O comité Nobel passou-se
Apanhado de uma simpática ronda jornalística de homens

Robert Kurz

15 de outubro de 2004


Primeira Edição: Original alemão "DAS NOBELPREISKOMITEE IST VERRÜCKT GEWORDEN. Nachlese zu einer netten journalistischen Männerrunde" (Este texto foi entretanto publicado em versão ligeiramente abreviada na revista de Berlim "Ossietzky"). Tradução de Lumir Nahodil

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O crítico literário de talento mediano raramente é uma mulher. No contexto da crise dos media, a cotação dos críticos literários de talento mediano desceu a níveis comparáveis aos das rações industriais para porcos. Sobre eles paira a ameaça da "transformação do homem em dona de casa" (Claudia von Werlhof). E como se isso não bastasse, agora ainda por cima a Jelinek recebe o prémio Nobel. Para o crítico literário de talento mediano é o fim da macacada. Afinal as mulheres já ganharam de qualquer forma e ocuparam todas as posições, para que é que se há de bater mais no ceguinho? O Matthias Matussek do SPIEGEL, por exemplo, vítima confessa do divórcio e novo pai sofrido, a quem este mundo estruturado de forma matriarcal não entende, por sua vez já não entende o mundo, após mais este acontecimento: "Será verdade?" (SPIEGEL 42/2004), ainda alguém entenderá tamanha afronta? Alguma coisa não está bem: "Esta justificação da atribuição do prémio pela Academia de Estocolmo, horrível como é, merece uma investigação aturada" (Matussek). Mas no fundo já se sabe o que se passa: "Para já, e ninguém o nega, a atribuição do prémio deve-se a um veredicto fundamentado em quotas ... um disco feminista já bastante gasto que neste mês de Outubro uma vez mais é posto a tocar" (Matussek).

O caso não seria tão grave se essa não-sei-quantas premiada não estivesse tão cheia de ódio. Em todo o caso é essa a opinião do crítico literário de talento mediano Tilman Krause no diário conservador DIE WELT. É que, o que aqui desbobina essa mulheraça "menina-prodígio à força" é uma única "ladainha de ódio à constituição precária do mundo, que é um facto, mas que, lá por a odiarmos, não se torna menos precária e que, se é que pode ser resgatada, provavelmente apenas poderá sê-lo pelo amor. Mas, lá está, o amor dá muito trabalho" (DIE WELT, 12.10.2004). Lamentavelmente, ela não leva suficientemente a sério o seu dever feminino do puro trabalho amoroso, essa Jelinek. E, no entanto, nem seria assim tão má como mulher, "a simpática styriense, 57, delicada, loura grisalha" (Matussek).

Mas ai, todo esse ódio aos completamente errados, na obra desta terrível simplificadora: "É ele o porco, o homem " (Matussek). Também o matutino tablóide BILD está horrorizado, e logo tem citações a debitar, por exemplo dos romances "Lust [desejo]" (1989) e "Gier [cobiça]" (2000). Por exemplo: "O pai descarregou um montão de esperma, que a mulher limpe tudo como deve ser ", ou: "O seu sexo já quase lhe pesa de mais para o erguer, que a mulher o carregue um bocadinho, agora", ou até: "Por fim, a mulher recebe uma pancada no traseiro que a volta a encerrar, rudemente a mão do seu senhor percorre as suas frestas e gretas, a sua língua lambe-lhe a nuca, o seu cabelo é atirado para a banheira, o seu clitóris leva um forte puxão, de modo que os seus joelhos se juntam bruscamente e o cu salta como uma cadeira de armar" (in: BILD, 8.10.2004). "Assim chegámos à matéria fecal que, afinal também é um dos assuntos predilectos de Elfriede Jelinek" (Krause). Isto é de meter medo a qualquer javardo, qualquer um que retire gozo do "Lust" fica sem vontade, e será que pode ser esse o sentido profundo da literatura?

E na volta ela, essa Jelinek, já uma vez conhecera um pouco melhor "essa infalível liturgia feminista dos anos oitenta, a do malfeitor e da vítima" (Matussek), e tinha-a posto em causa. Mas it’s all over now, lá vai ela, a constatação: "Aí está ela, sentada em frente a Sigrid Löffler, naturalmente (!) de acordo em absoluto, e vaticina: ‘Demonstro que a sexualidade, da forma que se desenrola no âmbito convencional de uma relação de posse matrimonial, corresponde ela própria a um exercício de violência, nomeadamente da violência do homem contra a mulher’. Assim soa uma poetisa que encontrou as suas certezas e deixou de fazer poesia " (Matussek). Pois bem, a Jelinek é "filha de um químico judeu checo vítima de uma doença dos nervos ... Uma infância infeliz, com as primeiras consultas psiquiátricas aos sete anos de idade" (BILD, 8.10.2004). Isso já dá para entender muita coisa, mas será que tudo isto tem de se fazer passar por literatura, e será que tem de se dirigir tão impiedosamente contra os homens? Os mesmos que sofrem, eles próprios, até dizer chega? E que se defrontam com a ameaça de se verem convertidos em donas de casa? Logo uma coisa dessas é levada aos píncaros pelo prémio Nobel, como se isso tivesse algum jeito: "Quem não deixa que sobre nada de sentimentos ternos, até que tudo, mas tudo mesmo, fique feito em cacos, o amor, a amizade, a ternura, a compaixão, a dedicação e a empatia, esse tem os seus aplausos garantidos. Quando tudo, uma vez mais, estiver desmascarado e desmitologizado como lhe compete, quando estiver revelado e desfigurado até se tornar reconhecível, aí é que tudo será ouro sobre azul" (Krause). Já é tempo que os Matussek e os Krause, uma vez sem exemplo, façam um pouco o papel de quebra-tabus, numa altura em que já quase voltou a ser revolucionário alguém recordar vigorosamente as suas virtudes naturais a essas mulheraças que perderam a feminilidade.

Entre os críticos literários de talento mediano que, perante a ameaça aguda da conversão em donas de casa, se expõem heroicamente ao choque chamado Jelinek, concedendo-lhe um tratamento arrasador de tabus, também há quem seja proveniente dos confins da extrema esquerda do espectro político, como é o caso de Franz Schandl (esperemos que não passe de um pseudónimo) na JUNGE WELT, que se alimenta de jogos de palavras moderadamente espirituosos; quem conheça um conhece-os todos. De resto trata-se de um autêntico compatriota austríaco do Waldviertel, e sabe umas coisas sobre a Jelinek, afinal ela também é de algum modo de esquerda, não deixando de ser lícito que se diga que ela "nomeia o que ninguém nomeia, identifica o que ninguém identifica" (JUNGE WELT, 12.10.2004). Mas, lá está, ela sofre de uma forma um pouco excessiva, e isso torna-a devota do estado, não há volta a dar. O prémio é a prova, supõe Schandl: "A atribuição do prémio Nobel a Elfriede Jelinek terá por consequência que a grande sofredora irá de repente apresentar-se a todos a uma luz sofrível. Na Áustria, de ora em diante ela está condenada ao papel da poetisa de estado ... Lá que ela suja o ninho, não há dúvida. Poucos sabem exibir o ninho sujo com tanta eficácia como a Jelinek ... Sujar-se o ninho é por vezes quase que o pressuposto para uma pessoa receber um lugar de destaque na Galeria Nacional ... Quer queira, quer não, ela passou a ser um produto de marca, um trunfo lucrativo para o seu país".

Tudo isto comporta uma mensagem subliminar, nomeadamente: O Schandl, com a sua integridade esquerdista, eleva-se muitos andares acima da Jelinek. E a prova? Não recebe qualquer prémio. É essa a prova. Nem sequer uma bolsa de apoio à criação literária de Vila Nova dos Papalvos. Assim, na sua lógica estringente, ele não se vê constrangido a converter-se em poeta de estado, e tão-pouco constitui um produto de marca, e isso já é dizer qualquer coisa. Uma integridade de vanguarda dessas é o que evidentemente a Jelinek já não tem para apresentar, por muito que lhe custe, pois bem, talvez nem seja culpa sua, e ela simplesmente teve o azar de receber nada menos que o prémio Nobel, e lá está ela com as saias na mão. Mas é neste ponto que o Schandl ergue a mão em jeito de consolação, afinal não é assim tão cáustico, chegando quase a perfilar-se como um apoiante abnegado da Jelinek: "Elfriede Jelinek é uma grande escritora, mesmo que possa ter um ar esforçado e penoso". Será que a visada tem, agora, de dizer "obrigada"?

Assim sendo, esta atribuição do prémio não é propriamente uma vergonha, mas não deixa de ser um pouco Schandl [o nome aqui é interpretado como diminutivo austríaco de Schande (vergonha)] (esta frase poderia ser dele). A Matussek, que afinal também não é propriamente um líder de exportações, apenas resta concordar; lá vai ele, esse bocadinho de integridade de ódio feminino da Jelinek: "Com a consagração de Jelinek, o escândalo da sua escrita está abolido, e de forma definitiva, se é que alguma vez existiu. Juntou-se ao pachorrento centro e agora vai tornar-se por algum tempo locomotiva das exportações da república dos Alpes". Descambou completamente para o establishment, a mulher, só nos resta ter pena dela.

Ainda será lícito perguntar, em que medida a qualidade literária das suas odes odiosas é de facto por aí além, acham os senhores quebra-tabus. Ou será que isso também já é proibido nesta terra matriarcal, onde os homens são convertidos em donas de casa? Afinal ela própria o sabe, a Jelinek, "o último prémio Nobel alemão foi atribuído a um romance de craveira mundial, o ‘Tambor’ de Günter Grass, ao passo que o que ela tem a oferecer são, em primeira linha, excitações nervosas" (Matussek). Esboçando um gesto de cavalheirismo, o colega da república alpina levanta uma objecção que não deixa de concordar: "A sua escrita poderá abundar em fracassos, mas trata-se de fracassos de elevado nível" (Schandl). Esta afirmação não tem nada de sabichão, visto que o Schandl nunca fracassa, nem sequer a um elevado nível. A "fornecedora de escândalos teatrais, com um leque de temáticas bastante estreito" (Matussek), contudo, continua intragável, neste ponto todos estão de acordo: "Também poderia dizer-se: Tudo se mistura com tudo, ressentimentos, ronrons psicologizantes, árias surreais, ódio ardente, vulgaridade" (Matussek). Há que apreciar devidamente os termos utilizados: "ronrons psicologizantes", "ódio ardente" — por que é que não foi o artista estilístico Matussek quem ganhou o prémio?

Mas esse até é modesto, visto supor que antes dele ainda haveria outros homens sofridos a merecê-lo: "E ainda ninguém se lembra de gritar PHILIP ROTH, que sabe contar e fazer magia e que, no seu último romance, ‘A mácula humana’, não só pôs a nu o racismo americano, como igualmente, e já agora, o meio politicamente correcto dos campus universitários e os respectivos triunfos feministas do refugo?" (Matussek). É mesmo um triunfo feminista do refugo, este Prémio Nobel da Jelinek. Se ao menos ela não voltasse tão monomaniacamente às maleitas gerais femininas. Aí o Schandl não se vem, antes vêm-lhe os vómitos (também esta frase poderia ser dele). E ainda por cima tem falta de sentido de humor: "Ela nega [ao leitor] — contrariamente a outros autores críticos — uma risota libertadora" (Schandl). Tem-se de brincar um pouco, disse Wallenstein [alusão a um dito popular vincadamente ordinário; N.d.Tr.], e umas pancadinhas nas coxas fazem bem à saúde [alusão a uma dança folclórica das populações (masculinas) dos Alpes germanófonos; N.d.Tr.], se o homem convertido em dona de casa já não tem outro gozo na vida.

Vai-te esconder, sempre esse retrato negro sobre negro, será que a Jelinek não pode fazer por menos? "E nem sempre se consegue suportar esse sofrimento todo, por exemplo no romance de seiscentas páginas ‘Os filhos dos mortos’ (1995), em que a autora leva os receptores, mesmo os benevolentes, pura e simplesmente à capitulação com a exuberante torrente barroca dos seus jogos de palavras" (Schandl). Afinal, para as torrentes de jogos de palavras já cá temos o próprio Schandl. Pois é, se for um James Joyce ou um Robert Musil, bem podem vir mais umas centenas de páginas; mas quanto ao sofrimento das Marias, não se poderia abreviar um pouco? E afinal ela sabe ser mais sintética, a Jelinek: "No entanto, depois, em ‘Sportstück’ [Peça desportiva] (1998), ela conseguiu o que não lhe fora dado alcançar no romance" (Schandl).

Já nem vale a pena gastar muita saliva com o facto de a Jelinek não bater bem da bola. Ela projecta o seu desespero nos homens, se bem que na realidade, "como é sabido, sofreu muito com a mãe" (Krause). Isso tem cura, a mulher apenas teria de fazer um esforço maior quanto ao aperfeiçoamento de si própria e do seu feitio: "O trabalho sobre o Eu, de Freud, é difícil, mas pode ser bem sucedido. A Jelinek dá-se bem com a regressão e a pose" (Krause). A culpa deve ser da demência fisiológica da mulher. Esta circunstância dá direito a largar um jogo de palavras: "Gente dessa perturba, por isso o melhor a fazer é declará-los um pouco perturbados. O que, de qualquer modo, passa a vida a acontecer à Jelinek" (Schandl). E aí ninguém pode ficar de fora, pois o que interessa é participar, quando se trata de quebrar tabus: "Em declarações públicas, ela apresenta-se atabalhoada, ingénua e acanhada, mas sobretudo como quem não está à altura da situação" (Schandl). Pois lá está, a mulher, em público, é automaticamente acometida por uma espécie de incapacidade de responder pelas suas acções; ela parece ingénua e não à altura da situação, quando não está a fazer café. Não deixar de fora nem um único cliché também é uma arte, e já há muito não tinhamos nada que chegasse perto disto.

Os deslizes políticos da agraciada com o prémio Nobel, esses constituem um capítulo à parte: "Para finalizar, resta, no entanto, observar que ela vislumbra mais como poetisa do que compreende como ser humano. Sobretudo o nível das suas opiniões políticas fica frequentemente muito aquém da sua obra de escritora" (Schandl). Poder-se-á ainda chegar mais baixo? O Homem, que compreende, é o senhor da compreensão, ao passo que as mulheres, como todos sabemos, são demasiado emocionais para essas coisas; elas sentem mais do que compreendem, se bem que o sentir, em seguida, tenha de fracassar a um elevado nível literário, não é verdade? O que é embaraçoso, segundo a opinião dos quebra-tabus, é que a Jelinek se auto-encene como a "‘vítima’ achincalhada pelos comparsas de Haider da ‘Áustria fascista’..." (Krause). Isso revela uma compreensível falta de compreensão, relevando de um absolutamente risível "antifascismo alpino de cachecol de caxemira" (Matussek), quando toda a gente sabe que a cosmopolita Áustria é vincadamente amiga dos estrangeiros, animais, pretos e judeus, hoje mais do que nunca. É esta a compreensão que se quer.

O experiente bode velho Marcel Reich-Ranicki, contudo, sabe que a mulher pode ser atingida nas suas partes sensíveis de forma mais eficaz, enveredando-se por outras abordagens; prefere elogiar o seu empenho político para tanto mais poder desancá-la no plano literário: "O talento literário da Elfriede Jelinek é, posto em termos comedidos, antes de mais modesto ... Nunca ela conseguiu escrever um bom romance, sendo quase todos mais ou menos banais e superficiais ... No entanto, quer na sua obra romanesca, quer na dramática — Elfriede Jelinek perfila-se invariavelmente como uma escritora crítica da sociedade, que conquistou novas honras para a literatura de intervenção, por muitos há muito julgada passada à história, ou ultrapassada e superada ... Seja como for: Não há dúvida de que ela é uma mulher e pêras, essa Elfriede Jelinek" (SPIEGEL 42/2004). Há que convir que esta é a forma mais rebuscada de levar a cabo uma execução; mas, afinal, o velho já não está sujeito à ameaça de ser convertido em dona de casa e, daí, bem pode dar uma de descontraído, arremessando por isso mesmo as suas farpas de forma ainda mais certeira.

É sem dúvida um aborrecimento capaz de fazer muita gente mudar de cor várias vezes que o prémio Nobel tenha ido logo para a Jelinek. Tal desvaloriza o referido prémio, "o supremo no mundo" (Reich-Ranicki), que agora se vê despromovido a uma "edição especial sueca do ‘Quem quer ser milionário’..." (Matussek). A Jelinek está "decorada" (Matussek), e "o 'Daily Telegraph' cita um importante agente literário britânico com as palavras: 'Os suecos são tão depravados, que o seu prémio já não vale nada' ..." (Matussek). O Comité deve ter-se passado dos carretos, é que uma pessoa já não pode fiar-se mesmo em nada, desde o 11 de Setembro a esta parte. O mundo está a ensandecer. Se as mulheres e os malucos chegam ao poder, o estado tem de sair arruinado da experiência, não foi o Hegel quem o disse, algures na Filosofia do Direito? Com a preocupação estampada nos rostos, a tertúlia masculina vai emborcando as suas cervejas, como se de uma banda desenhada de Wilhelm Busch se tratasse. O mundo podia ser tão belo e tão pacífico, se não fossem as mulheres e a maluqueira. Mas infelizmente ainda são precisas, as mulheres, para a gente as gozar e para limparem a porcaria. Não é de ficarmos malucos? C’um caneco, ou dois, que se lixe, essa Jelinek ...


Inclusão: 28/12/2019