Barbárie, migração e guerras de ordenamento mundial
Para uma caracterização da situação contemporânea da sociedade mundial

Robert Kurz

23 de janeiro de 2005


Primeira Edição: Original BARBAREI, MIGRATION UND WELTORDNUNGSKRIEGE. Zur Signatur der gegenwärtigen weltgesellschaftlichen Situation in www.exit-online.org. Texto revisto de uma conferência proferida pelo autor em 23.01.2005 no Forum Social Mundial em Porto Alegre. Publicado In: Serviço Pastoral dos Migrantes. (Org.) Travessias na desordem global — Fórum Social das Migrações. São Paulo: Paulinas, 2005.

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


A situação atual do mundo é fortemente determinada a partir de dois fenômenos. De um lado, pelas guerras de ordenamento mundial e ações policiais globais do Ocidente sob a liderança dos EUA; por outro lado, pelos movimentos migratórios volumosos e globais de uma ordem e de um tamanho, provavelmente, nunca vistos antes. Existem tentativas de interpretar ambos os fenômenos ontológica ou culturalisticamente. A guerra, assim já se dizia na Antiguidade, seria o pai de todas as coisas. Mas a guerra não é uma constante antropológica em si, e sim dependente das estruturas sociais e de suas contradições. As guerras contemporâneas de ordenamento do mundo não podem ser explicadas a partir de princípios antropológicos, por exemplo, pressupondo uma "essência humana" bélica, mas apenas a partir de uma análise concreta do desenvolvimento global social que produziu esse tipo novo de guerra. O mesmo vale para o problema dos movimentos migratórios socioeconômicos. Também a migração mundial não é um processo possível de ser explicado a partir de si mesmo. Não é um fenômeno de uma mudança meramente cultural, na qual se demonstra um novo caráter nômade ou até a "essência humana" "propriamente" nômade, como alguns filósofos pós-modernos afirmam. A migração, como a guerra, apenas pode ser explicada como fenômeno de um desenvolvimento social concreto.

Para isso, primeiramente precisamos de um conceito crítico da sociedade na qual esse desenvolvimento se dá. Na modernidade, a estrutura social é determinada pela tentativa de subordinar tudo o que é humano à valorização do capital (seja nas formas do capitalismo concorrencial ou do capitalismo de Estado). A lógica do capital consiste no fato de produzir, mediante a aplicação de força de trabalho humana, "riqueza abstrata" (Marx), fazer de um dólar (ou euro ou real) dois, num processo infinito de valorização como um fim em si mesmo. Somente essa lógica fez da produção de mercadorias e, deste modo, do mercado, um sistema universal dominante da sociedade. A economia, nesse sentido, moderna, é hoje, como poderíamos dizer ironicamente, a madrasta de todas as coisas. Se isso é "economicismo", como afirmam os ideólogos pós-modernos, trata-se , todavia, de um economicismo socialmente real e objetivo e, enquanto essa realidade negativa, deve ser criticado e não eludido ou banalizado como apenas uma ideologia.

É verdade que o economicismo real capitalista não bate certo: a sua pretensão absoluta é inalcançável. Por isso, tudo o que esse economicismo não pode alcançar plenamente precisa cindir e colocar em segundo plano como valor inferior, principalmente os momentos da vida e da reprodução relegados às mulheres. Mas o núcleo estrutural da sociedade oficial é a economia da valorização, e a aplicação de recursos sociais é determinada por aquele. A política não comanda essa economia; isso foi uma ilusão da história da modernização, mas é apenas uma esfera secundária na qual se lida com os problemas resultantes do processo de valorização. Isso também vale para a guerra como continuação da política com outros meios (Clausewitz).

Nesse contexto de um "economicismo real" crescente pela ampliação global do modo de produção capitalista e pela penetração do mercado mundial até os poros da sociedade, formam-se tendências históricas específicas. Para entender fenômenos como a guerra de novo tipo e as migrações maciças de novo tipo é necessário analisá-las na sua dependência do desenvolvimento do capitalismo global, de seus fluxos de dinheiro e mercadorias, como também da sua capacidade maior ou menor de aplicação de força de trabalho. Só a partir desse pano de fundo ambos os fenômenos podem ser entendidos no seu nexo interno.

História e causas da migração global

Desde o início da história da modernização, a migração desempenha um papel como uma breve retrospectiva histórica o demonstra. Do século XVI até o século XIX, a formação do capitalismo na Europa sempre foi acompanhada por uma forte migração interna nos diversos países. No século XVIII, a "vagabundagem" era um fenômeno em massa; Rousseau pertencia, na sua juventude, a esse círculo de vagabundos. Com o começo da industrialização, inicia-se o chamado êxodo rural; as pessoas migraram das regiões agrárias para os centros industriais, e as grandes cidades modernas surgiram.

A ideologia oficial afirma que a grande força de atração dos centros urbanos capitalistas e do trabalho industrial inicial devia-se ao progresso civilizatório; as pessoas teriam reconhecido que, no âmbito de um novo modo de produção e de vida, poderiam se dar melhor. A realidade é outra. Num processo violento, que Marx denominou de "acumulação primitiva", as pessoas foram expulsas das suas terras e socialmente desenraizadas (por exemplo, mediante a transformação dos campos de cultivo em pastagem para ovelhas dos latifúndios, como aconteceu na Inglaterra). Também o êxodo rural posterior já foi causado pela "coerção silenciosa" (Marx) do desenvolvimento capitalista do setor agrário e não por motivos civilizatórios livremente escolhidos.

Já no final do século XVIII e em todo o século XIX, existiam movimentos migratórios que ultrapassavam as fronteiras nacionais. Na época, principalmente da Europa para as Américas do Norte e do Sul e para a Austrália. Esses fluxos de migrações para ultramar foram produzidos pelas crises de modernização européia, no início do capitalismo: pauperismo e miserabilidade absoluta como conseqüências das guerras de modernização européias de formação estatal e nacional, mas também da derrota da revolução de 1848. As levas migratórias da época, para além do Atlântico, foram alimentadas pela esperança de um novo começo para viver nas "zonas virgens" da selva e das gigantescas "áreas livres" do Novo Mundo, sem a pressão social das relações européias do início do capitalismo e da repressão e miserabilidade. Mas os migrantes europeus já encontraram, por sua vez, em todos os lugares, elementos do capitalismo; por outro lado, trouxeram, eles mesmos, esses elementos na forma de sujeito burguês, como produtores de mercadorias e sujeitos monetarizados, sem terem disso plena consciência. Os diversos movimentos migratórios do século XVI até o século XIX ainda não possuíam um caráter global e universal; relacionaram-se essencialmente às sociedades européias do desenvolvimento capitalista inicial.

A migração interna seguiu as levas não simultâneas da modernização nos diversos países. A migração para ultramar seguia as conjunturas de crise político-econômica, guerras e outros acontecimentos políticos. O plano fundamental de todos esses processos foi formado pela colonização interna e externa — a dominação das pessoas para o "trabalho abstrato" (Marx) do capitalismo. Quaisquer que tenham sido esses processos, foram iniciados independentemente dos motivos socioeconômicos ou políticos particulares de latifundiários, príncipes, colonizadores, banqueiros ou, também, simples aventureiros; o resultado foi a "liberação" de pessoas desenraizadas, coercitivamente mobilizadas, que foram sugadas pelo modo de produção capitalista em expansão por sua fome de hands (mão-de-obra). A mobilização da força de trabalho "liberado" para a expansão capitalista formou, portanto, o pano de fundo de todos esses movimentos migratórios particulares e diferenciados.

A migração atual, comparada com isso, tem outra qualidade: não é mais limitada a determinadas levas não-simultâneas da modernização em diversos países, mas é universal e global; realiza-se quase em todos os lugares simultaneamente e se demonstra em novas dimensões. A causa: a nova migração maciça desde o final do século XX é conseqüência de uma nova crise socioeconômica da terceira revolução industrial, que possui diretamente um caráter global. Microeletrônica, tecnologia de informação e globalização do capital produzem, além de todas as barreiras nacionais e culturais, uma sociedade mundial imediata, mas não positivamente como uma conquista, e sim negativamente como processo de dissecamento econômico: cada vez mais pessoas se tornam "supérfluas", porque não podem mais vender a sua força de trabalho.

Muitas grandes fábricas e, ainda mais, pequenas empresas caem abaixo do nível de produtividade determinado pelo mercado mundial, tornam-se não-rentáveis e, por isso, mais cedo ou mais tarde, são fechadas. Em lugar de um sistema que cubra o mundo todo com trabalho assalariado e valorização, vai surgindo um capitalismo insular: no mundo inteiro, a reprodução capitalista se reduz a "ilhas", ou melhor, "oásis" da produtividade e rentabilidade, em vota dos quais surgem desertos econômicos. Como conseqüência, reduzem-se violentamente as receitas estatais; grandes partes das infra-estruturas são abandonadas ou estão direcionadas à reduzida produção dos "oásis". Estes têm uma densidade maior em determinados países e regiões dos centros capitalistas, enquanto no Leste e no Sul são menos densos e em algumas regiões mundiais nem existem mais. A própria produção de mercadorias deixa de integrar grandes massas da produção global. Os "supérfluos" estão sendo expelidos para circuitos subordinados, seja como empresários da miséria na circulação (ambulantes), como catadores de lixo, seja como força de trabalho doméstica barata; ou, então, caem em miserabilidade absoluta.

Essa a verdadeira estrutura da globalização capitalista, cuja dinâmica deixa crescer tanto os desertos econômicos quanto o processo paralelo da crise ecológica amplia os desertos geográficos. Os "oásis" da valorização restante do capital, espalhados em densidade diferenciada em todo o planeta, tornam-se pontos de atração para uma humanidade que desaprendeu a criticar o capitalismo tão radicalmente quanto necessário. Mas essa força de atração não é, hoje, como no passado, resultado de um progresso civilizatório, tampouco de motivos livremente escolhidos, mas continua a ser o resultado de processos cegos de "liberação" e desenraizamento, agora, contudo, na direção exatamente oposta da história anterior da modernização. As pessoas não estão coercitivamente "Liberadas" das relações agrárias para o trabalho abstrato, mas estão sendo catapultadas para fora do próprio trabalho abstrato. O pano de fundo não é mais, no entanto, a mobilização da força de trabalho para o capitalismo, mas a desmobilização mundial da força de trabalho na terceira revolução industrial, que estragou o apetite do capital por "hands" (mão-de-obra).

O próprio capital está vagabundeando pelos "oásis" globais da rentabilidade para aproveitar os desníveis dos custos. Por outro lado, surge uma enorme pressão social que leva à vagabundagem global da força de trabalho, a qual migra em massa das crescentes áreas desertas econômicas em direção aos "oásis" cada vez mais reduzidos.

Os movimentos migratórios das épocas pré-modernas da história humana sempre estavam ligados a catástrofes, mudanças climáticas e outros condicionantes da primeira natureza. As pessoas da época glacial se retiraram da expansão das geleiras, os caçadores seguiram as migrações da caça, os pastores trocaram os pastos. Os movimentos migratórios sociais modernos, ao contrário, são, por assim dizer, condicionados pelas catástrofes e mudanças de clima da "segunda natureza" (social), que é produzida em cegos processos econômicos e políticos. Como a dominação capitalista da natureza é, ao mesmo tempo, destruição da natureza, também é idêntica ao fato de que as pessoas dominam menos do que nunca a sua própria sociabilidade. A migração em massa socioeconomicamente forçada, desde o final do século XX, é um forte indicador para o fato de que, definitivamente, a cega dinâmica social do capitalismo está fora de controle e, não por último, também indica, com a desmobilização global da força de trabalho, o final de uma capacidade imanente de desenvolvimento capitalista.

Estruturas da migração universal

A nova migração universal tem suas próprias estruturas. Muitas vezes trata-se de fluxos de migração socioeconômica dentro de países das regiões "excluídas" e desertificadas economicamente para os respectivos "oásis" nacionais da rentabilidade. Em parte, isso é a continuação de anteriores movimentos internos tradicionais da história da modernização, originalmente no decorrer da ascensão de determinados centros nacionais, quando a expansão capitalista de produção de mercadorias ainda formava o horizonte de desenvolvimento. O exemplo mais conhecido na Europa ocidental é a Itália com sua duradoura migração interna do mezzogiorno para as regiões industrializadas do norte. Outro exemplo da periferia capitalista é o Brasil, onde a migração do Nordeste para as áreas de integração parcial no mercado mundial no Sudeste também já faz parte da história da modernização.

Contudo, dentro dessas migrações internas tradicionais, hoje acontece uma ruptura; não se realizam mais na perspectiva do desenvolvimento, mas sob condições qualitativamente novas da crise global e de suas formas de aparência nos respectivos países. Por um lado, a migração relativamente freada do desenvolvimento tornou-se uma migração da miséria em massa não controlada; por outro lado, grande parte dessa migração da miséria de força de trabalho desmobilizada também não mais encontra nos "oásis" da rentabilidade nenhuma ocupação regular. Em conseqüência, formaram-se, em menos de duas décadas — desde o início da terceira revolução industrial, não só no Brasil, mas também em muitos países da periferia do mercado mundial –, verdadeiras aglomerações urbanas monstruosas de uma população que não mais é integrável ao sistema produtor de mercadorias.

No mesmo contexto de uma desmobilização mundial da força de trabalho, existem inúmeros fluxos totalmente novos de migrações internas que não possuem nenhuma tradição na história da modernização. Ao contrário, são somente resultados da nova crise mundial. Isso também vale para a Europa e para a Alemanha. A absorção da República Democrática Alemã (RDA) pela República Federal da Alemanha foi economicamente uma grande ilusão, porque a indústria colapsada da RDA não podia ser rentavelmente reproduzida sob a manta monetária da moeda da Alemanha ocidental. Esta industria foi, em grande parte, fechada. A conseqüência é um fluxo permanente de migração interna da Alemanha oriental para a Alemanha ocidental, sem impedimento de muro nenhum. Totalmente nova e assustadora em seu volume é a migração em massa no interior da China, da economia interna, agrária e industrial, não-rentável e crescentemente ameaçada pela integração no mercado mundial, em direção às zonas económicas especiais de industrialização para a exportação. Exemplos semelhantes se acumulam também em outras áreas.

Contudo, os fluxos da nova migração de crise obviamente não param nas fronteiras nacionais. Além das migrações internas nacionais, surge também a nova dimensão de uma grande, global e socioeconômica migração em massa, e muito além dos movimentos migratórios tradicionais do século XIX, da Europa para as Américas do Norte e do Sul e para a Austrália. As migrações se dirigem do leste para oeste, do sul para o norte: em direção à União Européia de toda a Europa oriental e Ásia central, passando a fronteira oriental; ao mesmo tempo do norte da África e das áreas a sul do Saara, ultrapassando o mar Mediterrâneo; e em direção aos Estados Unidos, partindo de toda a América central e da América do Sul. Há tempos, observa-se também a tendência de uma remigração da América Latina para os países de língua latina da Europa, como, por exemplo, da Argentina — abalada pela crise — para a Itália. Mas também internamente, na Ásia oriental, há cada vez mais uma migração maciça em direção ao Japão, à Austrália e às zonas de integração no mercado mundial no sudeste asiático.

Na sua estrutura social, migração corresponde quase exatamente aos diversos graus de crise e de colapso econômico em diversos países. Primeiro, trata-se, até agora em número reduzido, de especialistas qualificados ou estudantes que, em seus locais de origem, não encontram nenhuma ocupação correspondente à sua qualificação, porque a força do capital não é suficiente para indústrias de alta tecnologia, infra-estruturas e instituições de ensino. Em segundo lugar, trata-se, principalmente, de força de trabalho jovem masculina para serviços pesados e inferiores nas zonas dos "oásis" (coleta de lixo, trabalho sazonal na agricultura, gastronomia etc.) que, porém, recente e crescentemente enfrentam a concorrência dos excluídos nativos. Passaram-se os tempos em que se deixavam tais serviços de salários miseráveis para os migrantes, podendo-se confiar no fundo de desemprego da previdência social. Agora as administrações capitalistas de crise exercem pressões sobre a força de trabalho nacional para que esta aceite trabalhos de baixa remuneração, cortando o fundo de desemprego e limitando-o temporariamente cada vez de modo mais drástico. Em terceiro lugar, pertence à estrutura social das migrações que ultrapassam as fronteiras um número elevado de força de trabalho jovem feminina. Essas mulheres acabam ou imediatamente na prostituição em massa, ou como empregadas domésticas ou enfermeiras de clínicas ou asilos onde formam um amortecedor de salários baixos na redução das infra-estruturas condicionada pela crise. Também aqui se agudiza a concorrência com a força de trabalho nativa barata que é forçada pela administração de crise, principalmente entre a população feminina.

Nessa concorrência, existe um aspecto que pode ser uma vantagem para as migrantes e os migrantes: são, talvez, os desníveis nas taxas de câmbio. Se esses migrantes não pretendem ficar permanentemente no ocidente, ou, à medida que eles apóiam as suas famílias que ficaram em seus lugares de origem, então eles podem ser baratos sem concorrência, porque o poder de compra dos salários baixos que recebem na Alemanha ou nos Estados Unidos é multiplicado na Bolívia ou na Polônia. Nesse contexto, é importante notar que milhões de famílias da periferia capitalista em parte ou regiões de alguns países ou em países inteiros, não vivem mais de forma capitalista por conta própria, mas estão dependentes, em partes essenciais, de remessas dos migrantes e das migrantes. Essa dependência, obviamente, não é nenhuma "vantagem" da globalização, mas apenas um indicador de que partes crescentes do mundo estão sendo economicamente apenas "artificialmente" alimentadas e não possuem nenhuma capacidade própria de existência capitalista.

A causalidade econômica das guerras de ordenamento mundial

As novas guerras de ordenamento mundial pertencem ao mesmo contexto global das migrações em massa. Não mais se trata de guerras imperiais clássicas entre as potências hegemônicas capitalistas, como na primeira parte do século XX, nem de guerras entre os Estados dependentes e representantes das duas superpotências, como na segunda metade do século XX. Na sociedade global da crise da terceira revolução industrial, no início do século XXI, existe somente uma superpotência: os Estados Unidos. O conflito com alguns Estados da União Européia nem é sério nem tem fundamento económico, como a rivalidade no imperialismo clássico. Ao contrário, a crise da terceira revolução industrial criou um contexto político-econômico, no qual a valorização capitalista global, enquanto ainda pode ser realizada, isto é, também a economia da União Européia, tornou-se duplamente dependente dos Estados Unidos.

Primeiro, o capital transnacional total depende da rentabilidade dos "oásis" globalmente dispersos e de maior densidade, dos Estados Unidos e da União Européia. Não há nenhum interesse no controle completo territorial das regiões mundiais periféricas, como no imperialismo clássico, mas apenas um interesse na manutenção e segurança desses "oásis" contra as massas da população "supérflua" desmobilizada e que caiu para fora. Para isso, apenas os Estados Unidos têm condições militares; todos os outros Estados apenas contribuem com tropas auxiliares.

Em segundo lugar, toda a produção dos "oásis" é também econômica, direta e unilateralmente dependente da superpotência e da supereconomia dos Estados Unidos; paradoxalmente, não por causa de sua força, mas pela sua fraqueza em oposição à sua hegemonia militar. Ali onde, junto com o trabalho, também o poder de compra entra em colapso, o capital, especulativo e excedente é direcionado para os Estados Unidos, que financiam , como se sabe, não só o seu consumo de armamento como última superpotência, mas também o consumo em massa de bens do mundo inteiro que eles freqüentemente não mais produzem. Como reflexo do fluxo do capital monetário (endividamento externo), fluem excedentes não mais utilizáveis das produções dos "oásis" do resto do mundo (déficit da balança comercial para os Estados Unidos). Todo esse constructo se baseia no fato de que os Estados Unidos, com sua máquina militar sem concorrência, podem exercer controle global. O aparelho militar de alta tecnologia serve como garantia do dólar e da potência econômica agora apenas fictícia dos Estados Unidos. Esse aparelho militar representa a "confiabilidade" como última superpotência e a confiabilidade para a contínua entrada de capital monetário.

Esse constructo é extremamente instável economicamente, pois a superioridade meramente militar não pode equilibrar, a longo prazo, os déficits externos dos quais, agora, o restante do mundo depende. Além disso, as crescentes crises e colapsos no mundo do capital globalizado e os potenciais irracionais de ódio e barbárie que resultam disso põem em questão a capacidade de controle da máquina militar dos Estados Unidos até o ponto de ataques terroristas ao seu próprio território (11 de setembro).

As guerras de ordenamento mundial não podem ser explicadas de uma forma vulgar materialista –por exemplo, como uma luta por petróleo ou por outros recursos (a garantia de reservas de petróleo só tem um papel secundário) –, mas objetivam, exatamente por razões econômicas, em primeiro plano, a comprovação de que ainda existe o controle global político militar para garantir o fluxo contínuo do capital monetário transnacional. Da comprovação dessa capacidade de controle depende não só a fé na superioridade militar dos Estados Unidos, mas também, em conseqüência, o constructo do déficit econômico com o qual a economia mundial capitalista está sendo mantida com dificuldade na crise da terceira revolução industrial. Apesar das aparentes querelas superficiais, existe, portanto, um interesse vital de todas as potências capitalistas e da União Européia, no prolongamento desse constructo. Na mesma medida em que se evaporam as ilusões oficiais sobre a natureza e o caráter profundo da crise mundial e que ameaça entrar em colapso o constructo global de déficit, com os Estados Unidos à frente, também as guerras de ordenamento mundial ameaçam perder o controle. Não se pode mais falar, nessa situação, de um papel moderador da União Européia, e ainda menos de uma execução de rivalidade política. Torna-se possível uma "fuga para a frente" pelos Estados Unidos, com novos ataques a países como Síria, Irã e Coréia do Norte, com aplicação de armas nucleares táticas para enfrentar, com medidas cada vez mais duras a perda de controle, como já se torna visível no Iraque.

Do controle da barbárie à barbárie do controle

Frente à crise mundial capitalista da terceira revolução industrial, podemos mostrar agora como a nova qualidade dos fluxos migratórios planetários e a nova qualidade das guerras de ordenamento mundial estão entrelaçadas. A migração é parte essencial dos problemas de controle e segurança capitalista no processo global da crise.

Só uma parte das migrações pode ser explicada diretamente pela força de atração econômica coercitiva dos "oásis" de rentabilidade. A outra parte da migração é, todavia, também conseqüência dos processos socioeconômicos globais da crise, mas, antes, de uma forma indirecta. A mesma desertificação econômica que, de um lado, impulsiona grandes massas a procurar sua salvação nos "oásis" de rentabilidade, por outro lado, provoca, nas sociedades das zonas em colapso, guerras civis sem fim. Quem ainda possui um restinho de reserva e de energia, tem a escolha: ou enfrenta o caminho perigoso sobre montanhas, oceanos e fronteiras, para poder, em algum lugar, ainda vender a sua força de trabalho, ou pode juntar-se a um clã armado, um grupo de terror, um bando de saqueadores, uma milícia religiosa ou étnica. Essas duas opções parecem oferecer a única esperança para uma sobrevivência social. Migração socioeconômica e novas guerras civis são os dois lados da mesma moeda. E dessas guerras, nas quais Estados inteiros decaem, surgem infinitos fluxos de refugiados. Os refugiados do terror, do assassinato em massa, e dos saques são apenas uma continuidade da migração socioeconômica em nova qualidade. Ambos os fenômenos possuem a mesma raiz.

A luta dos Estados Unidos e de seus aliados ocidentais contra a perda de controle é também uma luta contra a migração e contra a fuga em massa. Um "imperialismo de exclusão" visa a assegurar as zonas centrais da produção densificada dos "oásis" contra os fluxos migratórios. Permite-se apenas a migração controlada e não a migração "selvagem". Na Europa oriental, no mar mediterrâneo, e na fronteira sulista dos Estados Unidos, criaram-se cordões de vigilância. Ao mesmo tempo, trata-se de um imperialismo de segurança e das intervenções da polícia mundial de diversas dimensões para proteger os "oásis" de rentabilidade, nas regiões mundiais economicamente já em grande parte desertificadas, contra explosões irracionais de violência.

No entanto, as promessas de humanidade e de "reconstrução" relacionadas a essas intervenções, como no caso da ex-Iugoslávia, do Iraque e do Afeganistão são ocas e nelas não se pode acreditar; constituem ideologia e nenhuma realidade. Não há nenhuma possibilidade de reintegração ao sistema global produtor de mercadorias, porque migrações em massa, guerras civis étnico-religiosas e fluxos de refugiados possuem as suas causas não mais em contradições políticas limitadas ou lutas pelo poder, nem em antagonismos tradicionais culturais, mas, essencialmente, na crise da própria economia mundial e, assim, na desmobilização global da força de trabalho vinculada àquela. Trata-se, nas falsas promessas ocidentais, apenas do controle sobre as consequências das catástrofes sociais tal como elas resultam, com conseqüências cada vez maiores, do modo de produção capitalista dominante; trata-se do controle e de barreiras contra a migração socioeconômica; trata-se de controle sobre refugiados.

A tentativa de manter esse controle por qualquer preço transforma-se tanto em barbárie quanto em formações de reação de terror étnico-religioso nas áreas de colapso e desertificação socioeconômica. Não há mais aqui um lado civilizado pelo qual pode ser tomado partido em nome da libertação e emancipação social. Como o exemplo atual do Iraque demonstrou, os "salvadores da civilização" ocidental não utilizam menos crueldade e menos métodos de tortura que as ditaduras periféricas da modernização e do terror religioso. Não se pode falar, de forma alguma, de uma "salvação da civilização perante o terrorismo" por parte dos Estados Unidos e de seus ajudantes ocidentais, nem de uma "defesa do desenvolvimento autônomo nacional e da soberania" por regimes como aqueles do Iraque sob Saddam Hussein ou da atual Coréia do Norte. No fundamento do moderno sistema produtor de mercadorias, não há mais nenhuma civilização, nenhuma soberania nem desenvolvimento nacional. Libertação só é possível quando se discute seriamente o objetivo de outro modo de produção e vida, para além do mercado mundial e do Estado nacional, para uma humanidade globalizada.

Migração e movimento social em nova perspectiva da crítica radical

Também para a consciência de movimentos sociais das migrantes e dos migrantes só haverá uma perspectiva de futuro quando eles reconhecerem a relação causal entre migração, guerras de ordenamento mundial e barbárie nos limites históricos do moderno sistema produtor de mercadorias. A migração global não pode mais tornar-se um movimento de emancipação na base do trabalho assalariado e da produção de mercadorias, porque já é consequência de uma desmobilização global de força de trabalho. O fato de uma parte cada vez maior da humanidade se encontrar em fuga já é, propriamente, uma expressão de que o sistema mundial de trabalho assalariado de produção de mercadorias está desabando e não pode mais ser politicamente regulado.

A luta necessária contra a discriminação não pode ser estabilizada no sentido do mero reconhecimento enquanto sujeitos da produção de mercadorias. Se as migrantes e os migrantes não quiserem outra coisa senão ganhar o seu pão pela valorização do capital, o seu barco só poderá ir a pique. O movimento das migrantes e dos migrantes não pode ser um novo movimento operário que não queira outra coisa senão o reconhecimento de seus interesses na ordem existente. Pelo contrário, também estão caindo fora do reconhecimento, total ou parcialmente, partes não-migrantes da população "supérflua". No mundo inteiro desaba a condição material e econômica de um reconhecimento formal, isto é, a capacidade do capital para a nova absorção do trabalho em grande escala. Só se pode pensar a luta por reconhecimento provisoriamente, como, por exemplo, o direito de permanência dos "ilegais", das pessoas "não-documentadas". Mas essa luta é apenas possível como uma reivindicação transitória no contexto de uma crítica fundamental e nova do sistema. O movimento social das migrantes e dos migrantes, no sentido de uma conscientização, só pode ser entendido como parte integrante do amplo e transnacional movimento social que está disposto a eliminar o sistema produtor de mercadorias do capitalismo moderno.


Inclusão: 28/12/2019