A globalização deve se adaptar às necessidades das pessoas, e não o contrário
Entrevista à IHU On-line

Robert Kurz

27 de abril 2004


Primeira Edição: IHU On-Line - UNISINOS — Centro de Ciências Humanas www.ihu.unisinos.br/

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


IHU On-Line entrevistou o sociólogo e ensaísta alemão Robert Kurz para a presente edição, por e-mail. Nascido em 1943, Kurz estudou Filosofia, História e Pedagogia. Atualmente vive em Nurenberg como publicista autônomo, autor e jornalista. Foi co-fundador e redator da revista teórica Krisis — Beiträge zur Kritik der Warengesellschaft (Krisis — Contribuições para a Critica da Sociedade da Mercadoria). A área dos seus trabalhos abrange a teoria da crise e da modernização, a análise crítica do sistema mundial capitalista, a critica do iluminismo e a relação entre cultura e economia. Publica regularmente ensaios em jornais e revistas na Alemanha, Áustria, Suíça e Brasil. O seu livro O Colapso da Modernização (São Paulo: Paz e Terra,1991), também editado no Brasil tal como O Retorno de Potemkin (São Paulo: Paz e Terra, 1994) e Os Últimos Combates (Petrópolis: Vozes, 1998), provocou grande discussão e não apenas na Alemanha. Mais recentemente publicou Schwarzbuch Kapitalismus (O Livro Negro do Capitalismo) em 1999, Weltordnungskrieg (A Guerra de Ordenamento Mundial) e Die Antideutsche Ideologie (A Ideologia Anti-alemã) em 2003, não editados em português. De Kurz, publicamos um artigo na 26ª edição, de 15 de julho de 2002. Robert Kurz disponibilizou a entrevista a seguir, concedida ao IHU On-Line, em alemão, no sítio www.exit-online.org. A tradução da entrevista é da CP Traduções.

IHU On-Line — No Brasil, está crescendo o desemprego em um governo de esquerda do qual se esperava uma solução para esse problema. Por que o desemprego parece uma questão sem resolução? Há algum outro modelo alternativo ao binômio emprego- desemprego para nossas sociedades?

Robert Kurz — É uma contradição fundamental na forma de produção capitalista moderna, que por um lado ela se baseia na permanente transformação da energia humana em capital, e por outro lado obriga a concorrência para o desenvolvimento das forças de produção, na qual a mão–de-obra é transformada em objeto supérfluo. No passado, esta contradição sempre pôde ser compensada através da expansão dos mercados. Contudo, na terceira revolução industral da microeletrônica, o efeito de racionalização é durável e maior do que o efeito da expansão. Até hoje, todos os modelos para se vencer esta crise global não obtiveram resultado, porque os mesmos não levam em consideração a obsoleta lógica de transformação de trabalho em capital e somente se ocupam da admnistração da pobreza. Se nos tornarmos improdutivos e cada vez mais recursos ficarem improdutivos, deveremos, em princípio, questionar categoricamente os atuais hábitos e formas de produção. Perante esta conseqüência, a discussão recua e ela se torna de certa forma maçante.

IHU On-Line — Como o senhor vê a relação entre Estado, mercado e terceiro setor? E o futuro dos partidos políticos e sindicatos?

Robert Kurz — A política como tal se torna um modelo em extinção. Essencialmente, o Estado e a política respondem unicamente às conseqüências de processos cegos de mercado e concorrência . Se essas conseqüências não forem mais controláveis, a competência da política desaparece. Só podemos ser um sujeito da política, se formos também sujeitos do trabalho e do capital. Quanto mais as pessoas se desligarem da lógica trabalho/capital, menos insensatas se tornam as esperanças no Estado. Por este motivo, muitos já não acreditam mais nos partidos políticos. O fazer político como tal se tornou hoje, de certa forma, uma rotação desengrenada(1). As organizações não governamentais não se constituem em uma alternativa, uma vez que se entendem por meras empresas não críticas de reparação das sociedades totalitárias de mercado. Elas deveriam empenhar-se abertamente em opor-se à ordem dos fatos e pensar em um mundo além do mercado e Estado, não como organizações subalternas de ajuda paralela ou até mesmo inerentes à administração capitalista da crise, mas sim em contraposição a isso. Os sindicatos também ficaram sem ação, porque eles só foram concebidos para a expansão histórica do trabalho assalariado. Na atual crise global, esta área se tornou vacilante. Poderia haver, então, espaço para a demanda sindical para o Estado e empresas. Mas em vista das atuais exigências, os sindicatos estão paralisados, enquanto se mantiverem presos à lógica do trabalho assalariado e enquanto assumirem a responsabilidade do sistema vigente.

IHU On-Line — Quais são suas divergências com a idéia de flexibilização do trabalho de Ulrich Beck e as idéias de trabalho imaterial de André Gorz? Como o senhor vê a reflexão de Paolo Virno e Maurizio Lazzarato?

Robert Kurz — Há alguns anos, novos conceitos estão sendo trazidos a debate, os quais , todavia, não contribuem muito para uma análise crítica, porque provêm do discurso do gerenciamento. A flexibilização, que foi elogiada como método da auto-realização, é na realidade, um método de auto-adestramento às exigências alheias do sistema em crise. As pessoas devem analisarem-se como seu próprio capital humano, cada eu deve ser uma pequena empresa, cada indivíduo deve ser um meio único da autovalorização. Ser flexível parece não significar mais do que degradar-se em um autômato, o qual mecanicamente reage aos comandos e sinalizações do mercado. É a forma mais sutil de desumanização. No mesmo âmbito, encontra-se o conceito do trabalho imaterial, o qual pertence ao discurso da sociedade intelectual ou à sociedade da informação. Em primeiro lugar, uma grande parte das assim denominadas atuações/atividades imateriais nos campos da medicina, cultura, educação, assessorias, etc., são pouco caracterizáveis como capitalistas. Não se trata, assim, de amplos campos de aproveitamento do capital, ou seja, transformação do trabalho em capital, como no passado, na indústria automobilística. Ao contrário, estes campos aparecem segundo a lógica capitalista como custos (sociais ou empresariais). Em segundo lugar, tenta-se de igual maneira, dentro do contexto capitalista, reduzir e adaptar as potências dos campos imateriais através da racionalização e privatização. Através do processo cego de desenvolvimento capitalista, possibilidades civilizatórias surgiram, as quais ultrapassaram o sistema moderno de produção, porque estas não podem mais ser banidas da lógica trabalho, valor, produto e capital. O conceito do trabalho imaterial torna-se, desse modo, uma contradição em si, porque as atividades e possibilidades imateriais se opõem especificamente à abstração capitalista trabalho. Não há sentido em somente se modificar o conceito moderno de trabalho, ele deve ser categoricamente negado.

IHU On-Line — Qual é o papel da Universidade numa sociedade com grandes massas de desempregados?

Robert Kurz — As universidades são as instituições clássicas para a educação. Como todas as instituições civis, elas se baseiam na economia da sociedade de trabalho de massa, ou seja, no aproveitamento do capital. Como campos secundários, nos quais a lógica do aproveitamento não foi diretamente eficiente, as universidades foram consideradas como um certo luxo intelectual de pesquisa, formação e reflexão crítica na história da expansão capitalista. No auge da expansão, na era da indústria fordista (indústria automobilística), pareceu por um tempo que até os filhos da classe trabalhadora em grande escala, teriam acesso às universidades, como se fosse possível substituir os trabalhadores de massa por intelectuais de massa. Mas isso foi uma ilusão, porque, afinal de contas, a educação capitalista somente pode existir como ponto elitista na base do trabalho de massa. Desde que a expansão histórica se transformou em contração histórica, também as universidades sentiram a crise global da terceira revolução industrial. Uma sociedade de massa de desempregados é uma sociedade da necessidade financeira. Para os campos secundários, entre elas a educação, desaparece significativamente a financiabilidade. Quanto mais os políticos dificultarem a necessidade de investimentos na educação para a concorrência no mercado mundial, mais dificuldades e restrições encontrarão as escolas e universidades. Os administradores, funcionários e ideologistas do sistema querem vencer esta contradição, reduzindo a educação social e os conteúdos. O conceito de elitização impor-se-á novamente, através da privatização, mensalidades caras, e através do fomento de menos universidades de ponta, o que deverá produzir em uma base menor a qualificação para o mercado mundial, à medida que os supérfluos da educação serão cortados. O capitalismo não pode substituir os trabalhadores de massa por intelectuais de massa, mas sim, somente pela barbaridade analfabetizada de massa. Mas o estreitamento social, vinga-se com o estreitamento intelectual nos programas curriculares das universidades. A ciência deve transformar-se diretamente em máquina de aproveitamento, a lógica econômica empresarial devora a pesquisa livre, a reflexão crítica sucumbe como luxo dispensável. Uma crescente massa de analfabetos desempregados depara-se com uma pseudo-elite de intelectuais idiotas funcionais, os quais se declaram incapazes de gerenciar o grau alcançado de socialização altamente complexo e híbrido. As universidades só poderão retirar-se desta tendência de decivilização, quando se opuserem ao elitismo (Elite-Lobbysmus) e ao reducionismo econômico. Deverá haver um movimento dos sábios desobedientes, os quais se envolvam com os novos movimentos sociais, sem levar em consideração a antiga paralisada classe política de esquerda. Se as chances continuarem igualmente menores, a comunidade de docentes e discentes poderá partir para a subversão intelectual e transformar a universidade em campo experimental para uma cultura de oposição.

IHU On-Line — Quais são os principais desafios da globalização?

Robert Kurz — Constantemente nos é pregado, que devemos nos adaptar à globalização. Se a globalização for realmente irreversível, não haverá volta para a reprodução nacional da sociedade. Mas a tarefa consiste em que a globalização se adapate às necessidades das pessoas, e não o contrário. A longo prazo, isso só será possível, se a sociedade mundial libertar-se do jogo do economismo real e organizar seus amplos recursos em uma nova forma, além do mercado e do Estado. Para se alcançar este objetivo, os movimentos contrários precisam estar à mesma altura do monopólio de capital. Este é também o desafio decisivo dos sindicatos. Eles precisam se libertar de sua forma de organização nacional. Enquanto a forma do partido político, em essência, permanecer ligada ao quadro estatal, e daí por si mesmo ser reacionária, a luta social em princípio se tornará de igual maneira monopólio como a economia empresarial capitalista. Mas até agora os novos movimentos sociais estão ainda orientados no sentido tradicional internacional do que realmente transnacional. Isso se explica porque estes movimentos ainda se orientam nas formas passadas de regulamento estatal (nostalgia keynesiana). Estas formas de regulamento não podem, todavia, ser expandidas para o plano de monopólio de globalização, porque não existe um estado mundial. Com isso, fica claro que atualmente a consciência oposicional se prende às categorias obsoletas do sistema moderno de produção de bens. Nação, trabalho e produto precisam ser dominadas. Enquanto os movimentos contrários ainda se relacionarem positivamente com estas categorias, eles permanecerão susceptíveis ao populismo nacionalista e às tendências racistas e anti-semitas. Um dos maiores desafios da globalização é conferir à estas falsas alternativas uma forte recusa.

IHU On-Line — Como caracterizaria a sociedade a qual o grupo Krisis aposta?

Robert Kurz — Infelizmente, tenho que dizer que o grupo crise (Krisis) vigente até agora, não mais existe. O grupo se desfez, porque havia divergências sobre a crítica do Iluminismo social e a forma de sujeito moderna masculina. A respeito disso, algumas pessoas queriam ter o mérito de nossa polêmica. A maioria da até agora atual redação de Krisis publica uma nova revista teórica chamada EXIT!. Tais quebras já conhecemos da história dos esquerdos. Ao que parece, eles não se deixam intimidar sob as novas exigências. Uns ficam parados, outros vão adiante. Mas isso não muda nada no caráter social da iniciativa. O novo grupo também é uma associação livre para a teoria crítica fora das instituições acadêmicas. Nós não somos, no sentido dogmático da palavra, anti-acadêmicos, mas sim, também contamos com pessoas do serviço institucional de ciências. Trata-se de saber se se levará a crítica emancipatória para as universidades. Isto só será possível através de uma posição independente institucional e não só de conteúdos. Talvez isto seja o futuro das reflexões críticas intelectuais, a saber, a auto-organização em grupos autônomos, os quais se desliguem das tutelas burocráticas.


Notas de rodapé:

(1) No original em alemão: Der ganze politische Betrieb ist nur noch ein Leerlauf. (Nota do IHU) (retornar ao texto)

Inclusão: 28/12/2019