nome da comunidade popular e de sangue alemã, como programa racista e anti-semita. Depois de 1945 este modelo foi economificado e individualizado, sem se digerir criticamente a história da fundação.

Hartz aparece como símbolo da denúncia deste modelo "a partir de cima". O capital financeiro desnacionalizado perdeu a capacidade de integração social. A classe globalizada de todos os grupos sociais incluindo os sindicatos abriga-se nos global players, nos "empregos centrais", nas universidades de elite e no resto dos "mais bem pagos"; as infra-estruturas são reduzidas e feitas à medida de poucas regiões metropolitanas. Uma minoria minguante da sociedade fica socialmente isolada; como nos USA e nas aglomerações mamutes urbanas do Terceiro Mundo, surgem também em várias regiões da Alemanha perigosas "no go areas", por um lado, e guetos de luxo com serviços privados de segurança, por outro, não apenas na capital Berlim. Segundo informação das associações de beneficência alemãs, nos poucos meses desde o início das reformas Hartz a pobreza atingiu uma dimensão sem precedentes na história alemã recente. E essa pobreza cada vez mais sai da clandestinidade para a luz do dia: os sem-abrigo já não passam despercebidos, assim como cada vez há mais meninos de rua. Os pobres reconhecem-se cada vez mais pelas roupas estragadas e pelos dentes esburacados, já que o tratamento dentário e as obturações foram em grande parte cortados da lista dos benefícios cobertos pelo seguro de saúde geral.

Em França e demais países da União Europeia vão-se consumando processos similares. A Alemanha como potência económica central acaba por marcar o compasso também na decadência. A miséria social e económica transformou-se de repente na grande crise da União Europeia, cujo processo de integração parecia até há pouco irreversível. Neste interim, as maiorias sociais empobrecidas e ameaçadas pela miséria enxergam no forte neoliberalismo da Comissão Europeia com a sua burocracia supra-nacional apenas o instrumento da globalização, por meio do qual se destrói o bem-estar. Esta voz desabafou com o grande "Não!" na votação do projecto de constituição da UE em França e na Holanda. Na Alemanha, onde o projecto de constituição nem sequer foi posto à votação, um referendo não teria resultado diferente. A classe política da UE lamenta-se do seu "povo" desunido. Mas na realidade os próprios governos individuais há muito que perante as contradições procuram regressar à protecção nacional. Os consequentes newcomers populistas de direita dão o tom a toda a classe política, que fica entalada entre o mercado mundial sem entraves, as pretensões nacionais e a burocracia económica da UE.

Na base social, por baixo, tal como na administração e na política, por cima, manifesta-se na UE, perante a miséria crescente, uma forte tendência para a renacionalização, que no entanto esbarra na realidade da economia mundializada. Não há regresso a um bem-estar nacional integrado, cortado do exterior. O pensamento reaccionário está sempre condenado ao fracasso, ainda que possa entretanto causar grandes danos. O "não" à Constituição neoliberal da União Europeia não tem nada de libertador; ele foi, em primeira linha, um retrocesso obstinado a posições racistas e nacionalistas no mais fundo rincão do centro social. Não se trata aqui da articulação de uma resistência social geral, mas de uma luta pelas linhas de demarcação da exclusão social.

Em primeiro lugar, a classe média qualificada em queda não quer se alinhar às camadas mais baixas e luta contra a degradação ao nível destas. Em segundo, a miséria nacional de todas as classes volta-se contra os "estrangeiros", pessoas com outra cor da pele, requerentes de asilo e migrantes. Em terceiro, justamente entre académicos e técnicos qualificados, o declínio social exprime-se também como crise da identidade masculina, que neles começa a se manifestar; em todos os domínios e instituições sociais expande-se um novo chauvinismo social e está na ordem do dia a arruaça contra as mulheres.

Na Alemanha Peter Hartz faz de espectro aterrorizador do empobrecimento coercivo; com o nome dele pode-se hoje meter medo às crianças, como antes com o "homem do saco". Mas a graça está em que em Julho de 2005 Hartz tornou-se o centro de um escândalo de corrupção na Volkswagen, que está a ser investigado pelo Ministério Público. A velha rede financeira capitalista de banqueiros, gestores, líderes políticos da Baixa Saxónia, dirigentes sindicais e dos conselhos de empresa dos conglomerados desfez-se moralmente no processo da globalização. Fala-se de firmas fantasmas ilegais, entre outras na Índia, nas quais participava o chefe do conselho de empresa Volkert, amigo íntimo do chanceler Schröder. Evidentemente além disso há sobrefacturação de despesas sem documentos para funcionários sindicais, algumas das quais terão sido utilizadas no Brasil para pagamento de prostitutas de luxo à custa da empresa, tal como luvas e outras situações pouco limpas. Hartz teve que se retirar sem honra. E já se exige em alta voz a mudança do nome das reformas neoliberais, para que não continuem ligadas com o ódio da nação ao mau da fita.

A velha Alemanha-SA desfaz-se sob todos os pontos de vista porque já não tem qualquer base de sustentação económica na crise global da terceira revolução industrial. As reformas Hartz e o caso Volkswagen representam apenas a Matrix de um desenvolvimento geral. Mas a consciência das massas não quer encarar a realidade, pelo contrário suspira pelo regresso ao marco alemão e à antiga situação. Esta renacionalização ideológica na crise acorda os demónios do passado. Na Alemanha-SA tornada irreal transparece de facto na sua decadência a origem no nacional-socialismo de Hitler. Naturalmente o elevador da história não leva ao passado, mas desce até ao fim de toda a modernização e de toda a prosperidade. As vozes racistas e anti-semitas já não têm formação estatal, como na crise económica mundial dos anos trinta, pelo contrário, surgem tão fragmentadas e individualizadas como a nova pobreza. Mas nem por isso são menos perigosas.

Neste clima reaccionário em vez de emancipatório contra o neoliberalismo, as fronteiras entre direita e esquerda tornam-se cada vez mais fluidas. Grandes partes da esquerda política andam à deriva aberta ou envergonhadamente na ressaca da renacionalização ideológica. Uma dissidência de esquerda da social-democracia sob a égide do ex-Presidente do SPD Oskar Lafontaine, que se juntou ao Partido do Socialismo Democrático (PDS), a sigla de esquerda sem conteúdo do antigo Partido de Estado da República Democrática Alemã, vem crescendo nas pesquisas de voto e tem boas chances nas eleições antecipadas para o Outono.

Mas não se sabe bem ao certo o quanto de direita existe nessa esquerda. Lafontaine, com suas investidas contra os "trabalhadores estrangeiros" (uma palavra do jargão dos nazis), está angariando cada vez mais votos do espectro da direita radical hostil aos estrangeiros. Segundo uma pesquisa sociológica publicada em Junho de 2005, pelo menos 20% dos membros dos sindicatos pensam de maneira racista, anti-semita e nacionalista. Aquilo que uma certa esquerda tradicional gostaria de designar como o início de uma nova "luta de classes" é, em grande parte, apenas a máscara do ódio da concorrência da classe média em declínio, do neochauvinismo na crise da identidade masculina e do retorno à nostalgia nacional.

Embora estas conexões não estejam fora do alcance da vista, mesmo os pretensos críticos radicais querem fechar os olhos perante elas. Sob o pretexto de que hoje a situação é completamente diferente exigiu-se num jornal diário da crítica radical precisamente a "desnazificação" do debate sob as tendências de direita na crítica às reformas Hartz. "Desnazificação" foi muitas vezes, sob o pretexto de um recomeço após 1945, o branqueamento dos ex-quadros do nacional-socialismo. Este termo pretende agora branquear as "agitações sociais" contra o neoliberalismo da sua coloração racista e chauvinista, para querer anexá-las "imediatamente" a uma resistência social realmente inexistente. A verdade banal de que a história não se repete é assim instrumentalizada para declarar inofensivas as actuais tendências reaccionárias na crítica social sob as novas condições de crise.

A decadência da Alemanha e a crise da União Europeia devem oferecer ao Sul do globo uma imagem tenebrosa. A ilusão óptica de um mundo duradouro de conforto e bem-estar desfaz-se. Quanto mais o Terceiro Mundo se faz visível no Primeiro Mundo, mais se torna questionável a orientação pelo modelo social dos centros capitalistas. Não é mais o Norte que mostra ao Sul seu futuro de desenvolvimento, mas exactamente ao contrário o Sul mostra ao Norte o seu futuro de crise. É o mundo moderno do "trabalho abstracto" e da "riqueza abstracta" como tal que passa à disponibilidade na crise mundial do século 21. Uma nova perspectiva emancipatória para além do moderno sistema produtor de mercadorias somente poderá ser atingida quando as tendências observadas em toda a parte para uma renacionalização ideológica forem radicalmente criticadas. O liberalismo obstinado das classes globalizadas, por um lado, e a nostalgia nacional das classes médias em declínio, por outro, não constituem nenhuma alternativa aceitável.


Inclusão: 28/12/2019