Santos e pecadores do mercado
O conflito da Comissão Europeia com o governo federal alemão

Robert Kurz

29 de outubro de 2004


Primeira Edição: Original alemão "MARKTFRÖMMLER UND MARKTSÜNDER. Der Konflikt der EU-Kommission mit der Bundesregierung" in semanário "Freitag", Berlin, 29.10.2004

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Quem é o mais neo-liberal em toda a Europa? Parece ter começado assim uma espécie de campeonato da beatice nas questões da abertura dos mercados e do abate das subvenções, entre os partidos, os governos e as instituições da União Europeia. Neste momento, a Comissão da União Europeia está de novo à frente. Sob a égide do presidente cessante da Comissão Romano Prodi, do comissário para o mercado interno Frits Bolkstein e do comissário da concorrência Mario Monti avança antes de mais contra o governo federal alemão, que é inundado por uma maré-cheia de processos e ultimatos. Objectos da má vontade são a lei-Volkswagewn de Janeiro de 1960, os depósitos obrigatórios nas taras e a lei sobre os correios; além disso, são pedidos reembolsos das ajudas estatais ilegais aos bancos dos Länder em montante não inferior a 4,3 mil milhões de Euros.

O governo verde-vermelho ao que parece nunca é suficientemente devoto do mercado e da concorrência. Segundo o jornal "Handelsblatt", Prodi e a sua equipa têm em vista com o procedimento acelerar e endurecer o processo das reformas neo-liberais na RFA, para dar uma "indicação da política de ordenamento". A ser assim, a RFA estaria apenas a ser tratada como caso exemplar. Quando até o país de maior peso económico na UE deixa desvanecer as últimas reservas contra o totalitarismo da concorrência, mais governo nenhum consegue cozinhar uma sopa para a respectiva clientela eleitoral. Mesmo as manifestações de massas são para esquecer. Fechar os olhos e andar. Acabando até com todas as concessões tácticas, as classes políticas têm que se deixar render à absoluta obediência às leis do mercado. Este Deus não permite nenhum outro Deus junto de si e a Comissão Europeia é o seu profeta.

Isto certamente não é nem sequer metade da verdade. A emancipação social e os imperativos do sistema a serem executados pela política de modo nenhum estão a priori em contraposição. A concorrência universal também é eficaz junto daqueles que exprimem as suas reservas contra o desenfreamento do capitalismo. A coisa funciona segundo o velho e respeitável mote: meu rico São Floriano, poupa a minha casa, pega fogo a outras! Neste sentido, a política não pode desempenhar qualquer função puramente repressiva. Até os regimes ditatoriais precisam de uma reacoplagem legitimatória, por maioria de razão a administração democrática da crise. As contra-reformas neo-liberais têm que ser vendidas e portanto é precisa uma aparência de capacidade de acção política, pelo menos para uma clientela social residual. Tanto o populismo de direita como o populismo de esquerda vivem em igual medida oferecendo aos necessitados um apoio, que esperam fazer pagar por outros. É o caso sobretudo de certos empregados dos serviços centrais dos grandes conglomerados e de certos segmentos centrais das infra-estruturas, cujos rebates de consciência têm força de irradiação sobre o medo e a esperança da sociedade mediática de massas.

À primeira vista há que reconhecer que as leis e medidas criticadas pela comissão Europeia caem todas nesta rubrica. A lei-Volkswagwen protege o conglomerado de prestígio do passado milagre económico contra tomadas hostis e garante a influência estatal da Baixa Saxónia; sem a mais pequena garantia contra despedimentos em massa. A questão dos depósitos obrigatórios nas taras, na prática uma farsa, é importante para a legitimação dos verdes-vermelhos, perante a má consciência ecológica de parte das novas classes médias, que ainda tem esperança na sua capacidade de reprodução capitalista. A lei sobre os correios serve de guarda-chuva a determinadas estruturas nacionais da antiga empresa estatal, contra a concorrência de outras ofertas de serviço mais barato. E as subvenções aos bancos dos Länder visam uma influência estatal mínima no sector financeiro, para garantir uma capacidade de acção com "medidas de apaga-fogos", evitando contra-medidas duradouras.

Naturalmente nada disto é desconhecido para os comissários europeus. Porque não estão amarrados aos problemas de legitimação nacional-estatal, podem fazer o papel de correctores institucionais, como portadores isolados da linha dura, para assegurar a direcção fundamental das contra-reformas e impedir as tergiversações tactico-eleitorais dos governos. No fundo trata-se duma espécie de repartição de tarefas entre a Comissão, como guarda do Santo Graal do neo-liberalismo, e o populismo dos estados membros, que a apoiam servindo as necessidades nacional-estatais. Nem era preciso dizê-lo. O capitalismo funciona fundamentalmente como paralelogramo de forças de interesses divergentes e rivalidades institucionais. O aparente pecado nacional contra o mercado é parte integrante da devoção ao mercado. Assim se constrói uma falsa polaridade que desorienta a resistência social. Para um efectivo contra-governo seria necessário um transnacional quebrar da concorrência, que superasse a doentia tendência dos segmentos sociais centrais para o populismo nacional, com todas as suas consequências.


Inclusão: 28/12/2019