Concorre ou Morre

Robert Kurz

30 de abril de 2004


Primeira Edição: Bewirb dich oder stirb em www.exit-online.org. Publicado em Neues Deutschland, 30.4.2004.

Tradução: Boaventura Antunes

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Há muito que fazer, mas o trabalho não aparece. Esta frase só aparentemente constitui um paradoxo. Pois o moderno conceito de trabalho não é senão a abstracção de qualquer conteúdo concreto da actividade, um agir "fantasmagórico" (Marx), com a exclusiva finalidade de valorizar o capital. Trata-se da utilização económico-empresarial da energia humana, de "nervo, músculo e cérebro" (Marx) e nada mais. Por isso actividades vitalmente importantes são abandonadas por falta de rentabilidade, enquanto se produzem coisas sem sentido ou até destrutivas e fica involuntariamente sem utilização energia humana em grande quantidade.

Na crise, agudiza-se o absurdo destas relações sociais. Muitos já são forçados pela necessidade a "tudo" fazer e a dispor-se a tudo, seja arrasar paisagens completamente, saltar o arco se for preciso, ou cavar o célebre buraco de Keynes para voltar a tapá-lo. Mas, uma vez que a produção rentável acabou, acabou mesmo. Consequentemente, a empresa capitalista muda-se para a simulação da produção. O capital-dinheiro foge para as bolhas financeiras, que são tratadas como se fossem produção real. E a força de trabalho? Ela é gerida de forma cada vez mais simulada pela burocracia que roda em falso. Uma vez que a produção quebra por todo o lado, a circulação (o mercado) apresenta-se como a única esfera de actividade ainda possível, tanto para o capital como para o trabalho. É verdade que sempre houve "trabalho na circulação", nos sectores comerciais, mas apenas como esfera secundária subordinada à produção. Só pode circular o que foi produzido antes. Porém, na nova economia de crise e fingimento, a circulação tem que substituir a produção, por assim dizer.

Este ilusionismo marca a nova administração do trabalho, tanto como o novo capitalismo financeiro. É o que demonstram os programas obrigatórios para desempregados. Ainda não há muito tempo, havia os célebres cursos de informática, muitas vezes referidos depreciativamente pelos interessados como "cursos para idiotas", porque não traziam qualquer qualificação significativa e serviam de terapia ocupacional. De certa maneira, estes já eram naturalmente programas de simulação. Porém, neste caso, ainda se mantinha a ficção de que o formando se preparava para potenciais actividades produtivas, pelo menos pelo conteúdo. Entretanto tal ficção foi abandonada. Nos novos "cursos para idiotas", hoje, os desempregados têm apenas que aprender e treinar como vender-se a si mesmos, como preencher candidaturas, como armar-se em potenciais "dadores de trabalho" e apregoar-se como tais, qual cerveja amarga.

A ficção também mudou e se reforçou. Já não se admite que os desempregados precisem de algum modo qualificar-se quanto a conteúdos para obterem um emprego. Agora simplesmente supõe-se que eles não se teriam oferecido com correcção e com a necessária insistência no mercado de trabalho, na esfera da circulação da mercadoria força-de-trabalho, que não teriam empreendido uma suficiente auto-publicitação com "empresários da própria força de trabalho". Também neste aspecto, a administração coerciva estatal do "trabalho", que cada vez existe menos, adopta os conceitos de simulação da há muito naufragada "new economy". À medida que a subida das bolsas atingia o seu ponto mais alto no final dos anos noventa, era usual os candidatos a postos de trabalho nos estabelecimentos da pseudo-produção de então terem de se apresentar de forma particularmente original. Assim, por exemplo, uma agência de publicidade pedia "aplicações sonantes", para o que enviava a própria oferta com um apito de trinados. Outros disputavam a atenção juntando uma T-Shirt com a inscrição: "Se me der um emprego, dou-lhe a minha última camisa".

Auto-encenações de tal maneira ridículas e indecorosas, construídas de acordo com o padrão de valor da atenção mediática, hoje já só rodam em falso. A marca comum destes esforços é a total falta de conteúdo. Enquanto na produção capitalista ainda era preciso abstrair do conteúdo, neste caso trata-se de fazer puro "trabalho abstracto". A auto-finalidade da valorização do capital é de certo modo imitada através da auto-finalidade de um dar-nas-vistas a qualquer preço; pode comparar-se à pobre representação de palhaços amadores, de músicos de rua ou de vendedores de miudezas nas zonas de peões das grandes cidades. Ela tem um carácter simbólico: Os elegantes farsantes da pós-modernidade atingiram a pedinchice ordinária; a outrora celebrada virtude da capacidade de adaptação flexível revela-se como claro escarnecer de si mesmo.

Mas, do ponto de vista económico, toda esta patranha está estabelecida na esfera da circulação e daí não sai. Tal como a mendicidade pertence à esfera da circulação, também o mendigar por um "posto de trabalho". A circulação por si não pode de modo nenhum representar qualquer reprodução capitalista. Se já nem a qualificação, ainda considerada de interesse, consegue produzir qualquer trabalho real, como "substância do capital" (Marx), pois não se lhe segue a produção real e em grande escala, muito menos o consegue a palhaçada nos mercados de trabalho. A ilusão, no fundamental, constrói-se como na fábula de que a economia é "90 % de psicologia". Se as pessoas simplesmente já não têm dinheiro, os economistas diplomados explicam que elas fazem "adiamento de compras" por razões de simples humor. A explicação é tão absurda como a possibilidade de expandir à vontade as actividades da circulação. É que a economia política burguesa não tem nenhum conceito para distinguir produção de circulação; para ela, contar dinheiro atrás do balcão do banco ou vender salsichas é "produção" tal e qual como fabricar carrocerias de automóveis.

Na esfera da circulação particular do mercado de trabalho prova-se na prática que há um erro lógico fundamental na maneira hoje comum de considerar a microeconomia. Há algo de horripilante, quando milhões de "forças de trabalho" não mais susceptíveis de utilização capitalista mendigam reciprocamente por empregos, sob grotescas contorções. O reverso é óbvio: se antes se concorria a um emprego, hoje tem que proceder-se como se o próprio concurso fosse uma espécie de emprego. O instituto federal para a loucura capitalista, rebaptizado como "Agência Federal do Trabalho", é, como "Agência da Simulação", a única grande empresa no espírito da ingloriamente falecida "new economy", precisamente porque vende apenas a ilusão económica de que a circulação poderia ser considerada produção.


Inclusão: 23/03/2020